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É feriado prolongado, que alívio. Aproveito para acordar mais tarde e começar o dia com calma. Dou bom dia para minha cachorra com um beijinho na testa e vou preparar o café da manhã. O de sempre, dois ovos e café com leite. Faço algumas coisas pela casa, coloco a coleira nela e saímos para dar uma volta. Vou andando pelo bairro, para minha sorte está um dia lindo. Passo pelo parque e respiro lá um pouquinho. Passado um tempo, volto rumo à minha casa. Estou na calçada, esperando o farol de pedestres abrir para atravessar a avenida. Esse farol sempre tão demorado. Até aqui nada novo, um dia qualquer, mais do mesmo.
Até que, encostada em um poste ao meu lado, vejo uma carroça. Nela tinha apenas uma caixa de maracujá já meio gasta. Achei estranho, já era de tarde, umas 14h. Nesse horário, toda carroça que vejo já está cheia de materiais recicláveis. Fico observando a caixa de maracujá, sozinha na carroça vazia. Até que levo um susto e, para fora da caixa, sai a cabeça de um cachorro. Minha cachorra late e ele, calmo e sonolento, repousa a cabeça sobre a borda da caixa e suspira. Fico olhando para ele, sozinho na carroça, dentro da caixa de maracujá. Seu pelo castanho mesclado com preto, felpudo como uma estopa e meio descabelado. Seus olhos e focinho pretos e suas orelhas caídas, imagino qual deve ser o nome dele. Quando comecei a pensar onde estava o dono da carroça que o deixara sozinho, ele aparece.
Era um jovem, deveria ter entre os 25 e 30 anos, com a vida toda pela frente. Era magro e alto, com um semblante cansado e desanimado. Ele coloca duas caixas de papelão na carroça e logo se ajeita para conduzi-la. Mas, antes, faz um carinho no cachorro da caixa de maracujá. Ele olha para mim, me chama de moça, não pede nada e diz: “minha vida não tem vida”. Aquelas palavras chegaram até mim como um choque. Antes que pudesse concatenar qualquer frase para dizer a ele, qualquer fala compreensiva ou mesmo motivadora, ele puxa a carroça e sai pela avenida. E eu fico sem nenhuma reação. Escuto ele murmurando para si mesmo sobre como só trabalha, dorme e acorda para trabalhar novamente. Penso se deveria fazer alguma coisa para ajudá-lo, ele não pediu dinheiro nem comida, mas poderia lhe pagar um almoço ou algo do tipo. Quando enfim consigo raciocinar alguma coisa, ele já está longe. E, finalmente, o farol de pedestres abre.
No caminho de casa, fico pensando nessas cinco palavras que ele disse olhando nos meus olhos. Lembro do olhar dele, sem nenhuma esperança. Dizem que os olhos são a janela da alma e a dele claramente estava machucada. Machucada pelo dia a dia vivido, pelo ciclo vicioso no qual se encontra, de acordar, trabalhar para sobreviver ao dia, dormir e começar tudo de novo. Refletindo mais sobre o fato da vida dele não ter vida, percebi como essa é a realidade de milhões de brasileiros que não vivem, mas sobrevivem diariamente. Muitos pais de família, mães solteiras e jovens sozinhos que, assim como o carroceiro, não têm esperança e sentem como se a vida tivesse perdido a essência que é viver.
Esse episódio e essas palavras me marcaram muito. Ainda hoje, meses depois, me pego pensando. Pensando na carroça vazia, no cachorro da caixa de maracujá e no carroceiro, cujo olhar e palavras não consigo apagar da memória. Sei que provavelmente não vou reencontrá-lo e que mesmo que nossos caminhos se cruzassem novamente, ainda assim não saberia como agir. Mesmo pensando e repensando a cena, não teria a menor ideia de como responder a cinco palavras tão simples, mas que carregam anos de dor e desesperança. Anos de noites mal dormidas, refeições incompletas e preocupações com o dia de amanhã, que assim como ontem, não tem vida.
Sei que ele não vai ler esse texto, mas de todo modo, espero que ele se encontre bem dentro do possível, nutrindo o último fio de esperança que o resta. Para que continue firme e busque forças de onde não há. Por ele, pela sua sobrevida e pelo cachorro da caixa de maracujá.
Autoria: Giulia Lauriello
Revisão: Laura Freitas e Anna Cecília Serrano
Imagem de capa: Vakinhas online
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