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A "CURA GAY" E SUAS FALÁCIAS

A terapia de conversão, mais conhecida como cura gay, ainda é amplamente praticada em diversas partes do mundo. Nossa membra de Relações Externas, Thais Ferrari, traz uma visão completa sobre a maneira como esse método cruel é aplicado no Brasil e em outros países e como seu embasamento é totalmente não científico e injustificável. Saiba mais sobre essa prática que ainda faz vítimas e reforça a homofobia.

Estamos em 2020 e ainda existem pessoas que creem que variações de sexualidade e identidade de gênero para além do padrão cis-hétero são doenças que precisam ser curadas. Essa crença embasa uma prática extremamente nociva à comunidade LGBTQIA+: a “cura gay”, a qual, infelizmente, ainda é permitida e praticada por todo o mundo.



Breve introdução à “cura gay” e suas falácias


Popularmente conhecida como a “cura gay”, as “terapias de conversão” buscam alterar a identidade de gênero ou sexualidade de uma pessoa. A crença central que motiva essas práticas é a de que o correto e saudável é ser cisgênero e héterossexual e os indivíduos que não se enquadram nesse “padrão” estão doentes e precisam ser “curados”¹. Os jovens LGBTQIA+ são os mais atingidos por essa prática².


Dentre as justificativas para esses “tratamentos” estão motivos religiosos, médicos, culturais e a proteção da honra da família. Líderes religiosos, instituições religiosas, profissionais da área de saúde, líderes políticos, familiares e até empregadores são alguns dos promotores dessas práticas³. Existem diferentes formas de se aplicar uma “terapia de conversão”, variando desde rituais religiosos até o uso de medicamentos.


Primeiramente, não deveria ser necessário explicar que não existe nenhuma evidência científica ou lógica que sustente que se identificar como LGBTQIA+ seja uma doença, tudo que embasa essa crença é o preconceito e a desinformação. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) não reconhece mais a homossexualidade e a transexualidade como doenças.


Além disso, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) já afirmou que a homossexualidade é uma variação natural da sexualidade humana, não uma patologia, e que “terapias de conversão” não possuem justificativa médica, além de apresentarem um risco à saúde daqueles submetidos a elas. Ainda por cima, a OPAS ressaltou que esses tratamentos não são éticos, entendimento reiterado pela Associação Mundial de Psiquiatria, que considera antiética qualquer intervenção que busque “tratar” algo que não seja um distúrbio.


A crueldade da “terapia de conversão” e suas consequências


Primeiramente, um dos maiores males das crenças que embasam a “cura gay” é exatamente que elas levam pessoas LGBTQIA+ a crerem que parte significativa de sua identidade, sua sexualidade e/ou identidade de gênero, é errada e deve ser mudada ou suprimida. Isso é especialmente grave para os jovens cujas famílias os obrigam a se submeterem a essas práticas, algo que, infelizmente, não é incomum. Conforme uma pesquisa feita pela Universidade de São Francisco, jovens LGBTQIA+ que são rejeitados pela família possuem taxas mais altas de depressão, tentativa de suicídio, uso de drogas ilícitas e maior risco de contrair HIV e outras DSTs.


Porém, a parte mais desumana e repugnante desses “tratamentos” é o modo como muitos deles são ministrados. É verdade que existem diferentes formas dessas “terapias”, mas não são raros os casos em que as técnicas utilizadas são extremamente cruéis. Uma delas é a terapia de aversão, na qual as pessoas recebem estímulos relacionados a sua orientação sexual ou identidade de gênero, enquanto são submetidas a alguma prática que lhes cause dor ou desconforto, incluindo choques ou medicações que induzem náusea, para que as pessoas criem uma aversão a sua identidade sexual ou de gênero, pois as associarão com dor ou nojo.


Essa não é a única barbárie cometida nas “terapias de conversão”, há relatos de outras práticas como privação de comida, nudez forçada e até mesmo estupros “corretivos”. Nos casos em que a “terapia” é religiosa existem relatos de até exorcismos sendo performados em pessoas LGBTQIA+.


Fica claro que essas supostas “curas” violam diversos direitos humanos como o direito à saúde, o direito à não-discriminação e a proibição da tortura e de tratamentos degradantes, sendo, portanto, violações de tratados de direitos humanos. A situação é tão grave que, em um recente relatório, elaborado por Victor Madrigal-Borloz, especialista da Organização das Nações Unidas (ONU), concluiu que as “terapias de conversão” são, por natureza, degradantes, inumanas e cruéis e alertou para o risco de tortura advindo dessas práticas, pedindo que todos os países banam esses “tratamentos”¹⁰.


Obviamente, os indivíduos submetidos a essas “terapias” podem sofrer consequências negativas para sua saúde física e mental tanto a curto como a longo prazo. Alguns dos sentimentos que os que passaram por essas “terapias” relatam incluem ansiedade, depressão, isolamento social, vergonha, culpa, disfunções sexuais, pensamentos suicidas e tentativas de suicídio¹¹.


A “cura gay” no mundo


Com tudo que foi dito, parece óbvio que o ideal seria que as “terapias de conversão” fossem completamente banidas, e até criminalizadas, em todos os países, porém isso está muito longe de ser uma realidade. Primeiramente, que esses “tratamentos”, mesmo que de diferentes formas, estão presentes no mundo todo, não sendo restritos a um país ou continente específico. Além disso, são poucos os locais que proíbem ou criminalizam tais práticas, sendo Malta, talvez, o melhor exemplo de banição total a nível nacional¹². Outros países possuem legislações que apenas restringem como e por quem essas “terapias” podem ser ministradas. Há também proibições e restrições feitas a nível municipal ou estadual, mas que não se aplicam ao país todo. É isso que ocorre nos EUA, onde cada estado possui uma legislação própria quanto as“terapias de conversão” - alguns a proíbem totalmente, outros parcialmente e alguns as permitem. Outro exemplo é o México, pois, no final de julho, a Cidade do México se tornou a primeira e única região do país a criminalizar a “cura gay”¹³.


Apesar da situação estar longe do ideal, diversos países e blocos econômicos têm sinalizado que pretendem banir ou, ao menos, restringir essas práticas. Um exemplo é o Parlamento Europeu que, em 2018, adotou um texto que condena as “terapias de conversão” e clamou que os países membros do bloco a proibissem em seus territórios¹⁴. Em maio desse ano, a Alemanha aprovou uma lei que proibia “terapia de conversão gay” para menores de idade no país; não é uma proibição total, mas já é um avanço¹⁵. Já no final de julho, Boris Johnson, primeiro-ministro britânico, prometeu banir as “terapias de conversão gay” no país, descrevendo tais práticas como “repugnantes” e que não há espaço para elas no Reino Unido¹⁶.


Há também um grande esforço de diversas entidades e organizações voltadas à luta por direitos humanos e direitos LGBTQIA+ para banir essas “terapias”. Muito em consequência dessas pressões, sites e empresas têm tomado atitudes que ajudam a impedir a disseminação, divulgação e promoção dessas práticas. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Google, a Apple e a Amazon.com retiraram de suas plataformas um o Living Hopes Ministries, um app que divulgava e promovia “essas terapias”. Recentemente, o Instagram afirmou que irá banir conteúdos que promovam “cura gay” ou “cura trans”¹⁷.


Como é no Brasil?


Um último ponto é mostrar a situação da “cura gay” no Brasil. Desde 1999, por meio da resolução nº01/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), as “terapias de reversão sexual” são completamente proibidas no país. Porém, ainda há aqueles que são favoráveis à permissão dessas práticas tanto que existem esforços que buscam legalizá-las.


Possivelmente, o caso mais notório ocorreu em 2017, quando um juiz de primeira instância da 14ª Vara do Distrito Federal efetivamente permitiu essas “terapias” no país. Tal decisão foi, em 2019, derrubada pela ministra Cármen Lúcia do Supremo Tribunal Federal (STF)¹⁸. Esse ano, a Corte manteve a suspensão dessa decisão de primeira instância¹⁹ e ainda arquivou uma ação que pedia a liberação de “terapias de reversão sexual”, movida por um grupo de psicólogos, mantendo assim válido o determinado na resolução do CFP²⁰.


É importante, também, se atentar ao fato do novo governo se mostrar mais favorável à permissão da “cura gay” tanto que, no ano passado, a ministra da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, fez uma reunião com o Movimento Psicólogos em Ação (MPA), defensor da “cura gay”²¹. Ainda sim, até o momento essa prática está completamente proibida no país.



Referências:

³ Id.

¹⁰ Id.

¹¹ Id.


Para saber mais:

Relátorio de Victor Madrigal-Borloz para a ONU: https://undocs.org/A/HRC/44/53

Pesquisa global sobre “cura gay” feita pela OutRight Action International: https://outrightinternational.org/sites/default/files/ConversionFINAL_Web_0.pdf

Documentário sobre “terapias de conversão”: https://www.youtube.com/watch?v=wD4sWQG2DnQ


Fontes:



Foto da capa: NSVRC

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