Em 2024, o golpe militar de 1964 completa 60 anos. E, embora o governo federal tenha preferido silenciar-se perante a data e não promover eventos de reflexão e memória, o cinema e a literatura brasileiros produziram brilhantes trabalhos que retomaram a discussão no espaço público.
Os horrores da ditadura militar, bem como os efeitos que o regime produziu sobre a vida das pessoas foram retratados em diversas obras. São exemplos: “Malu” de Pedro Freire, “A transição inacabada” de Lucas Pedretti; “A máquina do golpe” de Heloísa Starling; e “Ainda Estou Aqui” de Walter Salles. Eu mesmo pude fazer minha estreia na Gazeta Vargas com um texto do mesmo tema: “Sem memória, não há futuro”.
Mas as lembranças da insurgência militar contra o Estado Democrático de Direito não se limitaram aos eventos de 1964. Poucas semanas atrás, a Polícia Federal (PF) revelou ao país o quão próximos estávamos de uma nova intromissão das Forças Armadas em nossa democracia. De acordo com o inquérito entregue ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela PF, o ex-presidente Jair Bolsonaro era líder de uma organização criminosa que visava mantê-lo no poder mesmo após a derrota nas urnas em 2022. Entre os membros da suposta organização criminosa, estariam inclusive militares de alta patente do Exército. O relatório inclui o nome de três generais dessa Força e que tiveram amplo destaque durante o governo Bolsonaro: Augusto Heleno, chefe do GSI; Braga Netto – atualmente, preso –, ministro da Defesa e Casa Civil e candidato a vice de Bolsonaro em 2022; e Paulo Sérgio Nogueira, também ministro da Defesa. Além disso, a PF aponta para o envolvimento de “kids pretos”, militares que integram forças de operações especiais do Exército, em uma tentativa de assassinar o então presidente eleito, Lula; o seu vice, Geraldo Alckmin; e o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes.
No ano passado, o relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Atos de 8 de janeiro de 2023 já apresentava a participação desse grupo de operações especiais no planejamento e execução da invasão e depredação dos edifícios dos Três Poderes. Em mensagens interceptadas pela PF e presentes no documento final da CPMI, o ex-major do Exército, Ailton Barros, explícita como a sanha golpista era delegada aos “kids pretos”: “É preciso convencer o comandante da Brigada de Operações Especiais de Goiânia a prender o Alexandre de Moraes. Vamos organizar, desenvolver, instruir e equipar 1,5 mil homens”.
O plano do golpe, no entanto, não se contém às eleições de 2022. O relatório supracitado da PF indica que Jair Bolsonaro já tinha um plano de ruptura democrática – e de fuga – desde março de 2021. Esse plano teria sido encontrado no computador do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e tenente-coronel do Exército, Mauro Cid. A ruptura institucional, por sua vez, estava prevista para ocorrer em três cenários: (I) se houvesse intervenção do STF no Poder Executivo; (II) se a chapa de Jair Bolsonaro à reeleição fosse cassada pelo TSE; e (III) se o STF ou TSE vetasse o voto impresso mesmo que aprovado pelo Congresso Nacional.
Em 2021, o ex-presidente Bolsonaro também atingiu um dos ápices de seu enfrentamento ao STF. No dia da Independência, o capitão reformado do Exército deu uma série de declarações inflamadas contra a Corte em manifestações em Brasília e na Avenida Paulista em São Paulo. Naquele momento, o Tribunal começava a avançar com investigações contra apoiadores do presidente que publicavam ameaças ao STF. Bolsonaro, inclusive, pediu que o então presidente da Corte, Luiz Fux, interferisse nas decisões de Alexandre de Moraes, ministro relator das investigações: “Ou o chefe desse Poder enquadra o seu ou esse Poder pode sofrer aquilo que não queremos, porque nós valorizamos, reconhecemos e sabemos o valor de cada Poder da República”. O ex-presidente nunca explicou o que quis dizer com “ou esse Poder pode sofrer aquilo que não queremos”.
Entre suas falas no dia, o “capitão” também jogou dúvidas sobre a lisura das eleições: “Nós queremos eleições limpas, auditáveis e com contagem pública dos mesmos. Não posso participar de uma farsa como essa patrocinada ainda pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral”. O recente inquérito da PF aponta que descredibilizar as urnas eletrônicas era uma das frentes do suposto grupo golpista desde 2019.
Para além do exposto, o 7 de setembro de 2021 ainda merece destaque por um outro fato. Segundo apuração da BBC News Brasil, já havia temores de invasão e depredação do edifício do STF nessa data. Isso porque, ainda na noite do dia 6 de setembro de 2021, o bloqueio da Polícia Militar do Distrito Federal na Esplanada dos Ministérios foi furado por manifestantes – história familiar, não? – e até mesmo carros e caminhões avançaram até a metade da Esplanada. Por efeito disso, Fux, o então presidente da Corte, teria instalado uma espécie de “QG” em sua residência para monitorar o desdobramento dos acontecimentos.
Diante disso e caso a Procuradoria-Geral da República e o STF confirmem os fatos apresentados pela PF, resta a dúvida se essa fora uma mera tentativa “chocha” e “obviamente irrealizável”, como publicado por um colega em texto desta revista estudantil há algumas semanas, de um golpe de Estado por Bolsonaro e membros do Exército. Fica a questão se o silêncio imposto pelo presidente Lula ao seu governo em relação aos 60 anos do golpe militar foi o procedimento mais adequado. É no mínimo irônico que um presidente que possa ter tido seu homicídio planejado por membros da mesma Força executora do golpe de 1964 busque apagar esse passado.
Diferentemente do que foi feito pelo governo federal neste ano e como bem afirmado em “Ainda Estamos Aqui?”, texto de Enrico Recco publicado nesta semana na Gazeta: “A atitude mais responsável que podemos fazer é aprender com o nosso passado, mas aprender de verdade, e não somente absorver conhecimento sentado em uma carteira de escola. Enfrentar o passado é confrontar os agressores, dar voz às vítimas, colocar medidas para que nunca mais ele se repita e, constantemente, mostrar a todos que ser conivente com um passado monstruoso é dar brecha para que, um dia, ele levante sua cabeça horripilante novamente. Afinal, para quem não sabe de onde veio, qualquer caminho serve, até dar meia-volta”. E aprender com o nosso passado não significa apenas impedir e punir novos “Bolsonaros” e qualquer ímpeto golpista das Forças Armadas. Significa também não permitir que governadores e secretários estaduais de Segurança Pública, como Tarcísio de Freitas e Guilherme Derrite, utilizem métodos semelhantes aos da ditadura militar como política de Segurança Pública.
Na obra previamente mencionada, “A transição inacabada: Violência de Estado e direitos humanos na redemocratização”, o historiador Lucas Pedretti destaca como a ditadura militar não foi cruel apenas com os presos políticos, mas também com os presos comuns. Estes, inclusive, continuam a ser tratados da mesma forma pelas forças policiais na Nova República sem que haja qualquer política de reparação e memória: “para casos como os da Chacina de Acari, não houve comissões da verdade, programas de reparação ou políticas de memória. Pelo contrário. A resposta que a Nova República ofereceu foi o aprofundamento das formas de violência do Estado contra essas pessoas, como o encarceramento e o extermínio. No lugar de um repúdio discursivo a essa violência, o regime democrático pós-1988 foi marcado pelo crescimento das visões de mundo que entendem a tortura, a execução e o desaparecimento desses jovens como legítimos e mesmo desejáveis”.
Quando a política de Segurança Pública do estado de São Paulo se baseia essencialmente na necropolítica, não há outra forma de se enxergar o problema senão como um reflexo da ditadura militar. Inclusive, não são poucos os relatos de invasões ilegais de domicílio na Operação Escudo e de execuções extrajudiciais por forças policiais em todo o estado feitas pela Polícia Militar chefiada por Tarcísio.
Tarcísio é ainda o mesmo governador e chefe da PM que declarou que não se importava com qualquer denúncia no Conselho de Direitos Humanos da ONU após uma operação policial matar dezenas de pessoas no litoral paulista: “E aí, o pessoal pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não estou nem aí”.
Com isso, não há outra resposta à pergunta que encabeça o texto, além de que sim, a ditadura ainda está aqui. Não exclusivamente por uma tentativa recente de ruptura institucional com o Estado Democrático de Direito, mas também pela manutenção de um estado de exceção contra diversos indivíduos socialmente vulnerabilizados no país. E vale ressaltar, que não será uma anistia que superará todo esse cenário, a experiência com a Lei nº 6683/79 já nos demonstrou isso.
Por fim, não teria outra forma de concluir sem que fosse com uma menção ao espetacular filme de Walter Salles, “Ainda Estou Aqui”, inspirador deste texto. Em uma das cenas, Eunice Paiva (Fernanda Torres) é questionada por uma jornalista se o Estado brasileiro não teria questões mais urgentes do que remediar o passado. A resposta é curta e direta: “Não”. Enquanto os horrores da ditadura militar não forem encarados por todo o país, permanecemos com um futuro submisso aos efeitos desse período e às margens dos princípios e direitos positivados na “Constituição Cidadã”. Dessa forma, sim, o Estado brasileiro não tem questões mais urgentes do que enfrentar o seu passado.
Autoria: Erick Martins Rosario
Revisão: Manuela Sanches Ferreira
Imagem da Capa: Maria Luísa Arruda de Faria
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Referências
BBC NEWS BRASIL. 8 de janeiro: Relatora aponta participação de Kids Pretos, ‘tropa de elite’ do Exército, nos atos golpistas. 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4gz1942mn0o. Acesso em: 10 dez. 2024.
BBC NEWS BRASIL. Bolsonaro: “Não podemos aceitar eleições duvidosas”. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58479785. Acesso em: 10 dez. 2024.
BBC NEWS BRASIL. Prisão de ministros do STF e nova eleição: o que diz plano de golpe encontrado com Kid Preto. 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3e82950lleo. Acesso em: 10 dez. 2024.
BRASIL. Congresso Nacional. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre os atos antidemocráticos de 8 de janeiro. Brasília, 2023.
CARTA CAPITAL. Áudios incluem o coronel Élcio Franco, ex-braço direito de Pazuello, em trama golpista. 2024. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/audios-incluem-o-coronel-elcio-franco-ex-braco-direito-de-pazuello-em-trama-golpista/. Acesso em: 10 dez. 2024.
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