Em “História Social da Criança e da Família”, o historiador Philippe Ariès apresenta como eram as concepções da criança na era medieval e mostra como estavam inseridas na sociedade. Segundo o autor, elas eram vistas como “adultos em miniatura”, ou seja, havia equivalência entre crianças e adultos e ambos eram considerados capazes de realizar as mesmas tarefas. Dessa forma, assim que as crianças conseguiam ser razoavelmente independentes (quando saíam do colo de suas mães), elas eram inseridas no mundo adulto. Na década de 90, havia 8 milhões de crianças trabalhando no Brasil, realizando tarefas domésticas, industriais e agrícolas que, na maioria das vezes, resultaria em lucro para sua família. Hoje, as esferas do trabalho infantil se alteraram: crianças e adolescentes realizam atividades laborais através da atuação em programas de televisão, filmes ou séries e trabalham como “influencers” nas redes sociais, atividades que permitem o ganho de fama e dinheiro. Apesar da existência de legislação que tenta impedir o trabalho infantil (como o ECA), a ampliação do espectro laboral faz com que essa seja insuficiente, o que abre espaço para a contínua exploração do trabalho e da renda adquirida por esses jovens (como no caso da atriz Larissa Manoela, que será explicado mais adiante).
Após a criação do ECA, ainda havia crianças trabalhando. Na maior parte das vezes, essas atividades eram ignoradas pelas autoridades ou até mesmo valorizadas. A ideologia do trabalho parecia estar no discurso do cidadão brasileiro, que enxergava o trabalho como “salvador” de crianças que não têm oportunidades de acesso à educação e são forçadas a contribuir com a renda de casa. O uso de mão de obra infantil durante o período de industrialização brasileiro, que se iniciou na década de 30, foi muito significativo na disseminação desse ideal. De acordo com a historiadora Margareth Rago, o trabalho era incentivado pelos industriais como uma maneira de impedir a vagabundagem e preparar essas crianças para a vida adulta no trabalho:
"Aos olhos do patronato, a função moralizadora do trabalho justifica a introdução de um vasto contingente de menores nas indústrias, especialmente nas têxteis. O trabalho nesta perspectiva aparece como uma maneira salutar de impedir a vagabundagem e o desperdício das energias das crianças." (1997, p. 136).
Dessa maneira, tornou-se cada vez mais comum que crianças fossem inseridas no mundo do trabalho precocemente, muitas vezes com o peso de serem uma fonte de renda central para suas famílias. A existência de milhões de crianças que trabalhavam no Brasil da década de 90 deixa isso ainda mais claro. Sendo assim, é possível perceber que, mesmo após a criação do ECA, o Brasil ainda enfrenta problemas no que tange ao combate ao trabalho infantil. Segundo a PNAD Contínua de 2019, o Brasil ainda tem, aproximadamente, 1,7 milhões de crianças trabalhando em seu território. Porém, esses dados só abrangem aquelas que exercem funções em indústrias, na agricultura e com serviços de casa, ou seja, não sendo contabilizados os inúmeros jovens que exercem funções diferentes dessas com o intuito de ganhar dinheiro, que será usufruído por sua família.
Recentemente, a história da atriz Larissa Manoela veio à tona e causou enorme repercussão no Brasil, escancarando a existência do fenômeno supracitado. Antes de tratar sobre o aspecto jurídico do caso, é importante saber que o trabalho de atores mirins é regulamentado pela Lei 6.533/78, que exige um registro profissional (DRT) para o exercício destes, o qual só pode ser obtido aos 16 anos. Antes disso, a autorização para o trabalho deve ser dada caso a caso na Justiça e, assim, só pode ser concedida se forem verificados os requisitos de que a atividade deve ter fim educativo e indispensável para o sustento da criança e seus familiares, de acordo com o artigo 406 da CLT. Porém, nem a existência dessa legislação impede a exploração de crianças como Larissa. Em entrevistas para o programa “Fantástico”, a atriz de 22 anos afirmou que todo seu patrimônio (construído ao longo de 18 anos de carreira) era administrado exclusivamente pelos seus pais e que, mesmo após atingir a maioridade, não sabia quanto ganhava e tinha acumulado. Seus genitores afirmaram que não abririam mão de administrar o dinheiro da filha. Além disso, quando Larissa foi em busca dos contratos sociais das três empresas das quais era sócia, descobriu algo ainda mais chocante: todas tinham algum tipo de mecanismo para dificultar o controle da atriz sobre a empresa. Na primeira (DALARI), Larissa era proprietária de apenas 2% do patrimônio; na segunda, era a única sócia, mas uma cláusula no contrato versava que os pais tinham plenos poderes para tomar decisões sem prévia autorização da filha; e na terceira, foi criada uma holding dividida em partes entre ela, sua mãe e seu pai, com a intenção de reunir todo o patrimônio que constava na primeira empresa, fato esse que, segundo Larissa, nunca aconteceu.
A atriz propôs um acordo para seus pais em que 60% do patrimônio seria dela e 40% deles. Em contrapartida, seus genitores propuseram uma divisão 50/50 com a condição de que ganhassem 6% do que a atriz recebesse nos próximos 10 anos. Depois de receberem resposta negativa dos advogados de Larissa, os genitores desistiram do acordo. Desse modo, não houve resolução amistosa entre as partes e Larissa retirou os pais da administração de sua empresa individual, reorganizando os contratos da “DALARI” e gerindo os próximos anos de sua carreira apenas com os 2% deixados para ela no contrato. Fora isso, teve que abrir mão de bens estimados em 18 milhões de reais para que pudesse evitar confrontos judiciais com sua família.
Além disso, ao longo de toda a entrevista é possível perceber o estado de abalo emocional da atriz causado por essa situação. Com olhos marejados, ela mostra uma conversa com sua mãe, na qual a genitora afirma que “[mãe] não será mais nada além de um título”. Portanto, fica clara a maneira como a tentativa de transformar sua filha em uma famosa afetou o núcleo familiar. A busca constante - e injusta - pelo dinheiro afetou os laços familiares (já que criou conflitos entre os pais e a filha) e causou um grande transtorno. Tais traumas, durante um período tão crucial do desenvolvimento, infelizmente vão continuar atormentando a atriz pelo resto da sua vida.
Por conta da insuficiência normativa no que diz respeito à preservação dos interesses de menores de idade acerca da administração de seus próprios bens, a Câmara dos Deputados apresentou um projeto de lei com o nome da atriz Larissa Manoela, o PL 3917/23, que visa alterar o Código Civil e estabelecer medidas que “fortaleçam a salvaguarda dos direitos e interesses de menores de idade” no que tange à administração dos seus bens e das suas participações em empresas. Em entrevista ao G1, o deputado Pedro Campos, um dos idealizadores do PL, afirmou que “A ideia é que seja possível garantir que a sociedade que está sendo criada é justa com a contribuição que a criança está dando para a geração dessa renda. No caso apresentado pela atriz Larissa Manoela, numa das sociedades em que ela fazia parte enquanto criança, detinha apenas 2% de participação, quando a maior parte da riqueza gerada advinha exatamente do trabalho dela”. Dessa maneira, o trabalho realizado pela atriz, mesmo que permitido, foi prejudicial para ela, visto que anos depois de iniciar sua carreira, perdeu quase todo o dinheiro arrecadado através de seus esforços.
A inserção de crianças no mundo digital em troca de fama e dinheiro está cada vez mais recorrente. Atualmente, muitos pais estão focados em tentar transformar seus filhos em “influenciadores”, de forma cada vez mais explícita. Para observar isso, basta abrir o aplicativo “Tiktok” e se deparar com vídeos de jovens nas situações mais inusitadas, que irão gerar likes - tomando sustos, chorando por conta de “pegadinhas” ou ridicularizações (que fazem outros rirem). O principal problema, porém, é que esse tipo de exercício não é visto pelos pais como trabalho, mas apenas como uma forma de conseguir renda extra para a família usando a imagem do menor. Dessa forma, segundo a professora Nara Helena Lopes, do Instituto de Psicologia, esse tipo de exposição infantil é responsável pela transformação da estrutura familiar. De acordo com Nara, “Meu filho deixa de ser filho, ele passa a ser um objeto que pode trazer uma fonte de renda muito significativa para mim”.
Além disso, outra dificuldade recorrente enfrentada por influenciadores mirins é a de lidar com as frustrações causadas pela “cultura de likes”. Segundo a psiquiatra Lola Morón, uma fração da personalidade humana é configurada pela relação com os pares, principalmente na puberdade e na adolescência. Assim sendo, ela também afirma que aquilo que os outros pensam é um fator importante na formação do caráter individual. Portanto, ao criar uma persona digital, através da qual é possível compartilhar momentos muito específicos das vidas dos menores com o único objetivo de ganhar curtidas, eleva-se o sentimento de aprovação social. Sendo assim, as crianças que crescem com muitos “likes” sofrem com uma expectativa de reconhecimento de outrem ainda maior e, segundo a psicóloga da infância Ana Flávia Fernandes, passam a não se valorizar por si mesmas, o que gera frustração. Ademais, há o risco de problemas de desenvolvimento da identidade. Segundo a pediatra especialista no consumo de novas tecnologias, Evelyn Eisenstein, a tela do celular funciona como um espelho para esses menores, que questionam se o “eu” representado na internet é real e, pior ainda, sequer chegam a formar uma identidade pessoal.
Por fim, outro ponto interessante é a relação entre o uso excessivo da internet por crianças e a baixa performance acadêmica. Apesar da internet ser uma ferramenta útil para pesquisar e ganhar conhecimento sobre diversos assuntos, na maior parte do tempo ela é usada como fonte de um entretenimento fácil e improdutivo. De acordo com estudos dos cientistas Tomaszek & Muchachka-Cymerman, crianças que se tornam viciadas em produzir e consumir conteúdo online acabam por perder o interesse em evoluir na escola. Logo, esses influenciadores mirins, que passam horas em frente às telas, se tornam mais vulneráveis e acabam se tornando reféns de conseguirem manter o ritmo de produção de conteúdo, já que perdem o interesse no desenvolvimento intelectual.
A partir da análise apresentada acima, percebe-se a relação entre o trabalho infantil e a dificuldade na formação e no desenvolvimento emocional e intelectual das crianças e adolescentes na atualidade. A busca por dinheiro tem, muitas vezes, fragilizado as relações familiares e desconstruído a importância de valores fundamentais - como a educação e o brincar - para a formação de jovens, o que prejudica enormemente esses menores. Dessa maneira, é essencial a colaboração entre o Estado, a sociedade e a família - como mencionado no art. 227 da Constituição Federal - para que a criação de crianças e adolescentes no Brasil possa ocorrer da maneira mais adequada, preservando tanto a infância e a adolescência e respeitando os limites de cada uma dessas fases. Através desses esforços, será possível extinguir cada vez mais casos de trabalho infantil no Brasil, seja ele físico ou virtual, e prezar pelo bem estar e desenvolvimento das gerações futuras.
Referências:
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Código de menores: lei n 6.697 de 10 de outubro de 1979, acompanhada de legislação sobre o menor e de índice alfabético-remissivo. São Paulo: Saraiva, 1985.
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12 de junho é o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região (RN), 2023. Disponível em: https://www.trt21.jus.br/noticias/noticia/12-de-junho-e-o-dia-mundial-de-combate-ao-trabalho-infantil. Acesso em 08/09/2023.
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OLIVEIRA, Joana. ‘Influencers’ mirins: a vida de uma geração presa ao celular. El País, 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/26/actualidad/1535295741_535641.html. Acesso em 08/09/2023.
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G1 PE. Caso Larissa Manoela: projeto de lei quer proteger crianças que sustentam famílias financeiramente. G1 Pernambuco, 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2023/08/16/caso-larissa-manoela-projeto-de-lei-quer-proteger-criancas-que-sustentam-familias-financeiramente.ghtml. Acesso em: 07/09/2023.
Autoria: Maria Luiza Galati
Revisão: Luiza Parisi e André Rhinow
Imagem de capa: Site TRT 6
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