top of page

A REPÚBLICA DE FERRO



Ao quinto dia do mês de outubro de 1988, foi concretizada a Nova República brasileira, com a promulgação da sétima Constituição nacional, a “Cidadã”. Naquele momento, buscávamos desvencilhar-nos do arbítrio da ditadura militar, introduzindo um Estado de Direito com foco nos direitos fundamentais, na liberdade e na democracia. Com isso, depois de anos instáveis e violentos, tínhamos enfim uma Constituição Federal que estabelecia instituições fortes conjuntamente com a participação popular no processo político.


O texto da nova Carta Magna tentou, institucionalmente, mitigar problemas sociais, como a pobreza e a miséria, haja visto, sobretudo, a previsão de programas sociais de assistencialismo. Na esfera política, estabeleceu a possibilidade de certo diálogo entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, de modo que foram atribuídas competências próprias a todos no processo legislativo. Isso permitiu que o funcionamento do jogo institucional fosse condicionado a acordos e debates entre os poderes, e não intervenções arbitrárias ou imposições, como ocorria na Ditadura Militar, em que o Executivo intervia no Legislativo por meio da indicação de senadores, os chamados “senadores biônicos”. No plano econômico, o texto constitucional demonstrou uma tentativa de conciliação entre um Estado liberal e um Estado assistencialista, com a instrumentação de um processo de tomada de decisões lento e progressivo, a fim de atender aos diferentes interesses presentes em nossa sociedade. Era, até então, o cenário institucional mais democrático da história brasileira e também prometia ser o mais duradouro. Mas a pergunta é: por quê?


Para responder essa questão, devemos analisar o histórico das Constituições passadas. Primeiramente, a Constituição de 1824 instituiu um Estado escravista. Uma Constituição que legitimava a escravização de pessoas dispensa comentários, não é mesmo? Já a carta constitucional de 1891 era praticamente uma cópia da dos Estados Unidos, se esquecendo, no entanto, de um importante princípio: a incidência da norma. Ora, como esperar que uma lei com profundas inspirações na legislação de outra sociedade pudesse incidir adequadamente na sociedade plural e diversa que é a brasileira? Mais do que isso, esta Constituição, a primeira do período Brasil República, trouxe algo que, infelizmente, se repetiu em todas as demais até 1973: a omissão do direito universal à educação. Você já deve ter escutado de alguém mais velho que cursou até a oitava série da escola, ou de uma pessoa ainda mais velha que estudou apenas até a quarta série. Pois bem, até 1973, o Estado não possuía obrigação legal de fornecer o “ginásio” (o ensino fundamental) ou o ensino médio.


Além disso, as Constituições de 1937 e de 1967 concediam poderes demais ao Executivo, o que fazia com que o Presidente da República inovasse na ordem jurídica como bem entendia. Em 1937, por meio dos decretos-lei e, em 1967, por intermédio dos famosos atos institucionais. Por fim, a Lei Maior de 1946, ainda que fosse a mais “democrática” até então, falhou, entre outros, em um aspecto crucial: o controle de constitucionalidade. O Supremo Tribunal Federal, até 1988, não era uma Corte Constitucional rígida o suficiente para exercer um importante papel institucional através da guarda constitucional, o que resultou, entre outros fatores, na queda da chamada “República Populista” em 1964.


Em contrapartida com o histórico apresentado, o desenho institucional proposto pela Suprema Lei de 1988 nos permite classificá-lo, segundo Lijphart, como uma democracia consensual, isto é, uma democracia que opera dentro de uma sociedade diversa e pluralista, com notórios conflitos de interesses, de modo a promover um consenso político, que inclua mais do que exclua e que procura ampliar ao máximo o alcance do governo majoritário ao invés de se satisfazer com uma maioria simples, como ocorre nos modelos parlamentaristas [1]


Para tanto, não cabe supor que somente uma pessoa, um poder, detenha o monopólio das tomadas de decisão. Ou seja, o Legislativo e o Executivo devem agir como freios e contrapesos um do outro, de modo que seus interesses distintos, bem como os da sociedade em geral, sejam solucionados à luz de um debate abrangente, assim maximizando a participação política. É o que a Constituição de 1988 faz ao conceder muitos poderes ao Executivo ao passo que estrutura o Legislativo, fazendo com que os dois sejam equiparados no processo legislativo. Nesse sentido, Luiz Fernando Gomes Esteves nos dá três características para medirmos o grau de institucionalidade do Legislativo: ele deve ser bem delimitado, deve possuir uma complexidade de organização e não deve se valer de métodos discricionários na condução de seus procedimentos internos [2]. Estas três características constam na Carta de 1988, o que nos revela a consolidação de um Legislativo forte, capaz de evitar arbítrios por parte do Executivo.


Dessa maneira, a pergunta é: por que isto é benéfico para a democracia? Todas as decisões políticas podem alterar substancialmente nossas vidas, portanto, apresentam um risco externo: geram uma insegurança naqueles que serão afetados por elas. Tais decisões, porém, possuem um custo, isto é, se elas são tomadas por menos ou mais pessoas, se há menos ou mais burocracia envolvida, se há menos ou mais tempo para se chegar à decisão. Nessa linha, Sartori estabeleceu uma relação inversamente proporcional entre os custos de uma decisão e os riscos externos gerados por ela. Em uma ditadura, a concentração de poder e dos mecanismos institucionais do Estado faz com que os custos de decisão sejam baixos e, consequentemente, os riscos externos, altos. Em uma democracia, sobretudo a nossa, em que há separação de poderes e mais burocracia e tempo na tomada de decisões, os custos são altos, porém os riscos que tais decisões podem gerar são baixos [3].


Assim sendo, a conciliação de interesses distintos apresentada neste texto, mediada pela Lei Superior de 1988, é melhor apreciada evitando arbítrios por parte do Estado, estabelecendo um diálogo institucional e promovendo uma ampliação da participação na tomada de decisões, fortalecendo a nossa democracia.


Este foi o contexto político brasileiro de 1990 até 2018, cunhado por Sérgio Abranches como “presidencialismo de coalizão” [4], o qual consistia em um estilo de governança pautado no amplo diálogo do Executivo com o Legislativo. Tal modelo permitia ao governo cumprir com a promessa constitucional de assistencialismo social por meio da realização de políticas públicas que buscavam mitigar as questões sociais presentes no Brasil desde o período colonial.


Entretanto, esta coalizão acabou por ter um preço muito alto: casos de corrupção, perda da qualidade das políticas públicas, inércia decisória em áreas críticas como educação e saúde e uso do impeachment como manobra para afastar presidentes sem apoio. Isso nos levou a um momento tenso que chacoalhou as instituições brasileiras.


Este é o contexto que Castells chama de “crise de legitimidade política”, resultado da soma dos problemas citados acima com as crises econômicas do século XXI, o qual pode ser definido como um grande desencanto da população para com aqueles que deveriam ser os seus representantes, gerando, por consequência, uma forte instabilidade política e a ascensão de líderes que criticavam e desconfiavam do devido processo democrático [5]. No Brasil, esta instabilidade política e insegurança democrática levaram a uma data que parecia representar o juízo final para a democracia brasileira: 08/01/2023. Assim como em 1937 e 1964, a ruptura institucional parecia novamente uma realidade, porém é nesse cenário que entra uma característica fundamental instituída pela Constituição de 1988: o controle de constitucionalidade.


Diante desse fato, fica a pergunta: por que este controle é tão importante para a preservação da democracia? Pois é a própria Constituição a autoridade máxima que institui tal democracia, que legitima o nosso Estado de Direito, não havendo, portanto, nenhum poder acima dela. Sim, ela é a Leviatã moderna. Porém, ela é apenas um pedaço de papel, um documento que, na prática, só tem poder se for devidamente aplicado e resguardado, que é o que fez o STF com os inquéritos 4921 e 4922, por meio dos quais procurou investigar e punir os responsáveis pelos atos praticados em Brasília.


Assim, se olharmos para os ataques feitos à sede dos poderes, uma clara afronta à democracia, percebemos que somente a Constituição é apta para frear a intentona de uma minoria de pessoas movidas por interesses aversos à democracia e que ameaçam todo o sistema institucional.


Nesse sentido, Stephen Holmes afirma que, de fato, os indivíduos são compulsivos e impulsivos, são criaturas de hábitos e vítimas de intensas emoções que guiam suas escolhas políticas bem como seus atos [6]. A solução constitucional é justamente a tentativa de conciliação entre o Estado de Direito, o qual possui regras próprias de operação, e o exercício do poder popular, de forma controlada e sistemática. Nas palavras do jurista: “Constituições não apenas limitam poder e previnem tirania, elas também constroem poder, guiando-o a fins socialmente desejáveis e prevenindo caos social e opressão.”


Portanto, o controle de constitucionalidade, exercido pela Suprema Corte, nas palavras de Jeremy Waldron: “prevê a concretização da possibilidade de que o mais alto poder de uma sociedade esteja vinculado por lei e sujeito à lei, e que todos devem exercer o seu poder dentro de um contexto rígido de normas públicas” [7].


Enfim, não me referi, no título do texto, à Nova República brasileira, mas a uma República ideal que buscamos através das instituições e do cenário que já possuímos com a Constituição de 1988, com alguns aprimoramentos e aprendizados. Conforme exposto, a Carta de 1988 foi resultado de uma série de erros e absurdos cometidos pelas Constituições brasileiras passadas. Ainda assim, problemas e crises surgiram, fazendo com que novamente nossa democracia fosse ameaçada.


Logo, a República que buscamos e desejamos, a qual deve ser fortemente sólida e duradoura, pode ser construída daqui pra frente, a meu ver, se observarmos três aspectos fundamentais. Primeiro, a educação universal e gratuita de qualidade, uma verdadeira educação cidadã, com foco no desenvolvimento intelectual de nossas crianças e adolescentes de modo que estes conheçam seus direitos e sejam hábeis a exigir o cumprimento das promessas constitucionais. Segundo, o Executivo e o Legislativo devem continuar a ser equiparados no processo político, sem que nenhum se sobressaia, e devem buscar, por meio da negociação, a solução para problemas concretos. Terceiro, que a guarda constitucional continue sendo exercida, de maneira ponderada, pelo Judiciário, de modo a preservar os direitos fundamentais, a liberdade e a democracia.



Autoria: Enzo Gama

Revisão: Artur Santilli e Anna Cecília Serrano

Imagem de capa: [Disponível em: https://folhapress.folha.com.br/foto/10317006]



Referências:

[1] LIJPHART, Arend. Modelos de Democracia: Desempenho e padrão de governo em 36 países.. [S. l.]: Civilização Brasileira, 2019. 392 p.

[2] ESTEVES, Luiz Fernando Gomez. Processo Legislativo no Brasil. [S. l.]: Casa do Direito, 2018. 353 p. ISBN 8595301093, 9788595301092.

[3] SARTORI, Giovanni. A teoria da Democracia Revisitada. 1. ed. [S. l.]: Ática, 1994. 336 p. ISBN ‎ 8508046081

[4] ABRANCHES, Sérgio. O Tempo dos Governantes Incidentais. [S. l.]: Companhia das Letras, 2020. 304 p.

[5] CASTELLS, Manuel. Ruptura: A Crise da Democracia Liberal. [S. l.]: Zahar, 2018. 152 p. ISBN 8537817643.

[6] HOLMES, Stephen. Passions and Constraint: On the Theory of Liberal Democracy. 1. ed. [S. l.]: University of Chicago Press, 1997. 352 p. ISBN 0226349691.

[7] WALDRON, Jeremy. The rule of law and the role of courts. Global Constitution, [S. l.], p. 91-105, 23 maio 2023.


bottom of page