“Não sou coveiro, tá?” – Jair Messias Bolsonaro quando questionado sobre as 2.575 mortes e os 40.581 casos confirmados de pessoas contaminadas pelo coronavírus (20/04/2020).
Na semana do dia 5 de fevereiro, as redes foram inundadas de memes e promessas de comemoração no caso de um ‘duplo feriado’: o carnaval e a possível prisão do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro. No dia 8, foi divulgada a operação da Polícia Federal contra aliados de Bolsonaro suspeitos de envolvimento com uma tentativa de golpe de Estado. A PF apreendeu alguns documentos, dentre eles uma fita de uma reunião gravada, que detalham um plano de golpe esquematizado pelo ex-presidente e sua coalizão de apoiadores políticos[1]. Segundo o artigo 359-M do Código Penal, “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”[2] configura crime com pena de reclusão de até 12 anos. E, assim, quem passou 4 anos cantando incessantemente “Apesar de Você” verbalizou com mais gosto ainda o verso você vai pagar é dobrado cada lágrima rolada nesse meu penar.
No entanto, a comemoração não foi unânime, mesmo entre aqueles que muito lastimaram o período de governo. O professor de ciências políticas da USP Manoel Galdino utilizou suas redes sociais para criticar o “ethos vingativo” de parte dos progressistas e definir a raiva como parte de “afetos que precisamos rejeitar”[3]. Sua posição parece vir de um lugar de receio da associação da esquerda a um discurso punitivista. De alguma forma, parece-lhe errado que a “tortura psicológica” associada, por ele mesmo, a uma possível prisão seja comemorada. Mas será possível rejeitar algum afeto? E será que existe mal na busca por justiça, taxada de vingativa? É possível buscá-la sem adentrar uma lógica punitivista?
De certo são perguntas complexas com debates ainda mais complexos, mas não consigo ignorar o componente humano que precede a lógica racional e os valores. Afetos são emoções e não foram feitos para serem aceitos ou rejeitados, aliás, não carregam nenhum propósito que não o próprio sentir. É possível, racionalmente, olhar para um afeto e tentar impedir a reprodução dele em uma lógica racional, em um discurso ou em uma ação. Mas, mesmo assim, o afeto existiu, do jeito que foi sentido, queira ou não queira, por bem ou por mal.
Nesse caso, os afetos acumulados desde 2018 refletem as ações odiosas de Bolsonaro: raiva, desprezo, remorso e até, talvez, o tal do desejo por vingança. Nada fora do esperado para um povo que teve de assistir ao chefe de Estado de seu país passear de jet ski enquanto a população competia por leitos de hospital, ou pior, por covas. Como se não bastasse, teve de assistir a isso sabendo que o mesmo sujeito dificultava o acesso às vacinas, incentivava a aglomeração social e zombava dos pacientes entubados por um vírus mortal. Mesmo seguindo a lógica de Galdino, não consigo conceber a ideia de que esses afetos devam ser rejeitados. Se o povo sente felicidade com a possível prisão de um homem responsável por milhares de mortes, se o povo sente qualquer afeto, é porque o povo sobreviveu para sentir, apesar dos esforços do ex-presidente. A partir disso, qualquer afeto é digno de celebração.
Migrando para a racionalidade, parece-se bem ponderada a ideia de que Bolsonaro deva sim ser responsabilizado pelos crimes que cometeu. Não espero que as famílias destruídas pelo desgoverno se sintam vingadas pela sua prisão. Mas talvez possam sentir que a justiça foi feita, perante a própria lei, mesmo que não pelos motivos que esperavam. Quanto ao punitivismo, me parece uma discussão interessante, mas pouco prática. Jair Messias Bolsonaro será, teoricamente, julgado com base no mesmo sistema legal que rege todos os demais Brasileiros. Um sistema falho, que, de fato, está interligado a uma lógica punitivista e que alimenta o encarceramento em massa. Mas me parece desonesto se sensibilizar justamente pelo grupo menos afetado por ele: homens brancos, ricos e poderosos. São eles que fazem as regras e que são capazes de driblá-las quando bem entendem. Bolsonaro ser preso, ainda que com mil regalias, destoaria da dinâmica do sistema legal punitivista de nosso país, que raramente pune um homem como ele, mas faz uma verdadeira caça às bruxas com jovens pretos e periféricos. É a tal da justiça cega, que enxerga raça e classe.
Ainda mais desonesto seria lamentar a prisão punitivista de um ex-presidente eleito com base em discursos punitivistas. A campanha de Bolsonaro gira em torno de combater o problema de segurança e violência com mais violência. Para seus apoiadores, “bandido bom é bandido morto” e ser bandido é ser preto e/ou pobre. Enquanto Galdino discute se Bolsonaro é digno de nossa empatia, as famílias das 24 vítimas da chacina do complexo da Penha ainda enfrentam o luto de terem perdido os seus à brutalidade policial. Brutalidade de uma ação policial condecorada pelo ex-presidente que, ao invés de lamentar as vidas perdidas, congratulou a neutralização do que ele chama de marginais. Onde fica a empatia por essas famílias? Jair Bolsonaro é fanático por um punitivismo que é, ao mesmo tempo, indiscriminado e discriminatório – já que é incontrolado mas muito bem direcionado a uma parcela da população, a marginalizada. É no mínimo um pouco satírico, ainda que improvável, que ele seja declarado culpado e que, de alguma forma, sofra pelo sistema punitivista que tanto defende. A única diferença é que, agora, mesmo sendo o alvo das operações, ele não corre o risco de ser violentamente assassinado no processo.
Ainda, é possível interpretar que a publicação de Galdino aponta como é perigoso se render à raiva acima da constitucionalidade. E, de fato, é muito perigoso que deixemos o nosso ethos vingativo acima de qualquer racionalidade. No fim do dia, não há prisão que remedie ou conforte. Não existe justiça que compense todas as sequelas deixadas por Bolsonaro, mas ela é a única saída democrática. Ainda assim, reforço meu ponto: não acho justo ou possível exigir a rejeição dos afetos por todos aqueles que perderam tanto em tão pouco tempo. É preciso, apenas, tomar cuidado para que não comemoremos nada feito às margens da lei e para que sigamos reconhecendo que a justiça é o melhor caminho. E, caso a prisão aconteça dentro da legalidade, não serei eu que me renderei ao cinismo de fingir que sou evoluída demais pra não comemorar. Comemoro e seguirei comemorando. Afinal, o que posso fazer? Não sou diretora de penitenciária mesmo.
Autoria:Fernanda Abdo
Revisão: Laura Freitas e Luiza Parisi
Imagem de capa: Nando Motta (@desenhosdonando)
Referências:
[1]NETO, Pedro Alves et al. Em reunião, ministro de Bolsonaro defendeu 'alternativas' antes das eleições e admitiu 'risco de conturbar país'. G1, 2024. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/02/09/em-reuniao-ministro-de-bolsonaro-defendeu-alternativas-antes-das-eleicoes-e-admitiu-risco-de-conturbar-pais.ghtml>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2024.
[2] Código Penal (1940). Capítulo II - DOS CRIMES CONTRA AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS, Art. 359-M. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14197.htm> . Acesso em: 17 de fevereiro de 2024.
[3]GALDINO, Manoel. São Paulo, 8 de fevereiro de 2024. Twitter: @mgaldino. Disponível em: <https://x.com/mgaldino/status/1755558976547152268?s=46>. Acesso em: 12 de fevereiro de 2024.
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