Talvez este texto esteja um pouco atrasado. Ano passado falava-se disso de maneira mais explícita e absurda. Espantou-se, discutiu-se e escarneceu-se. A sociedade pouco entendeu, traumas se criaram. Fato é: nesse vai e vem, comportamentos e contradições se revelaram. Perguntas não foram respondidas e extremismos cheios de rancor ascenderam. No entanto, o assunto é sério – muito. Uma certa ala da política ainda costuma manobrar com isso. Impõem-se: geralmente certezas repletas de incertezas complexas. O sujeito se perde, ignorante, e acaba apenas vendo e acreditando nos seus desejos. Quem tem poder, pode creditar e fazer outros acreditarem. Enfim, falo aqui de uma crença ou descrença cega na ciência e religião. Como tal fenômeno, a meu ver, é dualista, podendo ser encontrado em ambos os espectros, penso ter descoberto aqui razão para que este texto exista.
Dois lados
O documentário “A Terra é Plana”, dirigido por Daniel J. Clark [1], teve sua parte no imaginário social de 2020, mesmo tendo sido lançado em 2018. Distribuído pela Netflix, o longa se popularizou por tentar entender um grupo de pessoas que se fez singular ao afirmar e difundir a ideia de que a Terra era plana. Ao contrário do que se poderia imaginar num primeiro momento, não se tratavam de pessoas “burras” ou sem uma pré-disposição ao aprendizado. Na realidade, configuravam-se personalidades embutidas de um certo “espírito científico” de questionar e tentar entender o mundo ao seu redor. No entanto, chamo atenção aqui para o inocente ponto que as faz serem ridículas, porém humanas, pois salientam um lado que poderia ser revelado por qualquer um de nós. Trata-se do viés de confirmação [2], isto é, do direcionamento de nossas justificativas para algo através apenas de evidências que confirmem nossas ideias, e não que as refute.
Além disso, tomo nota do fenômeno da criação de vínculo que ocorre nesses grupos. Eles se unem, se identificam, se fortalecem e se organizam. Com efeito, cria-se uma espécie de comunidade fechada – de amigos – que constroem seu próprio universo com suas verdades. E, assim, obtém-se uma atmosfera na qual o custo para sair da comunidade é maior do que o preço para permanecer nela. Aliás, ali se criam elementos essenciais para a garantia da paz psíquica. Cria-se uma espécie de religião, isto é, de verdades validadas unicamente por nossas crenças e perspectivas que são alimentadas por ilusões. Delineia-se um saber que passa longe do que se possa considerar científico, e que parece também caracterizar tudo aquilo que é discordante como errado e conspiratório. Mas o que leva essas pessoas a esse estado? Aqui me adianto: há uma espécie de falta, um vazio, uma necessidade. Algo precisa ser preenchido. Encontra-se, então, um motivo para que todo o processo conspiratório se inicie.
Por outro lado, se uma descrença cega na ciência pode ser considerada danosa, podendo acarretar a formação de religiões, a crença exacerbada nas afirmações científicas também pode ser extremamente perigosa, não só para a sociedade em geral, mas também para a própria ciência e seu desenvolvimento. No século XIX, por exemplo, o advento do movimento positivista de Augusto Comte (1798-1857), o qual acreditava que a ciência conseguiria solucionar os problemas fundamentais do homem com a natureza, acabou corroborando para que a própria ciência fosse depósito de muita “fé”. Com efeito, qualquer descoberta científica era demasiadamente valorizada, fazendo com que afirmações hoje absurdas para a ciência moderna ocupassem o lugar de senso comum de uma época. Ademais, tudo aquilo que era contrário ao consenso científico era catalogado como primitivo – inferior.
Um exemplo desse espírito foi a tentativa de aplicar a teoria evolucionista de Charles Darwin (1809-1882) na sociedade, estabelecendo-se que havia seres humanos e culturas mais e menos desenvolvidos. A partir daí, intelectuais de uma época supostamente progressista justificavam o racismo com ideias “científicas”, chegando ao ponto de criarem políticas sociais de branqueamento geral da sociedade. O argumento era que uma sociedade mais branca estaria mais distante de povos primitivos, na época relacionados às culturas africanas, indígenas e asiáticas. Era necessário, por algum motivo, afirmar e elevar o povo europeu. No Brasil, episódios como a política de reurbanização da região central do Rio de Janeiro, implementada em 1903 pelo então Prefeito Pereira Passos (1836-1913), bem como as políticas de incentivo à vinda de europeus às terras brasileiras, marcaram nossa época nesse sentido. [3]
Dessa forma, igualmente como no caso dos terraplanistas, tem-se uma situação em que o entendimento das ideias como categóricas e incontestáveis pode corroborar para que estas levem a equívocos e absurdos no decorrer dos anos. Para além disso, é através desse mecanismo que, no século XIX, os sujeitos encontraram um meio de se autoafirmar e se elevar, preenchendo esse vazio interior, essa falta. “Fé na ciência! Olhem ao seu redor... Olhe toda a grandeza e todo o avanço que a ciência trouxe. A ciência ainda há de nos salvar.”
Mas que fé seria essa? Seria ela igual à fé cristã? Quais são as características dessa forma de religião? E essa tal de falta?
Freud explica
Para Sigmund Freud (1856-1939), o homem é tomado pelo medo de sua finitude, de sua morte, de sua existência. Nisso, encontra-se desamparado, sem rumo ou, às palavras do psicanalista brasileiro Jorge Forbes (1951-), “desbussolado”. Tal temática compõe parte essencial da condição humana, podendo ser meio de reflexão para o estudo antropológico de qualquer cultura em qualquer época. Se olharmos para o Egito Antigo, por exemplo, veremos como o dilema da morte se manifesta nos rituais de mumificação. Ou então, se dermos a devida atenção a qualquer forma de organização militar, encontraremos uma certa simbologia subliminar do sacrifício pela pátria como forma de “eternalização”. Da mesma forma, também, não seria difícil sair da boca de alguém a fé de que um dia a ciência poderá ser capaz de curar todas as doenças ou de, quem sabe, solucionar o “problema da morte”. Por fim, no caso do documentário de Clark, observar as reiteradas vezes em que um terraplanista manifesta o quão excluído da sociedade este se considerava e o quão importante essas ideias lhe foram importantes para dar-lhe um rumo.
Dessa forma, a partir do medo da finitude e do desamparo, Freud coloca que o homem é tomado por um desejo de onipotência, tendo a religião papel essencial nisso. A religião é um ponto de chegada, uma resposta dogmática e definitiva. Ela soluciona o enigma de nossa morte, seja prometendo a vida eterna, seja prometendo reencarnações infinitas. Consequentemente, ela nos dá paz, nos relaxa, nos conforta. Sendo assim, é condição essencial para garantir nossa normalidade, nossa bondade e, claro, nossas certezas.
De maneira ampla, assim, Freud aponta para uma “tríplice missão dos deuses” [4]. Primeiramente, uma possibilidade de “exorcizar os temores da natureza”, fazendo com que o homem possa de alguma forma explicá-la e domá-la, não precisando mais temê-la. Um segundo aspecto seria “a reconciliação dos homens com a crueldade do destino”, isto é, da morte, da finitude. A possibilidade de não mais fugir desse destino, mas aceitá-lo mediante uma resposta simples e categórica; basta crer. E então, por último, os “deuses” seriam capazes de “compensar uma vida comum de sofrimentos e privações”. Haveria um pós-vida, um elemento transcendental de pureza. Constrói-se um ideal a ser atingido, um estado fixo, desprezando qualquer resquício de realidade que possa interromper esse caminho. Alguém ou algo precisa dar conta desse desejo.
E é depois de todas essas promessas sedutoras dos deuses que cedemos, alimentando uma poderosa ilusão dentro de nós. Assim, reitero: para o pai da psicanálise, ilusões se dão "quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade"[5]. Ilusões são, portanto, dotadas de um certo fascínio amoroso e hipnotizador, provocando, no entender de Freud, o desaparecimento do trabalho do pensamento, uma vez que somos demasiadamente recompensados ao dar força a elas.
Isso explica a dificuldade que os terraplanistas têm de admitir que estão errados quando se dão conta disso. O sonho – o ideal, a ilusão – traz muitos benefícios. “Se eu continuar pensando, trabalhando, a ilusão que amo e que tanto me dá se esfacelará”. De igual maneira, no caso dos positivistas, a ideia de demolir todos os ídolos é muito custosa. Os deuses são um norte, uma solução e um destino. Uma vez que a ciência retira essas expectativas com relação à religião, ela mesma tem que dar conta delas. Consequentemente, observa-se um aumento no depósito de esperança e o fortalecimento do vínculo afetivo com as descobertas científicas. Tudo isso atrelado à repressão do pensamento que suspeita e duvida, pois, novamente, essa prática é onerosa para a estabilidade psíquica.
Mas, teria a ciência a capacidade de alcançar um conhecimento verdadeiro sem cair na armadilha das ilusões e equívocos? Para além da vida psíquica e da tolerância dentro das relações sociais , penso que tais ponderações abrem margem para uma reflexão filosófica acerca de se podemos de fato alcançar uma verdade sobre as coisas, vindo a conhecer o mundo em si, e não apenas uma aproximação deste. Não só isso, mas também para um debate do consequente fenômeno de criar valores morais a partir de verdades alcançadas, bem como seus efeitos. Ademais, para uma discussão a respeito de quais as metodologias – metafísica, prática, científica ou qualquer outra – são mais adequadas e aceitas para a constituição do saber na atualidade. Mas isso é outra questão, e creio que seria mais prudente enfrentá-la num outro momento, num texto futuro.
Por fim, faço saber aqui que de modo algum me oponho ao saber científico. Muito menos rejeito o saber religioso. No meu entender, ambos são importantes. Creio que o problema central esteja na maneira de encará-lo. Se por um lado tal forma de encarar a ciência como religião é prejudicial para a validade e avanço da própria ciência, encarar a religião de forma sólida e cega também acarreta no não acompanhamento de seu discurso na contemporaneidade, deixando-a fora do debate. Por conseguinte, é necessário encontrar um equilíbrio entre a formação inevitável de ilusões para a paz psíquica e a intolerância ao diferente - àquele que me rejeita, que nega minhas bases, que me é estranho – de forma a garantir o progresso de todos.
Andemos por sinuosas estradas, procuremos múltiplas perspectivas.
Revisão: Glendha Visani e João Vitor Vedrano
Imagem de capa: Carlos Ruas ( @umsabadoqualquer )
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Referências
CLARK J. Daniel. A Terra é plana. Estados Unidos da América: Delta-v Productions, 2018.
ORSI, Carlos. Em busca de confirmar nossas próprias certezas. Revista Galileu, 31 de janeiro de 2014. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/blogs/olhar-cetico/noticia/2014/01/em-busca-de-confirmar-nossas-proprias-certezas.html
AZEVEDO, Nunes. A Reforma de Pereira Passos: uma tentativa de integração conservadora.
ENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao Estado: Psicanálise do Vínculo Social. 1990, p. 79-95
5. FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão.
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