Eu tenho alergia a gato. Tal qual uma a cada cinco pessoas, talvez um pouco menos. O pelo deles faz meu nariz coçar e meu olho arder e… atchim, atchim, e… atchim! Os exames já comprovaram: esses felinos fofos e aventureiros me fazem mal. Mas, por algum motivo, um gato vem até minha casa todos os dias; e, bom, a gente se gosta. Talvez eu brinque com gatos igual faço com a vida: ignoro alguns incômodos e persisto nos afetos.
Afetos que me afetam e nem sempre positivamente. Alimento vínculos que causam coceira e faço carinho em quem me traz espirros. Mania feia que o mundo ensinou às mulheres para suprimir o que pensam. Tanto nos calaram que, por vezes, calamos ideias e desconfortos, calamos o que parece inconveniente. Mas alguns gatinhos são tão convenientes.
E é de conveniência em conveniência que gasto cada restante do meu montante; do dinheiro e de outros bens imateriais que formavam o que eu tinha acumulado. Até porque, gastar um pouco de dinheiro e saúde para ficar perto do gato que vem até minha casa não parecia prejudicial, era só o esforço para sentir uma companhia ao meu lado. De chamego em chamego, fui tomando mais antialérgico que o adequado; do antialérgico ao antidepressivo para remediar todos os incômodos que eu estava suprimindo.
A gente sempre pensa que jogar a sujeira para debaixo do tapete é melhor, como se o problema ficasse menor daqui um tempo. Mas ele cresce. A sujeira cresce, se espalha por toda casa e, quando a gente resolve limpar, tem pêlo pela casa toda. Não é fácil limpar a casa dos vestígios de gato todos os dias, então, o jeito é ir se acostumando e consumindo antialérgicos. Talvez, seria melhor acreditar que eu não fui feita para gatos, por mais incríveis que eles pareçam, mas eu sou teimosa e queria apenas aquele carinho. É que, talvez, nenhum cachorro viria até mim como aquele gato fazia todos os dias.
Para o gato? Eu deveria ser o maior presente da vida dele. Exceto por fazer ele ter vontade de voltar vários dias, o que, naturalmente, reduz seu tempo pela rua. Aqui, em casa, ele tinha presunto, frango, leite e cantos em silêncio para dormir em paz. Eu era o conforto ideal para ele e ele, bom, me fazia bem igualmente, mediante antialérgico de 12h em 12h e algumas limpezas a mais pela casa para eu dormir sem rinite alérgica.
O que eu não via é que, não sendo ideal para mim, eu também não era ideal para ele. As visitas esporádicas não me motivaram a comprar uma ração adequada e, talvez, eu também matasse o gato aos poucos. De presunto em presunto, os produtos industrializados poderiam lhe dar dor de barriga quando ele voltasse para a rua. Mas, no fim do dia, a gente não sabia da dor que suprimimos. No fim do mês, eu não sabia de cada angústia que tinha deixado para depois, porém, o meu corpo ainda sentia.
É que eu tenho dificuldade de largar o osso, mesmo quando a carne acaba. Atchim. Queria conseguir admitir que eu e o gato não fomos feitos um para o outro, queria não deixá-lo com vontade de voltar. Atchim. Queria não me esforçar por relações em que o diagnóstico é claro: elas não fazem bem. Atchim. Mas, enquanto a terapia tenta me ensinar tudo isso, eu escrevo esse texto enquanto faço carinho no gato e respeito o intervalo entre espirros. Atchim, atchim, e… atchim!
Autoria: Ana Cristina R. Henrique
Revisão: Enrico Recco
Imagem de capa: foto própria da autora
Comentários