“Su propia atrocidad torna monstruosa la mera hipótesis de la impunidad. [...] Señores jueces: Nunca más.”
(Strassera, 1985)
Em 18 de setembro de 1985, perante os oito mais sanguinários ditadores argentinos, Julio Strassera, procurador-geral, finalizou seu discurso, proferindo as duas palavras que ficariam guardadas no imaginário latinoamericano: “Nunca más.” Nesta ocasião, a Argentina testemunhava o desfecho de um dos mais importantes julgamentos — se não do mundo — da América Latina. Com efeito, dos 9 ditadores que compuseram as juntas militares argentinas após o golpe em 1976, 5 foram condenados, com destaque para Jorge Videla e Eduardo Massera, à reclusão perpétua. Isso é extremamente notável, pois foi uma das poucas ocasiões em que ditadores latinoamericanos foram de fato postos atrás das grades. O caso é contado no filme indicado ao Oscar “Argentina, 1985” e ilustra uma das mais importantes manifestações da memória dos abusos cometidos durante a sanguinária era das ditaduras na América Latina.
Dois anos depois, em 5 de outubro de 1988, na proclamação da nossa Constituição Cidadã Brasileira, Ulysses Guimarães pronunciou eloquentemente: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo!” — seguido por aplausos. No entanto, isso é de fato verdade? Será mesmo que o povo brasileiro realmente tem ódio e nojo a ditaduras? Ao contrário da Argentina, nossos ditadores e torturadores seguem impunes; a polícia militar intervém mais violentamente do que nunca, com licença para matar pretos, pobres e LGBTQI+; direitos indígenas são cada vez mais cerceados; mulheres são continuamente vítimas de abusos e violência. E, como se não bastasse, em 2018, o Brasil elegeu como Chefe de Estado um idólatra da Ditadura Militar, que sem nenhum pudor é simpático ao status quo mencionado. No último 31 de março, completaram-se 59 anos do Golpe Militar de 1964, portanto a reflexão é válida: será que o Brasil realmente detém a memória sobre a ditadura militar?
Muito provavelmente você conhece o famoso dito popular “relembrar é viver” ou os dizeres de George Santayana: “Aqueles que não conseguem lembrar o passado, estão condenados a repeti-lo”. Ambas as citações nos convidam para um ato reflexivo, debruçando-se sobre o passado e buscando compreender como tais experiências e aprendizados podem tornar o presente melhor. Ao não conhecermos ou lembrarmos da nossa história, estamos sujeitos a erros e repetições que poderiam ser evitados. Embora a lembrança tenha um papel no conceito de memória para a história, ela não é o único elemento. A memória vai muito além da simples e mera lembrança.
A memória, para a história, é um processo muito mais complexo e contínuo, sendo um produto de diversas interações e construções sociais subjetivas de cada sociedade. De acordo com o historiador Leandro Karnal, ela constrói a base para uma sociedade existir, sua razão de viver: em outras palavras, sua identidade. Ele também explica que um povo sem memória é fácil de ser tomado. Por isso, não é difícil compreender que um povo sem identidade, isto é, sem memória, está sujeito à disseminação de ideologias extremistas e de instituições que reforçam o que deveria ser superado.
“Un pueblo sin memoria es un pueblo sin futuro”, como dizem no Chile, país que talvez tenha vivenciado a mais brutal ditadura latinoamericana nas desprezíveis mãos de Augusto Pinochet. Essa frase, gravada nas arquibancadas de um estádio de futebol em Santiago onde diversos torturados eram mantidos, está propositalmente escancarada e preservada para lembrar o que jamais deve ser esquecido: a sanguinária ditadura chilena. Assim, a importância da memória das ditaduras está dada: preserva-se a memória dos abusos cometidos para impedir ao máximo que algo assim venha a acontecer de novo. Como a memória é socialmente e subjetivamente construída, ela pode muito bem ser manipulada, e por isso não é raro encontrar cidadãos brasileiros que ainda idolatram o período, esquecendo os abusos e os despotismos e blindando-se no dito “Milagre Econômico”.
Aqui cabe a reflexão em relação à ditadura brasileira: que história queremos contar? Que memórias construímos sobre o período? A tão otimista história do crescimento de 11,1% do PIB — o dito cujo “Milagre Econômico” — e as grandes obras de infraestrutura, nas quais muitos ainda se apoiam para dizer "na Ditadura Militar o Brasil era melhor"? Ou, em contrapartida, a história dos “Anos de Chumbo” composta por violações massivas de Direitos Humanos, violência, censura, repressão e despotismo? Ao contar a primeira história, todos omitem o preço que o Brasil da Nova República herdou — a impagável dívida externa, a hiperinflação e o agravamento massivo da desigualdade social. Portanto, a escolha de que história queremos contar é óbvia e certamente não é carregada de otimismo e saudosismo. Aparentemente, porém, ela não é predominante.
Em 1979, ainda durante o governo militar de João Figueiredo, foi aprovada a tão falada Lei da Anistia. Felizmente, como resultado da luta social, a Lei da Anistia concedeu a liberdade aos presos políticos e exilados e direitos sociais foram reimplantados. Contudo, ela carrega um lado perverso que ainda nos assombra. Ela trouxe consigo a impunidade dos torturadores e a eximição da responsabilidade e culpa por todas as mortes e desaparecimentos a mando do Estado Brasileiro, dificultando as investigações e a busca pela verdade. Em resposta a essa faceta perversa, a Comissão Nacional da Verdade, implantada em 2012, publicou uma lista com 377 nomes de perpetradores de abusos, recomendando, mas não condenando, medidas legais de responsabilização. Com efeito, essa investigação foi o ponto de partida para a condenação do torturador Carlos Brilhante Ustra do Doi-Codi, exaltado pelo ex-presidente. Em duas ocasiões, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA pelo caso Herzog e pelo caso da guerrilha do Araguaia, nos quais não houve qualquer responsabilização interna.
Apesar de existirem manifestações de memória sobre as ditaduras latino-americanas em demonstrações públicas, frases estampadas, investigações, documentos e muitos outros suportes, o caso do Julgamento das Juntas Militares na Argentina em 1985 é um caso raro. É raro, porque ele aplica o que não foi, mas deveria ter sido feito no Brasil, no Chile e em muitos outros países: a punição dos torturadores. A impunidade os torna intocáveis, como se fossem inocentes por todos os atos que cometeram, o que é um absurdo. No aniversário de 59 anos do Golpe Militar, esse texto tem como objetivo trazer a reflexão sobre a importância da memória de um dos momentos mais sombrios da história brasileira. Por fim, ditadura, nunca mais!
Autoria: Luiz Fernando Aranha Pereira (EPEP)
Revisão: Anna Cecília Serrano e Laura Freitas
Arte: Giulia Lauriello
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