Todo o tempo, ao meu redor, frágeis e puros elementos nascem e perecem à vista de todos. Lampejos de cores, formas opacas e sóbrias, sutis como carícias de orvalho em folhas de orquídea. Flores e luzes, tintas e texturas e aromas, cascas e casas e lascas e cacos, e o tempo que os devora. Universos particulares intercedendo-se em conjuntos, nuvens acinzentadas, pingos a precipitar como chuva sobre as mentes rasas dos grandes afortunados, cuja pobreza de alma me arrebata. Poesias, histórias e pensamentos escorrem como chuva pelas ceras e gorduras e plástico de suas peles, e descem pela bruta aspereza do asfalto de seus cotidianos, e somem de vista nos buracos negros dos bueiros de suas memórias recentes, desperdiçadas.
Todo o tempo me vejo nu em um festival de moda contemporânea, remexida e reinterpretada por critérios desesperados de críticos que tanto acometem-se ao reconhecimento, que ditam que a beleza é a tendência de um, a vanguarda de outro. Que dizem o sim e o não, o certo e o errado e refazem o código moral de quem corre, bêbado e protegido da insalubre realidade, atrás de momentos inebriantes. Tal como um nadador, cerram os olhos ante o fluido inerte e incolor em que se deixam cair – pois creem, de toda forma e com tamanha força, que, no momento em que o tocam embaixo, a forma rompe sua película cristalina, remexe em seu contorno e os abraça inteiramente –, somente para aterrissarem em concreto.
Todo o tempo me faço e refaço num teatro de marionetes onde tentam conter meus impulsos infantis, com regras ilógicas, insuficientes e ineficientes. Exibo papéis medíocres e irrelevantes, com o olhar de quem nada vê, mas que vê o que dizem não existir, que seja algo inerente, disfarçado e íntimo a cada uma de um sem-número de unidades. E travestidos de lobos, todos preparam e postam enormes banquetes, com exibições voluptuosas e manias de grandeza, para degustarem o momento em que possam se esquecer de quem são, de que nada são e de que nada do que fingem fazer é de fato real.
De tudo veem e tudo provam. Insaciavelmente, o que quer que ditem os seus gostos refinados, pedem, dormentes e insensíveis, o que há de mais estimado, de mais complexo, de mais completo. Diz-me a lógica que o que quer que se obtenha por preço, para quanto menor sentir-se o valor de um item, menor valor para ti ele terá. Se te acostuma com baixos valores e altos recursos, se aprende que o mundo te deve mais do que exige de ti. Pouco custa, daí, para que se irradie esse sentimento para outros recantos da vida, se aprenderes que essa é a lógica imperativa que determina a existência. E muito convincente se faz essa filosofia, quando o esforço para destituí-la não faz sentido para o meio.
E resta então o origami de que me fiz, a desfigurada forma de um objeto que não se sabe interpretar e que não se aprendeu a observar idealmente. Pois do origami, hei de me desdobrar entre possíveis identidades para merecer, quem sabe, um lugar de destaque entre as vitrines de perecíveis, comidas, petiscos e guloseimas. Me refaço de sabor, de aroma, de detalhe e delicadeza, para abastar-lhes o deleite e o consumo que os nutre e me decompõe por toda hora.
Eu sinto, porém. Que pouco a pouco, pelo tempo, escorro em direção a um resultado que ninguém pode contemplar. Suas visões, treinadas demais para objetos mais próximos, lamentam a miopia que os impede de ver adiante, além de todos os espetáculos, para o que têm adiado por tanto tempo, por tantos anos, por décadas e séculos e eras inteiras. Vejo um progresso se formar como nuvens no horizonte, como as águas que se elevam para depois virem abaixo e, de novo: a chuva. Dará, ao toldo de papel e às tendas de machê, a pura corrosão. Dará, aos potes descobertos, um tempero específico. Dará, ao tolo, a sabedoria e, ao sábio, a felicidade. Dará, ao nada, um propósito e, ao excesso, a relatividade. Dará, ao leve, peso próprio e, ao pesado, a leveza. E saberemos neste dia que os profetas, as profecias e os bons presságios, as mensagens positivas e os desejos de conforto traziam consigo a mais importante peça da existência humana, com a qual não sabemos lidar por ser tamanha sua estima, tamanha sua magnitude, tamanha sua transparência: amor. Como as águas de março, sempre recai sobre nós o periódico lembrete do que temos esquecido por aí, enquanto corríamos embriagados como crianças atrás de doces.
O público todos os dias devora as artes e os simulacros feito as mais famintas hienas no caos afortunado de suas rotinas e ingere curtas doses de sentimentos irreais e sensações com as quais mais facilmente se pode lidar. No fim das contas, não há sentimento sequer. Existe ele, apenas, para a própria arte, na beleza crua de sua obra, na pureza de seus artistas a sorrir e a chorar quando se lançam palco adentro para provarem de que são. E o puro amor, no frenesi dos sentimentos de todas as estruturas que trouxeram à vida suas rudes ideias, é recebido com rajadas de aplausos troianos e inseguros a se misturar, que vêm a partir do individual desgosto dos espectadores que fizeram de si, o próprio show. Existem amores que não se sabe facilmente receber. Existem amores que não se vê porque não se quer, porque não se pode ver, pela cegueira noturna das retinas queimadas dos pobres coitados que fitaram tão descaradamente as luzes, que aprenderam a ignorar os brilhos.
Então fechamos as cortinas, e todo o fulgor dá margem às cinzas, e o daltonismo da plateia faz ocultar a poeira que retorna aos seus corpos. Os artistas pouco a pouco a desbotar as lindas cores de seus nobres corações, e pouco a pouco erodindo as maravilhosas esculturas de suas personalidades. Os espectadores não têm casas para as quais retornar. O que eles têm, apenas, são moradias. E para as moradias retornam, com pesadelos ou calafrios ou estranhezas ou indiferenças. Naquela noite, dois universos se aproximaram sem se tocar, e afastaram-se novamente, como pêndulos que oscilam lado a lado, que se aproximam, e então tornam a se afastar. Talvez esse intervalo seja o único em que todos possam se uniformizar numa só massa de temerários.
E por fim chega o medo. É com facilidade que dormimos à noite ao sabermos do dia que se repete, do escorrer de suas horas noite adentro, enquanto fazemos, atarefados, mil e uma brincadeiras, para fingirmos que há sentido nas mais escancaradas e artificiais estruturas humanas. Mas o medo dos espectadores não é de vê-las ruir, não é de que não vendam-se os ingressos e não é da violência em descontrole que nutrem uns pelos outros. Temem, porém, o conhecimento que treinaram-se a desconstruir, e que refaça-se o sentido que esqueceram de ver. Temem que o plástico derreta e revele a inóspita e pútrida carcaça de seus corações, e temem que a humanidade de que tentaram por tanto fugir com suas rebuscadas burocracias retorne e escancare seus pecados no mais expressivo e cínico sorriso.
Vestindo peles de caçador, temem a obviedade da matéria. A quebra da rotina, as lógicas ideias que negam seu individualismo, o sorriso da inocência, o raiar do sol em dias serenos, o frescor dos ventos nos topos das colinas, o latido de cachorros felizes a perseguirem uns aos outros, as memórias límpidas, vívidas, de dias distantes e mortos do início da vida, o abraço, o beijo, o carinho, o afeto, a proximidade, a pureza, a beleza e a sinceridade. Não é nenhum bicho de sete cabeças que os intimida. Não é o mar sob a tormenta, não é o estrondo dos trovões. Não é a finitude ou a mortalidade, não é a violência ou o fogo ou o ácido. Não é a desgraça ou a ira ou o ódio. O temor maior dos lobos é o amor dos cordeiros.
Autoria: Rodrigo Ferreira
Revisão: Artur Santili e Anna Cecília Serrano
Imagem de capa: Prey lamb Banque d’images noir et blanc, de Alamy
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