Talvez seja culpa minha, essa mania de prestar condolências àquilo que não foi e não será. Talvez seja culpa minha, falar em luto pelo inexistente.
Já faz três anos, disseram-me. Já acabou, já foi, esquece, supera. Não tem mais o que fazer, e não tem mais do que reclamar. Adianta de quê, chorar pelo leite derramado?
E talvez seja culpa minha, chorar pelo leite derramado, lamentar os momentos que nunca vivi, sofrer pelas palavras que nunca falei, doer pelas coisas que não pude tocar. Doer pelas coisas que nunca poderei tocar.
Acho que a gente fala pouco sobre o que foi perder um pedaço da vida, passar o verão em casa, enlouquecer a sós — enlouquecer em conjunto, mas com um companheirismo tão distante que era tal qual a solitude. Dizer adeus por telefone, sem abraço, sem carinho, sem calor. Como se pode deixar de lado? Como se pode falar “já foi, então tudo bem”? Como se pode deixar para trás? Como se pode não falar em luto?
E, sim, foi muito pior para muita gente. Como se pode falar em luto sobre o que não aconteceu, e não sobre aqueles que se foram? Talvez seja culpa minha, esse egocentrismo todo. Sou fruto de egoísmo, descendente direta da falta de bom senso. Como se pode falar no que não foi, e não sobre aquilo que não é mais?
Mas é que me fez falta. As não-festas fizeram falta. Os não-bares fizeram falta. Os não-cinemas fizeram falta. Os não-abraços, os não-beijos, os não-carinhos fizeram falta. As não-piadas fizeram falta. Para minha surpresa, até as não-aulas fizeram falta. Os não-dias. A não-vida. Tudo coisa que nem foi, nem é, nem será. As não-coisas. Parece tão fútil agora, mas como se coloca em palavras o anseio por tudo que não existiu? Como se explica a dor de assistir, três anos depois, a outras pessoas terem o que deveria ter sido meu, terem a proximidade que me tremia os ossos por não ter?
Tento viver um dia de cada vez e focar no hoje. Acho que tenho algum sucesso, mais do que já tive, mesmo antes de o mundo acabar. Atento-me a coisas diferentes, coisas de verdade. Funciona, passa, melhora. Já foi.
Talvez seja culpa minha, viver no passado. É tão difícil deixar ir, ignorar o jeito que o coração aperta e dói e dói e dói lembrando das risadas que nunca soaram, das conversas que nunca passearam pelos corredores daquele prédio, de todas as vezes que eu não pude segurar a sua mão. A gente acabou tão cedo, eu e você. A gente teve que ficar tão longe que a gente esqueceu o que era almoçar junto, andar naquela exposição cultural, dividir barra de chocolate e se encontrar depois da aula. A gente esqueceu, meu não-amor, enquanto estávamos eu aqui e você lá. Nós éramos pequenos demais para o apocalipse.
Eu acho que também não teria durado muito, acho que teria acabado de qualquer outra forma. Eu preferia qualquer outra forma, brigando e gritando na sua casa, chorando na frente do portão da escola, prometendo ir embora para sempre: até o nosso não-término fez falta. Às vezes, eu queria não ter desistido de você, queria ter insistido um pouco mais, queria ter te pedido para ficar — foi culpa minha (você discorda, você pediu perdão, eu lhe ofereci todo o perdão do mundo), eu esqueci.
Não sei se cheguei a te amar, acho que não. Não deu tempo, não sinto sua falta. Sinto falta do que poderia ter sido, sinto mais falta dos nossos almoços e da pitangueira sob a sombra da qual a gente ficava do que de você. Sinto falta do nosso não-namoro, daquele que não aconteceu, aquele que não foi, não é e não será. Não seria. É fácil prestar condolências a possibilidades e alternativas, mais fácil do que pensar no que realmente se perdeu.
Tento viver um dia de cada vez e focar no hoje. Falho constantemente. Você lembra daquela pitangueira? Lembra do jeito que a gente ficava na ponta do pé para alcançar os frutos, lembra como você dividia as pitangas entre nós dois e sempre me dava as mais vermelhas, porque são as mais doces? Você lembra, você pensa nisso? Você pensa em mim de vez em quando, de passagem, quando você vê aquelas balas azedas de morango na banca ou quando você passa na frente do SESC ou quando você escuta Kid Abelha? Você lembra da nossa música? Ou sou só eu que fico remoendo memórias e pensando nas não-pitangas, nos não-almoços? Você lembra como a gente dançava no pátio atrás da quadra? A gente nem conhecia a maior parte das músicas que tocavam por ali.
Eu finjo que é tudo sobre você porque eu não tenho palavras para todas as outras não-coisas. Eu finjo que é sobre você, sobre os nossos não-encontros, sobre os nossos não-olhares. Não sobre todos os momentos perdidos, não sobre amar de longe e querer ter perto, não sobre o meu estado de não-vida, vendo o tempo passar sem mim. Talvez seja culpa minha, essa melancolia toda. Culpa minha, a dificuldade em deixar ir.
Um passo de cada vez — hoje deixo você ir. Prometo não te usar mais de barreira para evitar olhar para todo o resto. Prometo não falar seu nome só porque dói demais falar o meu. Prometo só falar do nosso não-amor quando este for o objeto central na minha mente, quando for sobre nós. Prometo não procurar pela sua ausência em cada canto, cada fruta, cada música com ritmo calmo o suficiente para dançar a dois.
Eu nem conhecia a maior parte das músicas que tocavam por ali. Eu nem gostava delas tanto assim. Eu gostava mais das pitangas do que de você.
(E como testamento do quão difícil é falar sobre o que não foi, e do quanto nosso não-amor ainda assombra minha memória — nunca foi minha intenção escrever sobre você. Você é apenas uma lasca num enredo muito mais longo de coisas que não foram, não são e não serão. Eu queria voltar no tempo.)
Autoria: Anna Cecília Serrano
Revisão: André Rhinow e Artur Santilli
Imagem de capa: Túlio Mugnaini (Brasil, 1895-1945)
Comments