A página em branco me atormenta. É preciso ajustar cada detalhe antes de começar. Times New Roman, tamanho 12, justificado, espaçamento 1.5. Não tem como começar algo bagunçado. Cada palavra milimetricamente pensada, arquitetada, colocada. Se deixasse no papel ideias soltas, ter que juntá-las depois seria de uma dor quase insuportável. Silêncio, estou tentando me concentrar nessa missão. Checo tudo, o horário, a janela semiaberta, as últimas notificações no celular que descansa sobre a mesa, mas creio que ainda não é o suficiente. Uma paranoia estranha ainda vaga pela minha cabeça e diz que tudo tem que estar sob o meu controle. Cada passo. E junto ao tempo que passa, estou ansioso pensando na próxima etapa. São 18:00.
Você está com medo?
Ou tem medo?
O estar assumiria uma emoção talvez momentânea da sua parte, ao passo que o ter já faria parte constituinte do que você é. Carrega consigo um sentimento permanente, que, nas horas inesperadas, surge bagunçando suas ideias, incapazes de dar conforto. Você tem medo, eu sei.
Quando o alarme tocou, 6:47, um pouco de luz entrava pela fresta da cortina da sala. Você dormiu de porta semiaberta. Tinha medo de não acordar para o trabalho, mas deixou o alarme na sala. Isso obrigou você a levantar da cama no pulo para dar fim àquele barulho perturbador, um rádio-relógio herdado de sua avó. Naquela madrugada, o sono fora interrompido umas duas vezes em meio aos seus sonhos-pesadelos. Conseguiu dormir novamente, quando suas pernas pararam de tremer e seus braços relaxaram no travesseiro que apertava forte. Mas já era manhã, e o dever chamava. A distância percorrida descalço no chão gelado era o suficiente para despertar. Tinha 10 minutos para o banho, 7 embaixo d'água, para ser exato. Após se secar, o celular apitava com uma lista de afazeres para o dia que fora programada com horários contados desde semana passada.
Café da manhã, sempre o mesmo. Cortava uma banana em rodelas de igual espessura enquanto esquentava o leite por 45 segundos no micro-ondas. Três colheres e meia de café solúvel. A banana ia sobre um iogurte natural desnatado. Adoçava tudo com mel. 7:30. Era hora de ir ao trabalho. Saiu de casa sobressaltado com a cafeína correndo rápido pelas veias, sua mala de uma alça e um sapatênis velho.
Na caminhada até o transporte, escutava as músicas cujas letras havia decorado, esboçando um sorriso quando tocava seu pop favorito. Mas logo fechou a cara. Descendo as infinitas escadas do metrô, lembrou que a vida não era essa beleza toda, lembrou do caos, do barulho, daquele tormento que não o deixava relaxar. Seu trabalho era do outro lado da cidade, e, a cada minuto, ficava mais irritado com as luzes fortes e o aviso sonoro ensurdecedor do fechar-portas. Talvez fosse uma crise dos quase-trinta-anos, não se contentava mais com o trabalho, não via sua família, todos seus relacionamentos deram errado. Por um momento, refletiu sobre tudo isso. Mas não havia tempo, chegando no trabalho sabia que teria de entregar os relatórios atrasados do mês passado e que seu chefe já não o amava tanto assim. Resultados: foco da empresa e foco da sua vida desde os 15 anos. Subiu as escadas rolantes andando para completar a missão mais rápido. Você tinha medo.
Cumprimentou rapidamente uns três colegas antes da primeira reunião do dia, não estavam muito felizes com a notícia de desligamentos na firma. Teve que ouvir do chefe depois, atrasos não eram admissíveis e os clientes estavam à espera do relatório. Colocou todas as suas energias nisso pela manhã. Pesquisa escreve café confere planilha site café apresentação escreve imagem corrige índice previsão café escreve. Chega. Prezado Antônio, segue em anexo o relatório do mês passado para revisão. Atenciosamente,. 11:56.
Foram almoçar no restaurante a quilo da esquina. O sabor da comida fora se perdendo com o tempo, talvez pela quantidade de vezes que ia lá, talvez porque estava sempre com a gastrite atacada. A variação no seu prato era pouca, mudava alguns itens a cada semana, como se o prato do dia alternasse entre cinco modelos pré-definidos em sua cabeça. Mesmo assim, gostava da experiência não-tão-gastronômica com os colegas. Voltou antes ao escritório, 42 minutos de almoço eram suficientes. Mais uma xícara do elixir preto para não dormir em cima do teclado enquanto atualizava três planilhas concomitantemente.
A parte da tarde foi um pouco menos corrida, não teve que dar satisfação para mais ninguém durante as horas em que seus olhos ficaram presos à tela e seus ouvidos a um misto de ligações com clientes, fofocas do trabalho e sirenes cotidianas. Mesmo assim, estava nervoso com o fim de ano e suas obrigações, não só no trabalho. A ideia de viagem em família era aterrorizante, ainda mais se tratando de cinco longos dias ouvindo seus tios falarem, sem parar, as mais inconvenientes palavras. Até gostava do calor, mas a areia da praia causava um tanto de estranheza, com todos aqueles microrganismos. Medo. Ficou algum tempo ponderando quão chato seria cancelar tudo, afinal, havia se comprometido há quase um ano. Passou. Se estava combinado, estava combinado, ponto final. Você iria, sim.
As xícaras de café misturadas com o nervosismo diário levaram até o banheiro do último andar. Queria mesmo era vomitar, para ver se expulsava toda aquela náusea que perturbara o dia inteiro. Saiu disfarçadamente e voltou ao seu posto com naturalidade. Abre planilha unifica função calcula ctrl Z projeção análise conversão volátil margem ok. Ok. Sentiu sua cabeça latejando e tomou uma dipirona para aliviar, mesmo que já não fizesse muito efeito. Foi à sala de Antônio apresentar a proposta do novo projeto e as avaliações finais dos antigos com o coração um pouco mais acelerado que o normal. Aprovado. Não sentiu felicidade, apenas um alívio e um pouco menos de peso em seus ombros, ou em sua cabeça. Mais uma etapa concluída dentre tantas que faltavam. Saiu mais cedo. 18:44.
O caminho de volta à casa foi diferente. Foi de reflexão.
Sim. Eu tenho medo.
Dias, horas, minutos, segundos. Que tortura é pensar no tempo. Acho que posso chamá-lo de fogo, queima tudo lentamente, fazendo sofrer a cada instante sem matar por completo de uma vez. Deixe queimar, já me disseram. Mas como aceitar algo sobre o qual não posso ter controle? Sei que, uma vez alçado, não há como parar. E o tempo é fogo desde que nascemos então, suas chamas se espalham talvez não tão lentamente, são permanentes em nossas vidas e nos matam aos poucos. Sinto que, às vezes, ele me sufoca. Ele ganha.
Tenho medo de não estar vivendo, de estar respirando as cinzas que, aos poucos, me destroem. Qual foi a última vez que você se sentiu realizado? E quanto tempo durou? Não sei. Um saudosismo aqui poderia fazer sentido, talvez o passado e as memórias evocadas tragam conforto nas reflexões de lembrança. Na memória, guardamos mais os bons momentos vividos e nos esquecemos dos sombrios. Quero voltar. Aos bons tempos. Quais são os bons tempos?
Essa dúvida é inquietante. Memória, por que é tão confusa? Um pouco mais de clareza me ajudaria nesse momento. Se o passado era bom, por que não sei dizer para que ponto dessa linha quero voltar?
E se vivo no presente com saudade do passado, por que anseio tanto o futuro? Tempo, você poderia me ajudar a respirar mais calmo às vezes. Queria não precisar ou não querer estar à sua frente. Não colocar o alarme tão cedo, não contar os minutos do banho ou repetir o café da manhã. Rotina. Talvez seja esse o problema. Um ciclo que se repete a cada dia, a cada semana, a cada ano. Tenho medo que seja assim para sempre.
Cheguei em casa.
Que triste é despertador acordar banho café correr metrô oi trabalho relatório computador prezado reunião planilha almoço café trabalho metrô casa lanche remédio dormir. E de novo, e de novo.
Foram 33 dias, 18 horas e 41 minutos na escrita deste texto. Na verdade, eu queria ser você, tempo. E ter controle. Assinar, em todos os momentos
Atenciosamente, Tempo
Autoria: Guilherme Caruso
Revisão: Anna Cecília Serrano e Beatriz Nassar
Imagem de capa: Pinterest
Kommentarer