No contexto da democratização do acesso ao sistema de ensino de qualidade e equitativo, discutir a asserção das identidades dos estudantes é fundamental, principalmente, quando falamos de pessoas oriundas das camadas mais pobres que, devido a questões históricas do cenário brasileiro, foram excluídas por uma estrutura social segregadora.
A partir de 1990, a criação e a aplicação de políticas públicas afirmativas reivindicadas por movimentos sociais, sobretudo pelo Movimento Negro, progressivamente viabilizou a entrada de estudantes negros, indígenas e egressos de escolas públicas ao ensino superior. Através da adoção dessas ações afirmativas, consolidou-se um empenho pela reparação e pela compensação das desigualdades sociais abissais entre as populações negra e branca, que se intensificam desde o período pós-escravidão. Esse debate também contribui para refletir sobre a discriminação racial e o racismo no Brasil. Portanto, ao desarticular ações afirmativas conquistadas a duras penas — como Prouni, SiSU, Fies e Enem —, houve um retrocesso na redução das assimetrias sociais, na democratização e na expansão do ensino superior no país.
Atualmente, o ingresso de estudantes oriundos de escolas públicas às universidades públicas e privadas do país, como pretos, pardos e indígenas — que histórica e majoritariamente fazem parte da camada social mais desfavorecida do Brasil —, tem sido possível por meio de ações afirmativas. Destacam-se o Sistema de Seleção Unificada (SiSU), o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa Universidade para Todos (Prouni), que selecionam estudantes a partir da nota obtida no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Esses programas do Governo Federal têm em comum a finalidade de facilitar e ampliar o acesso de estudantes de baixa renda ao ensino superior, tendo em vista as barreiras para o ingresso desses jovens à universidade pública no Brasil. A criação desses programas parte do entendimento de que estes competem por vagas de forma injusta com estudantes egressos de escolas particulares, que possuem um nível de qualidade educacional superior ao oferecido pelo ensino educacional básico das escolas públicas.
Com isso, é de suma surpresa e espanto que o atual governo brasileiro institua uma Medida Provisória (MP), com força de lei no ato de sua publicação no Diário Oficial da União, sobre o Prouni, um programa de extrema importância e relevância para a sociedade brasileira, sem ao menos proporcionar à população, aos especialistas de educação, aos professores e aos alunos a oportunidade de expor suas dúvidas, opiniões e posicionamentos acerca da MP 1075/2,1 que altera as leis 11.096/05 e 11.128/05 que regem o Prouni.
Segundo o Secretário de Ensino Superior do Ministério da Educação, Wagner Vilas Boas de Souza, a justificativa para a instituição de uma Medida Provisória em vez de um Projeto de Lei, a qual dificulta a deliberação direta sobre a proposta com a sociedade, está relacionada à emergência do acesso à universidade de estudantes de escolas particulares que “também” conferem aos critérios de renda familiar per capita do Prouni de até R$ 3.300,00. Ademais, o Secretário ainda comenta que, na análise dessa política pública, há uma certa porcentagem de vagas oferecidas pelo Prouni que não são pleiteadas por ninguém, e logo, essas vagas seriam direcionadas a alunos egressos do ensino básico de escolas particulares.
Por outro lado, percebe-se que Jair Bolsonaro e o Ministério da Educação preferem se abster da reflexão sobre porque há vagas ociosas no programa e deixam de corrigir as problemáticas da “não oferta” de uma educação pública de qualidade, o que incorre na redução proporcional do número de alunos de escolas públicas ocupando as vagas do programa, tornando-as ociosas, principalmente, no contexto de instabilidade econômica trazido pela pandemia da COVID-19. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) de 2019, mais de 80% dos estudantes do ensino fundamental e médio estudam em escolas públicas. Portanto, há alunos para ocupar as vagas do Prouni, o que não há é uma educação pública que possibilite o melhor desempenho desses estudantes no Enem.
Com relação ao Enem, a queda recorde no número de inscrições no Enem 2021 de egressos das escolas públicas foi um reflexo da dificuldade de mobilidade do ensino presencial do setor público para o ensino online, bem como da falta de acessibilidade de muitos estudantes à internet e aos aparelhos eletrônicos para assistir às aulas à distância. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), o Enem 2021 teve 44% de recuo de inscrições com relação à edição anterior — algo preocupante visto que o exame é a principal porta de acesso ao ensino superior do Brasil por meio de programas como o Prouni. Dessa maneira, como o presidente, Jair Bolsonaro, e o Ministério da Educação esperam que não haja vagas ociosas no Prouni quando os estudantes pobres, pretos, pardos e indígenas não conseguem nem sequer ter acesso a uma educação de qualidade para realizar o Enem e, por fim, pleitear as vagas oferecidas pelo Programa Universidade para TODOS?!
Reforçando que as ações afirmativas no Brasil não estão restritas somente à população negra, uma vez que também são realizadas em prol de grupos que se encontram em desvantagem social. Além disso, a expansão qualificada do acesso à educação superior tem um grande potencial para contribuir com o desenvolvimento da sociedade como um todo. Segundo a jornalista Christine Vanstreels, “[...] historicamente, ainda, sabe-se que determinados grupos étnicos têm dificuldades em ingressar e permanecer na educação superior, onde são largamente sub-representados – pretos, pardos e indígenas. Tal se dá por razões históricas, relacionadas ao nascimento e desenvolvimento do Brasil”.
Assim sendo, construir políticas públicas focais que visam proporcionar o acesso à educação superior para estes públicos específicos e ter um recorte de cotas sociais é muito importante para alcançar igualdade de oportunidade a todos, além de desnudar o mito da igualdade e da democracia racial em todos os setores da sociedade ao deixar nítido o que esta parte da população brasileira vem enfrentando ao longo da história.
Nesse sentido, as ações afirmativas, como o Enem, são fundamentais para compreender com mais profundidade as perspectivas do impacto da inserção de classes sociais menos favorecidas ao ensino superior, traçando um novo panorama para uma educação mais inclusiva, democrática e cidadã. Esses tipos de políticas públicas podem evidenciar as lacunas sociais a este público, assim como são capazes de direcionar as ações governamentais que objetivam a superação das desigualdades ao possibilitar a ressignificação, o fortalecimento e o sentimento de pertencimento identitário por meio da participação cidadã desses grupos minoritários.
Autoria: Kauanne Patrocino e Tatiane Guimarães
Revisão: Bruna Ballestero
Referências:
Marques, E. O acesso à educação superior e o fortalecimento da identidade negra. Revista Brasileira de Educação v. 23 e230098 2018. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPEd, 2018. Acesso em: 28 de Fevereiro de 2022. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbedu/a/VW9YBNPcKcfrnqtyMCMcVxm/?format=pdf&lang=pt>.
Vanstreels, C. A democratização e expansão da educação superior no país 2003-2014. Brasília, DF: MEC, 2014. Acesso em: 28 de Fevereiro de 2022. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.phpoption=com_docman&view=download&alias=16762-balanco-social-sesu-2003-2014&Itemid=30192>
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