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BOMBAS, BOMBAS POR TODO LADO

Rei morto, rei posto. Apesar da comoção generalizada e de meses de alvoroço na mídia internacional, sai Joe Biden e entra Donald Trump, tornando-se o segundo americano a servir dois mandatos não consecutivos na Casa Branca.


Desde sua inauguração, há pouco menos de um mês, o republicano mostrou que sua gestão tem planos de virar do avesso muitas das políticas de seus antecessores e pôr abaixo muito do que se tinha como base da política americana durante anos, incluindo tradições que vinham sendo mantidas até mesmo por seus correligionários. As taxações sobre importações estrangeiras e as posições agressivas em sua política externa são apenas uma pequena degustação de um choque populista e nacionalista como os Estados Unidos nunca antes experimentaram. E, enquanto a América Latina já está mais ou menos acostumada com esse tipo de plataforma, nós nunca testemunhamos uma superpotência colocá-la em prática.


Os motivos pelos quais ele foi eleito e as implicações de seu retorno são diversos, e você certamente tem sua opinião quanto ao 45º (ou 47º) presidente. Apesar disso, tanto apoiadores quanto opositores ainda têm suas devidas preocupações no que diz respeito a temas que podem ter grande repercussão: como Trump vai conciliar sua tradicional base no MAGA e os magnatas da tecnologia? O que podemos esperar de suas investidas contra o próprio estamento político americano? E, ainda, como o restante do mundo vai lidar com sua tendência isolacionista?


No tocante à última pergunta, não é absurdo esperar uma reação preocupante: mais bombas atômicas.


Pode parecer pouco crível, reconheço. Não é como se sua gestão fosse imediatamente tornar mais agradável a ideia de um grande mar de cobalto irradiado cobrindo as paisagens. Ninguém quer ser atingido por uma dessas, mas, em situações de tensão, ninguém quer ser do país que não tem a bomba – ou pior, do que será o alvo. Existe uma possibilidade real de, nos próximos anos, vermos uma reversão da tendência da desnuclearização e um crescimento do número de arsenais nucleares, conforme os Estados Unidos muda de direção.


Para entendermos por que os Estados podem preferir esse caminho, voltemos ao século XX. Do outro lado do Atlântico, a Cortina de Ferro começava a enferrujar.


Um dos primeiros países a “furar” o decadente bloco oriental foi a Polônia, localizada entre a Alemanha e a então União Soviética (hoje dividindo as ex-fronteiras soviéticas com a Ucrânia, Belarus, Lituânia e o enclave russo de Kaliningrado). Apesar de um período de relativa paz em comparação com a conturbada história polonesa de invasões, partições e dissoluções, o país estava em frangalhos. A política econômica polonesa era incoerente e instável, alternando entre seus primeiros anos de coletivização stalinista e uma anêmica liberalização, que colapsou após os choques do petróleo na década de 1970[1]. Tanto nos grandes centros urbanos quanto no campo, as classes mais baixas da sociedade polonesa, revoltadas com a piora na sua qualidade de vida, o distanciamento do partido em relação à população e a supressão política e social – em especial do catolicismo profundamente enraizado no país (justo quando o papa João Paulo II era um polaco) –, levaram o regime à beira do abismo. A mobilização resultante fez com que a união de sindicatos Solidariedade fosse às negociações com o governo em Varsóvia, que viu sua autoridade diminuir mesmo após a declaração de lei marcial e a paralisação temporária dos sindicalistas[2]. O resultado foi o acordo da “Mesa Redonda”, restaurando as eleições e o sistema bicameral no país em 1989. Nas eleições daquele ano, o Solidariedade obteve uma esmagadora vitória (99% dos assentos possíveis na câmara baixa, o Sejm) e, em 1991, com uma nova constituição, o regime socialista na Polônia foi oficialmente encerrado[3].


Por trás do período de panos quentes que seguiram a restauração da democracia na Polônia, as preocupações quanto ao futuro do país no mundo cresciam entre a classe política. Apesar de não terem como prioridade alianças militares, já que a economia nacional se encontrava em ruínas, o desejo de abandonar a estrutura do defunto Pacto de Varsóvia e “retornar à Europa” era dominante. Nos anos seguintes, uma série de desentendimentos entre Moscou, os poloneses e o Ocidente levou não somente ao colapso da tentativa de trazer a Rússia a um projeto de segurança pan-europeu, mas também fez com que Moscou, antes garantidora da segurança do Leste do continente mediante o controle do Bloco Soviético, fosse vista novamente como uma ameaça[4]. A busca por uma proteção mais sólida tornou-se mais intensa.


A entrada de muitos países do Leste Europeu na OTAN, nesse contexto, é vista muitas vezes como uma ação unilateralmente americana, o que não é exatamente verdadeiro. Bill Clinton, contrapondo-se a seus antecessores e ao Pentágono, foi levado a apoiar uma eventual expansão do bloco apenas depois do lobby das diásporas leste-europeias e de seus representantes no continente – notadamente os estadistas da Polônia e Chéquia, Lech Walesa e Vaclav Havel[5]. A personalidade forte e complicada do presidente russo, Boris Iéltsin, e sua gestão turbulenta tornaram a consolidação do sonho coletivo de segurança cada vez menos alcançável[6]. Conforme esse sonho se distanciava mais, países como a Polônia não viam outra alternativa senão o poder bruto da aliança americana como sua salvação.


A própria Polônia buscou o maior grau de integração possível dentro do conjunto e não desejava ser um “membro de segunda classe”, como muitos diplomatas se referiam às soluções mais suaves oferecidas pelos receosos representantes da aliança. O país estava particularmente interessado na infraestrutura nuclear do Ocidente, mas isso era um passo desconfortavelmente grande para a OTAN. Quando o secretário-geral da organização pediu que a delegação polonesa assinasse a declaração dos “três nãos” – não à presença substancial de forças da OTAN, a bases militares ou a ogivas nucleares em seu território – durante o encontro da aliança em 1997, os polacos assumiram, constrangidos, que seriam tratados como membros de segunda categoria dentro do bloco, e essencialmente ignoraram essa declaração nos anos seguintes[7][8]. Se isso não bastasse, um dos estrategistas do governo americano à época revelou, em 2018, que um oficial polonês – provavelmente o então ministro das Relações Exteriores, Radosław Sikorski –, com quem mantinha contato, afirmou que o país poderia ser levado a desenvolver seu próprio programa nuclear, caso não fosse incluído na OTAN, em uma tentativa de chantagear a aliança para colaborar com a agenda de Varsóvia[9].


Nos anos desde o fim da Guerra Fria até os dias atuais, a Polônia saiu da falência para se tornar um dos grandes jogadores geopolíticos na região, e isso foi refletido em suas forças armadas. O orçamento militar do país cresceu exponencialmente em comparação com outros membros da aliança, superando o da Itália e, surpreendentemente, o valor de todas ex-repúblicas soviéticas juntas[10]. Atrás apenas do Exército de Terra francês, o exército polaco se tornou a força mais formidável entre seus pares no bloco – mas nada de armas nucleares, ainda.


Isso compõe não somente um processo de longo prazo, em partes explicado como um produto de uma certa mentalidade de cerco comum aos países da região[11], mas também como um grande esforço recentemente levado a cabo em resposta à guerra russo-ucraniana.  Uma das consequências desses esforços foi o interesse renovado nas ogivas da aliança, resgatando a agenda polonesa e complementando a estratégia de segurança do país com base em forças convencionais[12]. Isso seria um enorme alívio para o governo nacional, que vem sustentando uma custosa campanha para manter o alto investimento militar.


Uma lógica similar se aplica a praticamente todos os países da OTAN. Quem não gostaria de ser protegido pelo monumental arsenal nuclear estadunidense? Explicando rapidamente a premissa teórica dessa estratégia: os danos potenciais de um ataque nuclear são grandes demais para que qualquer um se arrisque a desafiar um adversário com capacidade de usá-las[13]. Não existem métodos efetivos de interceptar ou impedir ataques vindos de mísseis balísticos, e o uso por um lado certamente enfrentará retaliações. Essa doutrina(também chamada de MAD, Mutual Assured Destruction), fundamentou a grande estratégia de ambas as superpotências da Guerra Fria. Porém, a expansão do número de países com armas nucleares e os abalos geopolíticos desde então fizeram com que uma parte considerável da opinião pública mundial criasse desconfianças quanto à validade, ou até mesmo à moralidade, de depender de armas de destruição em massa para sua própria segurança, ao mesmo tempo que o debate acadêmico sobre o tema deixava de ser hegemônico e críticos da dissuasão nuclear ganhavam cada vez mais espaço.


De forma geral, para simplificar a discussão, vamos assumir que de fato duas potências nucleares – ou seus protegidos – nunca entrarão em guerra e qualquer ameaça será ou um blefe, ou um prelúdio para operações não-nucleares em tais circunstâncias. A implicação – e, consequentemente, a pergunta que surge –  é bem direta: o que acontece sem a OTAN?


A OTAN vai mesmo acabar? Não podemos dizer ao certo. Mas o presidente americano certamente não é um admirador do papel de Washington em financiar a proteção do continente europeu e exigirá uma participação maior – e muito mais cara – do restante dos membros[14]. Isso, naturalmente, soa mal para os europeus. Gastos militares e conscrição são trabalhosos e impopulares, além de não oferecerem o mesmo nível de segurança de simplesmente uma boa dose de ogivas nucleares ou serem muito menos eficientes no contexto da frágil economia da UE. Em um cenário hipotético, pode-se especular que a Rússia estaria disposta a enfrentar uma Europa mais militarizada, mas não uma nuclearizada, que teria dificuldades de se garantir econômica e belicamente sem um pesado investimento estadunidense.


É nessa esteira de eventos que a Alemanha volta a cogitar investir em dissuasão nuclear.  Não é uma ideia nova, mas nunca havia sido seriamente cogitada pela classe política ou pelo eleitorado. E embora uma bomba propriamente alemã não seja uma ideia popular, uma deterrência europeia baseada no Reino Unido e na França já não parece tão distante[15]. Mesmo que a política doméstica desses países se volte para o euroceticismo e acabe por acalmar os ânimos com os russos, o pesado investimento em energia nuclear e uma certa autonomia bélica ainda são pautas com crescente apoio, até nos partidos mais populistas no continente [16].


Não precisamos nem nos manter na Europa para evidenciar esse ponto. No Oriente Médio, as tensões entre Israel, os Estados Unidos e o Irã estão escalando para um impasse. Tel Aviv está considerando minar a capacidade nuclear iraniana nos próximos meses com ataques localizados [17]. Não é muito comum que dois países com bombas nucleares (apesar de ambos oficialmente negarem que as tenham) conduzam assaltos um contra o outro tão abertamente. Apesar dos mais recentes ataques trocados entre Israel e Irã não terem gerado consequências mais severas [18][19], com os dois lados realizando incursões pouco significativas e ineficazes, não há nenhuma garantia de que o status quo se mantenha.


Podemos também olhar para a China, que está acirrando ainda mais a competição com os Estados Unidos a cada dia. Sim, a situação econômica chinesa dá alguns sinais preocupantes, e as ofensivas contra Taiwan ainda não passaram de blefes, mas isso em nada impede que, enfrentando uma administração mais hostil na Casa Branca, o governo de Xi Jinping não responda à percebida ameaça à altura[20]. Também não se pode ter certeza da real capacidade nuclear de Pequim, devido à transparência quase inexistente de suas forças armadas. A mesma situação se estende à Coreia do Norte, que historicamente baseia sua política externa em ameaças nucleares e está participando mais ativamente das disputas internacionais recentemente[21].


Em resumo, os países estão se preparando para depender menos dos Estados Unidos nos próximos anos, e isso inclui reduzir sua dependência do guarda-chuva nuclear americano. O vislumbre do crescimento do número de armas nucleares não está distante, e suas consequências são imprevisíveis no mundo multipolar em que vivemos.


Por alguns anos, o consenso acadêmico foi o da superioridade e da infalibilidade da dissuasão nuclear. A Guerra Fria veio e foi com inúmeras guerras por procuração que, apesar de momentos perigosos, nunca trouxeram o pior cenário possível. A questão está no enfraquecimento de muitas instituições civis que atuavam como mecanismos de controle sobre o uso desse tipo de armamento, resultado de uma crise em diversas democracias ao longo do globo e na descredibilização de instituições de cooperação internacional. Dois pontos antes fundamentais para regular a capacidade de um país para usar bombas atômicas – a solidez institucional e a seletividade da distribuição dessa capacidade – correm o risco de não serem mais um limitador nos próximos anos[22]. E, se essa expansão acontecer, o tabu que agia como última linha política contra a nuclearização também corre o risco de ser esfacelado. A partir desse ponto, tudo que resta é especulação sobre o nosso futuro.


Mas veja pelo lado bom: podemos esperar um pujante mercado imobiliário de bunkers daqui a pouco!


Autor: Guilherme Neto

Revisão: Giovana Rodrigues, Vinícius Floresi e André Rhinow

Imagem de Capa: GOV.UK

Referências:

[1]. Poland - Communism, Solidarity, Warsaw Pact | Britannica

[2]. Ibid

[3]. Poland and NATO - 1999

[4]. Chapter 9 - The 20th Anniversary of Poland's Accession to NATO

[5]. How Clinton Decided on NATO Expansion

[6]. NATO-Russia charter 1997 was “forced step,” said Yeltsin | National Security Archive

[7]. Chapter 9 - The 20th Anniversary of Poland's Accession to NATO

[8]. Breaking the silence: explaining the dynamics behind Poland’s desire to join NATO nuclear sharing in light of Russian aggression against Ukraine

[9]. Kulisy wejścia Polski do NATO. „Clinton nie był przekonany” | TVP INFO

[10]. Poland leads NATO on defence spend - but can it afford it? | Reuters

[11]. Europe: Between Being Defenseless and Defensive | Carnegie Endowment for International Peace

[12]. Poland’s bid to participate in NATO nuclear sharing

[13]. Nuclear deterrence | Carnegie Council for Ethics in International Affairs

[14]. Trump vai exigir gasto de 5% na defesa aos países da NATO

[15]. Germany debates nuclear weapons, again. But now it’s different. - Bulletin of the Atomic Scientists

[16]. German far-right outlines radical program as protesters rally

[17]. US intel assesses Israel mulling strikes on Iran nuclear sites this year -- reports

[18]. Iran attacks Israel with over 300 drones, missiles: What you need to know | Explainer News | Al Jazeera

[19]. What we know about Israel’s attack on Iran

[20]. Three nuclear policy challenges for the second Trump administration - Bulletin of the Atomic Scientists

[21]. Ibid

[22]. The Spread of Nuclear Weapons: A Debate Renewed (Second Edition) | Political Science


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