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BRIOCHES, DIVAS E GAYS





Brioches. ¾ de xícara de farinha, ⅓ de xícara de açúcar, ovos, manteiga e fermento. Misturar tudo muito bem e deixar a massa descansar por 2 horas. Levar para assar por 15 minutos a 220° C. Essa receita deliciosa esteve no centro de um dos maiores escândalos políticos da história, que culminou com a cabeça da última rainha da França rolando pelo chão. O brioche, o pão dos ricos, ajudou a jogar a imagem de uma rainha fútil, egoísta e supérflua na lama. Não, este não será um texto sobre brioches.


Mais interessante que esse alimento foi a vida de Maria Antonieta, última rainha da França. Nascida e criada como uma princesa austríaca, casou aos 15 anos com um príncipe francês, destinada a governar a mais poderosa nação da Europa. Claro, uma mulher rica, branca e egoísta poderia ter proferido a mais revoltante das frases. “Se não tem pão, que comam brioches”, supostamente disse ela. O mais interessante, porém, é que Maria Antonieta nunca proferiu tal frase.


Por isso, e por várias outras coisas, sou fascinado pela figura dela e pelo que ela representa. Uma mulher que nunca viveu para muito mais do que seus próprios prazeres. Seu impecável gosto para a moda e seu cabelo empoado foram suficientes para cravá-la como o rosto inimigo de uma revolução. Ainda assim, ela pouco se importou. Uma mulher que, entre todos os outros adjetivos, era simplesmente ela, para o bem ou para o mal. Não, esse texto também não será sobre Maria Antonieta.


A figura desta mulher me serve de base para um raciocínio muito claro: ela foi, para todos os efeitos, a primeira diva da história. Diva, uma mulher bonita e dotada de talentos, mas por vezes taxada de difícil, arrogante e cruel. Nada sobre comer brioches, mas a rainha francesa deu esse toque particular à causa. Ainda assim, gosto de chamá-la de diva, não pelos seus delírios extravagantes e certamente não pelo seu cabelo imenso. O que faz com que eu classifique Maria Antonieta ao lado de outras mulheres fascinantes como uma diva é o fato de ela ter existido em sua plena vontade, dentro do jogo criado por ela.


Ela não se interessou por guerras nem pela economia. Não se esforçou para ser muito mais do que esperavam dela. Foi exatamente isso que a destacou como um dos grandes nomes da história e, ainda, como representação máxima da opressão do regime francês do século XVIII.


Bem longe de Versalhes, dois séculos depois, em uma premiação da MTV, uma mulher loira de 32 anos apresentou uma música dançante vestida de Maria Antonieta. Outro momento histórico, mas dessa vez sem brioches. Madonna, considerada a rainha do pop, não da França, encarnou a personagem ícone para dançar sua Vogue em 1990.


O que liga a rainha francesa à rainha do pop é o fato de ambas serem divas. Séculos as separam, contextos também, mas Madonna não deixou de ser perseguida, taxada ou criticada por ser livre. Diferente de sua colega da realeza, raramente os motivos para isso eram válidos.


Claro, poucas pessoas ainda pensavam tão vivamente em Maria Antonieta. Preferiam ouvir Madonna, outra mulher branca, jovem e poderosa. O poder, aqui, já era medido de outra forma. Ela nunca reinou sobre algum país, mas dominou as paradas e as vendas de álbuns. O conceito de culto à imagem e à celebridade continuou vivo, se reinventou para caber no mundo de Madonna como coube no de Maria Antonieta. O vogue elevou a cantora ao nível de personalidade mundial e um grupo em particular foi um grande responsável para tal feito: homens LGBTQIA+. Para eles, Madonna era uma diva.


Bingo! Este texto não será sobre brioches, Maria Antonieta ou Madonna, mas sim sobre legado e impacto. Legado de mulheres que, para todos os fins, foram divas, impactaram e continuam a impactar homens que, para todos os fins, se identificam como parte da sigla LGBTQIA+.


Depois de Madonna, várias outras mulheres poderosas adquiriram status de diva pelo mesmo grupo, com fãs de diversas partes do globo as acompanhando fielmente. Os brioches e o vogue, entretanto, ficaram de fora. Atribuir esse status para alguma figura não é banal, pois em geral origina-se de um espaço de dor, de uma falta de identificação universal para todos os jovens LGBTQIA+. Uma mulher perseguida, um mártir pela sua causa, seja ela a mais supérflua que for, se torna o exemplo perfeito a ser seguido. Esse fenômeno é fruto de um processo comum para esse grupo, no qual o culto às figuras femininas fortes, imponentes e até mesmo problemáticas se tornou intrínseco ao descobrimento e à exploração de uma sexualidade dissidente, perseguida e criticada.


Infelizmente, há um elo fundamental que une esses milhões de homens à essas mulheres: a demonização e a perseguição social. Uma diva não se torna diva à toa, precisa revolucionar em algo que se propôs a fazer, seja o mais óbvio, como Maria Antonieta, seja o mais único, como Lady Gaga em seu álbum de estreia, The Fame. A revolução vinda delas, entretanto, não é sempre bem vista. Também não são bem vistos os homens gays, bissexuais ou transexuais. E nem os brioches.


Maria Antonieta foi a primeira diva pop da história. Ela fez da celebridade algo cotidiano. Duzentos anos depois, Madonna dançou Vogue nos palcos rodeada de homens gays marginalizados e se afirmou como figura máxima no movimento. Depois dessas, vieram outras. Celine, Beyoncé, Meryl, Margot, cada uma, à sua maneira, contribuiu para jovens que não se sentem pertencentes ao seu próprio mundo poderem viver em sua plena expressão.


Divas revolucionam e, muitas vezes, pagam como preço a solidão e a perseguição. Homens LGBTQIA+ também causam pequenas revoluções em seu cotidiano apenas por vivenciarem quem são. Homens héteros não costumam causar revoluções. Talvez só quando o assunto seja brioches. Isso coloca essas mulheres como o primeiro referencial de personalidade para jovens gays e bissexuais que crescem buscando viver em uma sociedade que tenta reprimi-los.


Mother! Clama uma legião de fãs em redes sociais com a foto mais recente de uma mulher que eles nem sequer conhecem, mas que representa muito mais do que uma boa arte. São as divas que fazem o que bem entenderem que, muitas vezes, permitem que os marginalizados possam ter um respiro de alívio para que também possam fazer o que der vontade, sentindo que alguém no mundo os representa e se livrando da culpa e do julgamento.


Não importa se governaram na Europa ou algum chart da Billboard. Mulheres poderosas, que encaram o mundo em sua própria vontade e vivem de suas revoluções diárias fascinam pessoas que encaram o mundo e revolucionam seus arredores.


Seja usando perucas gigantes ou não, cada uma delas desperta em um jovem LGBTQIA+ um sentimento de identificação e proteção. Muitas vezes, são as mães hipotéticas que muitos precisam. A amiga que vai cantar exatamente o que eles sentem. A atriz que vai entregar a performance mais dramática. A rainha decapitada. Divas vêm e vão, mas seus impactos são permanentes.


Claro, essa história pode não ser familiar para quem lê. Pode não fazer sentido para uma boa parcela de pessoas, inclusive de pessoas queer. Entretanto, ao mesmo tempo, também é familiar para tantas outras. Em geral, estas outras são as que pouco conseguem ocupar espaços para falar. É através de suas divas que encontram sua voz, seu lugar. Todas essas com o estrelato intrínseco à memória que deixaram ou deixarão no mundo ajudando, sem nem sequer saber, muitos por aí. No fim, não há como alguém assim não incomodar. Um caminho, penso eu, talvez seja não comer muitos brioches, pois pode subir à cabeça.


Autoria: Arthur Quinello

Revisão: Enrico Recco e Luiza Parisi

Imagem de capa: Colagem própria


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