O ser humano é, como já dizia Aristóteles, um Zoon Politikon, ou um animal político. Estamos, em essência, acostumados a viver em sociedade e praticamente tudo na nossa vida, do modo que falamos, nos vestimos e enxergamos o próximo, é moldado por quem vive conosco. Óbvio que nessa oração eu celeremente atropelei um debate filosófico e sociológico secular, mas esse não é o ponto. Para fins didáticos, tomemos como verdade essa tese do Zoon Politikon: a prioridade de qualquer animal na natureza é, invariavelmente, sobreviver.
A fauna de animais políticos, ou melhor, a fauna que representa os animais políticos brasileiros é bem diversa, assim como sua paisagem geográfica. Adaptando-se a cada ambiente, as espécies endêmicas desenvolveram métodos cada vez mais heterodoxos de prosperar. Aqui em São Paulo, vemos espécimes fazendo um uso criativo e enérgico de cadeiras e coaching; em Recife, especialistas registraram animais com a capacidade de pintar o cabelo de branco e fazer dancinhas no TikTok; em Fortaleza, vemos exemplares até mesmo apelar para a dissonância cognitiva e chamar seus competidores de “meu candidato”. Essas estratégias têm graus variados de sucesso, mas nenhuma delas permanece funcional por muito tempo.
Existe uma exceção historicamente recente em termos de biologia, empregada por uma família conhecida como os centrínios, nome científico do “Centrão”. Hoje, com a minha melhor imitação de um roteiro do National Geographic, vamos explorar como funcionam essas espécies: de onde vieram, o que comem e como eles sobreviveram à mais recente onda da seleção natural, também conhecida como eleições municipais.
Vamos dar algumas definições primeiro: temos as famílias dos centrínios, claro, mas também dos esquerdíneos e dos direitíneos. Os centríneos, também conhecidos como Centrão, fascistas, comunistas, vagabundos, oligarcas, inimigos da pátria e outros termos mais ou menos surreais, compõem um grupo cujos primeiros registros se dão, mais ou menos, no final da década de 1980, surgindo como um predador natural de uma espécie do gênero Peemedebes chamado Ulysses Guimarães, que estava determinado a fazer uma Constituição e colocar um outro rei da selva brasileira. Dessa vez, depois de 21 anos de ditadura do gênero Arenius e dos militares, esse rei viria democraticamente. Bom, pelo menos, esse era o plano inicial.
Acontece que esse gênero não havia sido extinto, mas expulso do seu habitat (nada) natural pelos Peemedebes. Agora acuados, os últimos sobreviventes se camuflavam entre os congressistas com nomes menos chamativos, como “Partido Democrático Social”, já que estava na moda colocar “social” em tudo. Mas deu certo, evidentemente. Ulysses, liderando a grande manada democratizadora, presidiu a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) com a participação dos mais variados ex-Arenius. Alcançar um consenso entre essas partes seria um desafio significativo, ainda mais considerando que o PMDB também não era um grupo homogêneo. Afinal, só existiam dois partidos, e nós já estávamos virando animais um pouquinho mais civilizados para simplesmente chutar toda e qualquer dissidência para fora do Congresso. A ANC ficou responsável por escrever, antes da Constituição, algumas “normas de convivência” entre gatos e cachorros para que uma crise institucional não explodisse em Brasília. Claro que isso é mais fácil no papel do que na prática.
Em 1987, toda a fauna ali reunida se entreolhava com desconfiança, tomando cuidado para não se expor demais e tirar uma lasquinha de seus adversários. A recém-instalada Comissão de Sistematização, que iria de fato redigir a Constituição, tinha começado seus trabalhos naquele 8 de maio quente e seco na capital federal. O relator da Comissão era o deputado Bernardo Cabral (PMDB-AM), e seu presidente era Afonso Arinos (PFL-RJ). Naturalmente, ninguém estava concordando com absolutamente nada que estava sendo discutido na Comissão: O regimento interno era confuso e os prazos para discussão eram curtíssimos. O presidente da República, uma espécie de nome científico Peemedebes Joselius sarneyus, não estava com paciência para a Constituição sair. A crise econômica que explodiu na década perdida chegou ao pequeno cerrado brasiliense, e o governo Sarney via as propostas progressistas dos ulyssistas como mais lenha na queimada generalizada do País. O estadista precisava desesperadamente predar aquela força legislativa antes que seu grupo, representado pelos conservadores, militares e a elite empresarial brasileira, fosse extinguido e trocado pelo renascente PMDB.
Percebendo a agressividade do planalto, os constituintes tentaram alimentar o faminto crocodilo federal com petiscos antes que ele devorasse suas cabeças: Das cinco mil emendas inicialmente dadas à Comissão, apenas 997 foram consideradas para o “Projeto Zero” da Constituição, com 496 artigos. Esse volume colossal de textos, muitos que precisavam ser revisados várias vezes por incompatibilidades constitucionais, forçou a comissão a se dividir em relatores adjuntos, cada um analisando mais um pouco das emendas das outras comissões e costurando alguma coisa coesa. A Comissão rachou em pequenos grupos ideológicos que levavam suas propostas - mais quatorze mil emendas, para ser mais específico – para Cabral a contragosto de seus colegas. Enquanto isso, o relator tirava do forno o seu “Substitutivo I”, tão polêmico quanto os projetos anteriores, seguido do “Substitutivo II”, também bem longe de ser aprovado.
Enquanto isso, um certo grupo de parlamentares rodeava a ANC de longe, esperando eles correrem em círculos até se cansarem demais para poder se impor. Seu plano era simples, mas laborioso: as normas regimentais da Assembleia desaceleraram seus trabalhos a passos de tartaruga. Em seu caminho, ela encontrou um rio, no qual estava do outro lado, furiosos, uma matilha de elites econômicas que, vendo o nacionalismo e as estatizações do projeto peemedebista, se preparavam para cair matando no que viam como a implosão da economia brasileira. Atrás deles, um aborrecido Sarneyus estava ficando esgotado e pronto para jogar todos os seus recursos contra os constituintes. Aproveitando-se desse dilema, a ala conservadora dos Peemedebes e mais uma miríade de partidos (dos quais imagino que você vá vomitar se eu continuar com esse latim macarrônico) do centro e da direita, junto de grupos sociais insatisfeitos, especialmente os militares, com o “esquerdismo” da Constituinte, organizaram-se com o nome de Centrão, nascendo então a quimera que poderia salvar a Constituinte de sua própria lerdeza e autodestruição, mas não de graça.
A ascensão do Centrão trouxe as “propostas coletivas”, que tinham prioridade de votação e não precisavam necessariamente da assinatura de parlamentares presentes no plenário. Com o apoio mastodôntico do governo federal, o bloco arquitetou uma operação surreal para coletar assinaturas Brasil afora para suas propostas e moldar incontáveis emendas a seus desejos. O Palácio do Planalto teve uma participação crucial nessa empreitada, distribuindo cargos, verbas, concessões para TV e rádio, tudo com o objetivo de “convencer” os parlamentares que, convenientemente, o que era melhor para o ecossistema político também era o melhor para seus bolsos.
Se isso soa familiar, é porque essa simbiose se tornou o modo de operação base do Centrão e do governo federal. O presidencialismo de coalizão brasileiro ao mesmo tempo que impede o executivo de governar igual a um imperador, também torna o Congresso dependente da distribuição de recursos do Governo Federal. Os centrínios criaram e aperfeiçoaram esse sistema como ninguém.
Não que a partir desse ponto o Centrão tenha se tornado hegemônico. Um leão pode ser ágil e brutal, mas o mundo não é composto inteiramente de predadores por um motivo. No primeiro turno de votação da Carta Magna, Cabral e o PMDB mostraram os dentes, os petistas, os tentáculos e os peessedebistas seus bicos, barrando a proposta de preâmbulo do grande e feral bloco. O Centrão viu-se obrigado a negociar com as lideranças rivais para aprovar o texto.
Essa saga continua por mais um tempo. Já estamos em 88, mas a Constituição Cidadã é fruto de uma comédia tão complicada que vamos ter que começar a narrar George, o Curioso daqui a pouco. Grosso modo, o documento gerado foi uma criação das manobras regimentais do centrão para salvar setores descontentes dos avanços do bloco ulyssista, construindo uma base com amplo poder econômico e político e virando, em última instância, uma força centrífuga que atrai as forças políticas para um status quo auto reforçado. O congresso ainda não saiu daquela encruzilhada no Rio, a diferença é que o executivo e as hienas empresariais ainda estão apertando o cerco, mas dar o bote contra dois enormes hipopótamos é uma ideia suicida: As hienas não podem nadar e aguentar uma briga, enquanto o crocodilo vai ser pisoteado ou ganhar uma vitória de Pirro.
Um adendo importante: hoje em dia, a coesão ideológica do Centrão não é tão forte quanto a da sua primeira versão. Ao final da Constituinte, o grupo foi oficialmente desmanchado. Os riscos que o bloco percebia já haviam sido mitigados e agora o problema era como sobreviver ao eventual colapso do governo Sarney, impopular e aos frangalhos. Nos anos seguintes, o Centrão seria reativado quando o executivo precisava de bases de apoio ad hoc para passar matérias específicas de suma importância, ou quando os integrantes do bloco captavam algum projeto suicida que precisava ser freado – com os incentivos certos, claro.
Cobrimos o nascimento dessa curiosa espécie e seu papel no balanço da natureza na Ilha de Vera Cruz. Nos anos seguintes, como evoluíram seus hábitos? Felizmente, passamos os últimos meses olhando de perto algumas das mais variadas conquistas do Centrão e seus espécimes em todas as cores e formas possíveis. Pode-se dizer que eles tiveram um enorme sucesso nas últimas eleições, então vale a pena analisar alguns casos mais recentes da Nova República de prosperidade política: Kassab, Nunes e Lira.
Gilberto Kassab, nome popular de Peesedees Gilbertius kassabius, é o epíteto do papel ecológico do Centrão: manter o barco flutuando e seguindo seu curso. Nas eleições de 2024, o partido do paulistano ganhou o maior número de prefeituras no país, contabilizando 888 nomes eleitos e superando o tradicional MDB, que fez 856. A vitória do PSD abrange até mesmo algumas capitais, conquistando três no primeiro turno e tendo mais duas no segundo.
A função das prefeituras no grande esquema das coisas é como a cooperação entre anus e bois. O anu é uma ave que se alimenta dos carrapatos que vivem nos bois, melhorando sua qualidade de vida no geral enquanto garante mais uma refeição. As cidades são os bois, fontes ricas e promissoras de capital político. Muitos deputados estaduais e federais tendem a votar de acordo com o que beneficia sua cidade natal, destinam emendas para seus aliados regionais e transformam os municípios em pequenos currais eleitorais. Esses parlamentares são os anus, que colocam sua cota parlamentar à disposição para tapar buracos no asfalto, financiar shows e comícios e subsidiar assistencialismos regionais que, legalmente, definitivamente não são compras de voto, tirando as irritantes pestes chamadas “equilíbrio fiscal” da lista de preocupações dos prefeitos.
Você já deve imaginar que esse maquinário político é poderoso e escala exponencialmente. Mas partidos que dependem de votos ideológicos dificilmente conseguem operá-la com eficiência. O PT perdeu influência nos municípios conforme sua ala mais pragmática perdeu credibilidade e controle interno da sigla, enquanto o PL com muito esforço, conseguiu algumas poucas vitórias dispersas. As razões são diversas, mas a conclusão é a mesma: a opção mais segura é ser realista e se aproximar dos anus maiores para dividir uns carrapatos. Convenientemente, o maior dos anus é o PSD de Kassab.
Sua trajetória é praticamente impecável. Kassab já foi secretário de três prefeitos, ministro de dois presidentes, prefeito da Terra da Garoa e hoje é articulador do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), um tímido tecnocrata que chegou ao cargo como vítima das circunstâncias - basicamente, um tatu levado pelo vento. A isca perfeita para lançar em uma disputa pelos espólios da presidência. Com ministros no governo Lula, a presença de um forte nome direitista e um sucesso retumbante nas eleições municipais pode indicar que esse pássaro vai se transformar em uma ave de rapina ameaçadora nos próximos anos.
Falando em eleições municipais, vamos analisar um candidato próximo a kassabius, o Peemeedebe Ricardius nunius.
Ex-vereador e empresário, Nunes ter sido reeleito foi um alívio gigantesco para o Centrão. De um lado, Guilherme Boulos entrou na disputa com uma vantagem considerável e a experiência de duas eleições majoritárias pelo PSOL, que se adaptou mais facilmente às selvas de pedra do Sul e Sudeste que à esquerda mais tradicional. Para piorar, a aparição de Pablo Marçal na disputa ameaçou o monopólio direitista cautelosamente construído pelo PL e o centro paulistano. Marçal é um diabo-da-tasmânia, potente, errático e solitário, claramente buscando uma plataforma para se lançar à presidência mesmo que às custas do resto do ecossistema. A sua estratégia em si merece um texto próprio. Mas isso fica para outro dia. O que Marçal e Boulos têm em comum é a sua tentativa de capitalizar nas forças políticas nacionais e em um discurso de dissidência para propulsionar seus projetos em São Paulo, em uma tentativa de quebrar a soberania historicamente centrista da capital.
Agora que já temos os resultados do segundo turno, é justo dizer que a vitória de Nunes é impressionante – e ele se esforçou para perder: carisma baixíssimo, base eleitoral rachada, uma administração heterogênea e ineficaz, sua notável falta de tato para redes sociais e dependência no tempo de televisão e nos mecanismos eleitoreiros do Centrão só não causaram sua derrota pela rejeição astronômica dos seus principais adversários, e talvez pelo fato de que ninguém sabia quem ele era até o segundo bimestre deste ano. A chegada de duas espécies invasoras na Mata Atlântica da capital paulista despertou um curioso senso de preservação pelo resto da política nacional, que quebrou ciclos de isolacionismo paulistano sob o PSDB e lançou a cidade nacionalmente como uma suculenta caça para se ganhar nesta disputa. Agora, São Paulo é mais importante do que nunca para os grandes nomes do País, e o esforço exitoso do eemedebista provou novamente a preponderância do leviatã centrista, mesmo contra um vocal descontentamento popular. Ou você conhece algum militante “ricardista”?
Finalmente, chegamos ao Progressistius Arthuros lirius. Um progressista? Nem de longe. Um conservador? Também questionável. Um dos líderes do Centrão, Arthur Lira não está muito nos holofotes ultimamente. Ele não é uma grande raposa de prefeituras como Kassab ou um resistente hipopótamo como Nunes. Pelo contrário, o “TratoLira”, como é apelidado o alagoano entre seus colegas deputados, tem o mesmo carisma de uma calçada de concreto e está atolado em escândalos de corrupção. Mas o parlamentar vem de uma tradicional família de políticos e aprendeu cedo como se esgueirar pelas entranhas institucionais tupiniquins, de Maceió a Brasília. E isso ele faz com maestria.
Lira faz parte do “Alto Clero”, os deputados mais experientes e influentes dentro da Câmara Baixa. Eleito pela primeira vez em 2010, tornou-se braço direito e um dos mais ardentes integrantes da “tropa de choque” de Eduardo Cunha, infame líder da campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff. Sabendo conversar e negociar com as pessoas certas, o deputado tornou-se presidente da Comissão de Constituição e Justiça em 2015, que também é a comissão mais importante da Câmara. Mesmo afastado do mandato, Cunha indicou o parlamentar para a Comissão de Orçamento no ano seguinte.
Eleito presidente da Câmara em 2021, Arthur Lira construiu uma presença hegemônica no parlamento, reduzindo o grupo do deputado Baleia Rossi, seu adversário na disputa pelo cargo, a meros dois assentos de seis na mesa diretora. Nessa época, seu apelido começava a ganhar popularidade. Integrante da base de apoio do então presidente Jair Bolsonaro (o qual qualquer metáfora com animais provavelmente vai pegar mal), Lira foi essencial para barrar projetos da oposição e conduzir com velocidade as pautas mais polêmicas lançadas pelo chefe do executivo. O presidente da Câmara também foi um dos principais articuladores do escândalo do “orçamento secreto”, um dispositivo de “negociação” tão eficaz, que a oposição deixou de chamar de “o maior escândalo de corrupção do planeta” para utilizar-se livremente das emendas como se nada tivesse acontecido. Independentemente, Lira saiu ganhando.
Virando a casaca e se tornando a “ponte” entre o governo Lula e o Congresso, Lira está na posição de fazer demandas. Seu próximo projeto é alçar voos mais altos e conquistar territórios no corpo ministerial. O PP mira o Ministério da Saúde há muito tempo, mas a presença de Nísia Trindade como um indicador de uma equipe técnica era valioso demais para o executivo. As eleições na Câmara dos Deputados no ano que vem estão abrindo as portas para uma nova troca de cargos, com o atual incumbente apoiando o candidato governista, e ironicamente, do Republicanos para a mesa, está claro que Centrão tem planos de se infiltrar profundamente na matilha petista do mesmo modo que fizeram durante seu primeiro mandato. Não se surpreenda em ver a lula cercada por várias arraias no futuro próximo.
No fim das contas, apesar do discurso anticorrupção e anti-sistema que ganhou popularidade de uns tempos para cá, a preponderância do Centrão é insuperável. Todos os últimos presidentes, em maior ou menor escala, ou vieram do ou cooperaram com o bloco para sobreviver. Quem não quis, virou alvo fácil na encruzilhada às margens do rio, e até mesmo pelo próprio Centrão. Na selva brasileira, o topo da cadeia alimentar é preenchido por gaviões e urubus que não têm nenhum problema em trair aliados se isso for preciso para preservar o estrato. Eles são a gendarme da natureza, a força centrífuga que disciplina todos os outros animais, já que todos são iguais, mas alguns mais iguais que outros.
Autoria: Guilherme Neto
Revisão: Ana Carolina Clauss, Isabelle Simões, Vinícius Floresi e Artur Santilli
Imagem da Capa: Foto por Marco Jacobsen/ Reprodução Folha de Londrina
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