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CLARICE? RODRIGO? MACABÉA?


“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.”



Como declarou, certa vez, um crítico literário: “Cuidado com Clarice. Isso não é literatura. É bruxaria.” Curiosamente, uma das minhas histórias favoritas que envolve Clarice foi sua viagem, acompanhada de Lygia Fagundes Telles, para uma convenção de bruxaria na Colômbia. Leria com prazer um relato completo das duas nessa viagem; acho que daria até um filme, bem tipo Thelma & Louise, com as duas ícones da literatura brasileira no que deve ter sido, imagino eu, um grande rolê aleatório.



O meu primeiro contato com Clarice foi no nono ano, quando li A Hora da Estrela para a escola e não entendi nada. Não nada, vai, mas muito pouco. Lembro da frustração de ler o livro em casa, achar que entendi algo, chegar na aula de língua portuguesa na semana seguinte e, ouvindo a querida e erudita professora Nádia falar, perceber que, na verdade, absorvi talvez 15% do que o livro queria me dizer. Não conseguia identificar o que estava nas entrelinhas, nas metáforas, no enigma de Clarice. Como disse a própria, em Água Viva, que eu fui ler só alguns anos depois:



“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra — a entrelinha — morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.”



E olha que A Hora da Estrela é considerado uma porta de entrada mais acessível para a autora. É um livro atípico na obra de Clarice, com mais ação e uma linha narrativa mais clara do que a maioria dos livros dela. Assim, destoa do restante. Seus outros romances mais conhecidos são marcados pela falta de um enredo, focados mais em reflexões existenciais e epifanias transcendentais, geralmente de mulheres de meia-idade da elite carioca. Entre romances, crônicas e contos, a maioria das personagens mais famosas de Clarice encaixam-se nessa caixinha que, em muitos sentidos, representa a própria autora.



O extremo existencialista está em Água Viva, que é basicamente desprovido de trama: é um fluxo de sentimentos, crises existenciais e ponderações filosóficas sobre a vida, a escrita, a linguagem e tantos outros temas. Chega a ser desconcertante porque cada página é recheada de citações incríveis, reflexões profundas e provocações arrebatadoras: a leitura é repleta de pequenas epifanias. É um livro curto, mas que vale a pena ler aos poucos, digerindo, preocupando-se realmente em entender o que Clarice quer nos dizer e fazer pensar. Sobre a narradora, sabemos pouquíssimo além do fato de que é pintora e carioca — ou seja, pode muito bem ser a própria Clarice, que também adorava pintar. Destaco duas citações que, de certa forma, resumem o livro:



“Não, nunca fui moderna. E acontece o seguinte: quando estranho uma pintura é aí que é pintura. E quando estranho a palavra aí é que ela alcança o sentido. E quando estranho a vida aí é que começa a vida.”



“Mas se não compreendo o que escrevo a culpa não é minha. Tenho que falar porque falar salva.”



Outra obra emblemática é A Paixão Segundo G.H., em que a história toda se passa ao longo de algumas horas na vida de uma escultora de classe alta no Rio — também não muito distante da realidade de Clarice. G.H., identificada somente pelas iniciais gravadas em suas valises, vê seu mundo interior desabar ao adentrar o quarto da sua empregada recém-demitida e deparar-se com uma barata. Explosão. Epifania. Essa é basicamente a sinopse do livro.



“É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo.”



Como me disse uma querida amiga minha, Clarice escreve internamente, não externamente. Muito pouco acontece nesses livros em termos de ação. Tudo se passa na mente das personagens.



Agora, sete anos depois, decidi reler A Hora da Estrela. E foi uma leitura estranha. Realmente destoa do resto. Não só estruturalmente, mas no tom geral da obra. Mais soturno, pessimista. Menos propositivo e mais apocalíptico. Fico pensando que ela o escreveu logo antes de morrer, definhando de câncer. Imagino o quão ciente ela estava disso enquanto escrevia. Será que sabia, instintivamente, que seria o último livro que veria publicado?



De certa forma, os treze títulos alternativos da obra dão uma dimensão do teor “desespero e desesperança” que permeia o livro.



“A CULPA É MINHA

OU

A HORA DA ESTRELA

OU

ELA QUE SE ARRANJE

OU

O DIREITO AO GRITO


QUANTO AO FUTURO

OU

O LAMENTO DE UM BLUE

OU

ELA NÃO SABE GRITAR

OU

UMA SENSAÇÃO DE PERDA

OU

ASSOVIO NO VENTO ESCURO

OU

EU NÃO POSSO FAZER NADA

OU

REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES

OU

HISTÓRIA LACRIMOGÊNICA DE CORDEL

OU

SAÍDA DISCRETA PELA PORTA DOS FUNDOS”



Soturno, não? Há muitos sentidos aqui, e os significados de cada um vão se revelando ao leitor com o passar das páginas. De certa forma, esse parece ser o livro mais distante de Clarice como figura. Quem o narra é Rodrigo S.M., uma figura ambígua, pouco confiável, autocentrada e irritante que se coloca ao mesmo tempo como autor do livro e narrador da história de Macabéa, nordestina de Alagoas que se mudou para o Rio, trabalha como datilógrafa e vive em condição de pobreza. Tem um namorado chamado Olímpico, que a trata com desprezo e acaba largando a protagonista pela sua colega de trabalho, Glória. O retrato dela é triste, de uma pessoa sofrida e dócil, ingênua e digna de pena.



Há quem critique a condescendência com a qual a protagonista é tratada, além da Clarice não ter lugar de fala para escrever sobre a experiência de uma migrante nordestina pobre — embora Clarice, de certa forma, também venha de Alagoas, local onde aportou no Brasil após emigrar ainda bebê da Ucrânia. É uma crítica válida, mas acho relevante considerar que existe um distanciamento claro entre Rodrigo S.M. e Clarice em vários aspectos. Primeiro, em ele ser tão diferente das suas narradoras usuais, mulheres da alta sociedade carioca. Segundo, nas contradições de Rodrigo, ironizado pela autora, que são evidentes ao longo da leitura. Ainda assim, mesmo esses dois aspectos são ambíguos, especialmente com o subtítulo da dedicatória do autor, que reitera a posição de Clarice enquanto autora:



Dedicatória do Autor (Na verdade, Clarice Lispector)



E Rodrigo? É dele a dedicatória, sendo ele o autor na narrativa? Essa introdução ao livro também tem um tom um tanto pretensioso, cheio de homenagens a compositores clássicos mortos, odes à honra da pobreza e repulsa à depravação da riqueza:



“Dedico-me à saudade da minha antiga pobreza, quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta.”



Mas afinal, é Clarice ou é Rodrigo? O quanto a atitude de Rodrigo em relação a Macabéa é a atitude de Clarice em relação a ela? Rodrigo é narcisista, sempre falando de si, enrola para começar a história da protagonista por estar absorto em autorreflexões e elucubrações sobre si mesmo. Posterga a trama ao mesmo tempo em que fala que o que tem a contar é urgente, deve ser gritado, divulgado.



“Porque há o direito ao grito. Então eu grito.”



Rodrigo ainda exclama que o estado em que estamos e que o impele a escrever é de emergência e de calamidade pública. As coisas não batem. Se a história é tão essencial, por que não contá-la logo? É desesperador. Por outro lado, ele reconhece o quão autocentrado é, e pede desculpas:



“Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido, e ao escrever me surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino. Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?”



Nesse sentido, também há trechos em que o narrador-autor é claramente ironizado pela autora-autora, destaco aqui:



“(Mas e eu? E eu que estou contando esta história que nunca me aconteceu e nem a ninguém que eu conheça? Fico abismado por saber tanto a verdade. Será que o meu ofício doloroso é o de adivinhar na carne a verdade que ninguém quer enxergar? Se sei quase tudo de Macabéa é que já peguei uma vez de relance o olhar de uma nordestina amarelada. Esse relance me deu ela de corpo inteiro. Quanto ao paraibano, na certa devo ter-lhe fotografado mentalmente a cara — e quando se presta atenção espontânea e virgem de imposições, quando se presta atenção a cara diz quase tudo.)”



Fico inconformado. Não é possível que isso não seja irônico. Fico abismado por saber tanto a verdade? Tendo lido outros livros da Clarice, está aí uma frase que não combina com ela. Clarice é a dúvida, o questionamento, o inconformismo com o mundo e a própria existência. Saber quase tudo acerca de alguém? Por ter pegado de relance um olhar de alguém como ela? Impossível. E tudo isso coloca a maneira como Macabéa é descrita em questão. Assim, também traz ambiguidade quanto à postura de Clarice sobre a sua protagonista. Fazendo o advogado do diabo, talvez ela acredite mesmo em tudo o que escreveu ao pé da letra, concorde integralmente com Rodrigo S.M. e sua visão paternalista de Macabéa, mas acho difícil.



Sei lá, A Hora da Estrela é tão única dentro da obra clariceana que complica a vida de quem tenta analisar à luz do que esperamos da autora. Tentar aplicar uma ótica de “morte do autor” — a teoria literária elaborada por Roland Barthes, que postula que deve-se analisar uma obra de arte em si só, desconsiderando as intenções do autor e guiando-se somente pelo texto — na interpretação seria ainda mais complicado nesse caso. Matamos apenas Clarice ou matamos também Rodrigo S.M.? Impossível assassiná-lo e removê-lo da análise da obra, pois ele faz parte do próprio texto. Não sei se Barthes ao formular sua teoria levou em consideração esse cenário de autor-narrador-mas-que-na-verdade-não-existe-na-vida-real. Enfim. Destaco mais um trecho:



“Ah pudesse eu pegar Macabéa, dar-lhe um bom banho, um prato de sopa quente, um beijo na testa enquanto a cobria com um cobertor. E fazer que quando ela acordasse encontrasse simplesmente o grande luxo de viver.”



Grande luxo de viver? Tenha santa paciência. É evidente o distanciamento irônico que Clarice estabelece entre si e Rodrigo. Mas isso não resolve totalmente a questão da crítica direcionada à obra: o livro é condescendente em relação a Macabéa, isso é fato. Clarice é cúmplice ou crítica? Pendo mais para a segunda opção, mas é impossível sanar isso com certeza absoluta. Como sempre, há apenas uma certeza: Clarice é incógnita.



“Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.”



Autoria: André Rhinow

Revisão: Artur Santilli, Laura Freitas e Ana Carolina Clauss

Imagem de capa: Quadro Explosão, de Clarice Lispector, 1975. Acervo Clarice Lispector / Fundação Casa de Rui Barbosa.


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