Dizem que vias apenas em cima de estrada existem. Cinco séculos atrás, vias que vinham do Euro caminharam mortalmente sobre fortes e profundas águas. Planavam sobre caravelas e se entendiam messianicamente como a primeira e única via. Dias, dias, Dias, dias e dias: o azul dos olhos foi ofuscado pela imensidão dos mares e dos céus — a razão se perdeu, não se via; Descartes, que nem havia nascido, chorou. Sem medo de chegarem a qualquer-algum-lugar, toparam inesperadamente com vias outras. Vias estranhas, cores da terra. Mas isso não foi proclamação de impedimento: descobriram deles o método antropofágico e aproveitaram o aprendizado para transformar os professores estranhos em verdadeiras entranhas. Construíram-construíam-constroem vias uma por cima da outra, formando-se redes que escravizavam qualquer via que vinha. E, assim, foice dando por tempos, emudecendo futuros…
O presente recente chega — então? Enquanto os Gravatas do central-plano-mais-alto vivem acordando, a gente morre dormindo. Eles, os sociais-contrasociais, vestem pacientemente uma borboleta parcelada por nós. Neles, os em-tornos parecem não ruir em desgraça. Tudo vai se configurando como se o próprio mérito, e não a nossa própria cegueira generosa, tivesse lhes agraciado com esse panorama. Um raro uísque no copo, charutos que nunca se repetem, filas nulificadas nos aeroportos, gabinetes ostensivamente dedicados a diminuir sua jornada de trabalho, talvez alguma preocupação: o cotidiano político dessas adocicadas terras. Esse momentâneo monotocromático parece fixado por demasiado tempo. Essa fotografia parece revelar uma via de mão única.
Enquanto isso, em vias paralelas, no vigésimo século, antes, depois e durante a Semana de 22, braços foram crescendo por todo o país. Cresceram em número, mas isso não foi tão significante. Cresceram, mesmo, em diversidade. Raízes agarrando com toda força todas as fronteiras que tortuosamente corroíam os de fora. Um arsenal colorido vindo de todos os campos do mapa foi dando origem a um povo misturado. Todas as línguas falando e se conversando ao mesmo tempo até que os ouvidos só enxerguem barulho. O português sendo agredido: gírias, importações de palavras, gaguejadas, almoço de sintaxe e sílabas desnecessárias. Ninguém sabe o que tudo isso está formando. O Brasil é preto — a coloral mistura de tudo —, o Brasil deveria se chamar Mundo. Vai crescendo e se expandindo, traçando estradas no meio de morros, florestas e desertos. A utopia de um mundo sem fronteiras e inteiramente único vai sendo construída aqui de modo que todos se desesperam. O mundo duvida: “O plano nacional dali parece ser inimaginável”.
E não foi a partir de embates educados que isso se deu e foice dando. Sangue pintando, pessoas traumatizadas em pranto, vidas de sentido esquecido se esquecendo: muita injustiça transbordando demanda. Raiva e ódio foram sinônimos e antônimos — pavor e respiro. Uma terra de ouros, um lugar de colheita sem acolher sem fim, um cheiro de café em qualquer punhado de terra, sobrados e prédios empurrando qualquer espécie que bata caminho, cheio de sóis para delimitar o inferno latejante. A pele queima, a alma arde, o coração dispara. Toda esperança desaparece em mãos pobres. O samba canta o coração, o funk espelha a realidade já sem rima e cordas. Mãos brancas estrangulam — antes, faziam-no aos olhares jesuíticos de Deus; hoje, mascaram-se em ideologias e palavras que parecem não se realizar na realidade. Alguns cães dormem, outros bestializam-se vorazmente por revolução. Mais vias então.
Enfim, tinha sido organizada num espaço de tempo a tal Semana. Emanava cores da bandeira, tessituras da história. Nomes, nomes e mais nomes — então desconhecidos. O projeto era nobre, era insuficiente. Falavam de vias e pontes. Tudo convergiria para um sonho coletivo. O mulato, de olhos abertos, finalmente pegaria no punhal. O índio fabricaria arcos da mais fina técnica — mais rápidos que uma bala. Foram extravasando histórias, martelando quadros, mesclando sons, rearranjando os vitrais refletidos pelas silenciosas angústias... O ser vinha antes do entender, foi uma imposição às avessas. Os com poder de agir sobre o mundo gritaram ensurdecedoramente como um nu descalço que se depara com o rastejar do objeto mais grotesco prestes a dar o bote. Envenenar ou pisotear? A tentativa era silenciar um povo que se forjou no batuqueiro cantar, no falar recheado de vogais.
Independentemente de quem — quem quer que quisesse —, cortes foram se fazendo a partir de quaisquer lados do país. Foram se topando desigualmente uns com os outros. O matagal nunca foi uma questão; ele ia sendo deglutido, servindo de alimento, pecuarismo e combustível. Lutas e mais lutas: todas representavam sons de línguas mandantes ou ignoradas. Futuro bom beira o impossível; nenhum lugar dessa esfera parece ter desejado harmonia num ambiente tão diverso. O Contemporâneo, no geral, clama por diversidade, mas ainda é jovem na experimentação desse remédio — caldo áspero e quente, rasgador de faringes. Ninguém nunca alcançou a sobrevivência após esse ritual. Mas esse Brasil, essa constelação de regionalismos, parece ser duro na caída, parece que gosta de se levantar. Valerá a pena? Talvez tudo valerá, apesar de não ter valido e não valer, além de hesitações em “valeria”. Certo seria indagar: nossa alma pequena? Nós precisamos inventar o Brasil que ninguém via.
Vias? Vias que ninguém via. Vias finas, vias longas, vias largas: quantas vias? Vias tortas, vias íngremes, vias proibidas: calar as vias? Quem vivia eram as vias, vivas. Vias com 1%, vias com 50%: nenhuma via vivia 100%. Vias divas, vias emotivas, vias reflexivas. Umas vias positivas, outras negativas. À deriva, todas saudosas vias. Vias de cima, vias do lado, vias ativas. Vias expansivas, nada equitativas — eram vias. Alternadativamente, vias viviam de vida. Nenhuma via era definitiva.
Autoria: Gabriel Linares Fernandes, março de 2022;
Revisão: Bruna Ballestero e Glendha Visani.
Imagem de capa: "Operários", Tarsila do Amaral, 1933
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