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COM ÁLBUM DO ANO PARA BEYONCÉ, GRAMMY SE REDIME, MAS REVELA UMA INDÚSTRIA AINDA PROBLEMÁTICA




Muito se critica a relação massificada que a cultura americana tem com o resto do mundo, inclusive o Brasil. Isso, claro, é herança de um longo processo de hegemonia que foi bem sucedido e estabeleceu, ao menos no ocidente, os EUA como maior referência em arte e cultura para a maioria esmagadora das pessoas. 


É inegável os sintomas que esse chamado “vira-latismo” cultural traz para países como o nosso. Utilizar parâmetros para medir a qualidade das produções culturais não só enfraquecem nossa indústria doméstica como coloca em xeque nossa própria originalidade. Mesmo assim, o impacto é inquestionável. Por isso, suas fabulosas premiações, com milhares de membros de tantas academias diferentes, acabam sendo uma lente sobre como a indústria cultural se movimenta, e quais tendências elas podem ou não ditar para o futuro, seja no cinema, na música ou no teatro. Com isso, é normal que muitos parem para acompanhar a entrega de prêmios para os maiores artistas da cultura de massa. 


A edição de 2025 do  Grammy, maior premiação fonográfica do mundo, ocorreu há dois domingos, no dia 02 de fevereiro, e contou, como sempre, com nomes célebres da música americana e de certas partes do globo, reunidos em um evento luxuoso que reconhece o melhor da indústria - a indústria majoritariamente branca e norte-americana.


Fato é que a 67ª edição da premiação foi, sem dúvidas, uma das melhores dos últimos anos, contando com condecorações justas, reconhecimentos históricos e apresentações marcantes. Acima de tudo, a noite se encerrou da maneira mais adequada possível, que consolidou de fato uma mudança nos paradigmas da Academia: o primeiro prêmio de Álbum do Ano (Album of The Year, ou AOTY, em inglês) para Beyoncé, após 5 indicações solo da cantora.


A vitória veio momentos depois de um discurso pouco convincente do presidente da Academy of Records (a academia da música dos EUA) sobre a renovação do corpo votante a fim de melhorar a qualidade e a diversidade da premiação, alvo constante de críticas em relação a um racismo velado e a desvalorização de artistas não brancos e de diferentes gêneros da música. Para provar o ponto, o discurso foi seguido, ainda, por uma apresentação de The Weeknd, artista que, em 2021 rompeu publicamente com a premiação após ter sido esnobado e perdido indicações mesmo tendo um ano de produções aclamadas pelo público e pela crítica. 


2025 então se consolida como um provável ano de mudança de rumos e paradigmas na indústria fonográfica norte americana, que, importante ressaltar, contrasta com o rumo de outras corporações, que acenam cada vez mais à direita com a ascensão do segundo governo Trump nos EUA. Com o reconhecimento de artistas não brancos, valorização de diferentes estilos musicais e o protagonismo feminino, a premiação certamente se mostra pronta para amadurecer e ouvir as críticas de longa data, se adaptando aos novos tempos.


Em um ano recheado de grandes nomes e de produções de qualidade, o Grammy teve uma de suas edições mais deliciosas de ser assistidas. Não havia projetos “penetras” indicados nas categorias, sejam as principais televisionadas ou as entregues fora das câmeras. Destaque para as merecidas vitórias de artistas como Kendrick Lamar, que levou para casa 5 gramofones dourados, inclusive de “gravação do ano” e “canção do ano”. A arte de Kendrick já supera expectativas há anos, consolidando o rapper como um dos maiores de todos os tempos e referência máxima de sua geração. 


Ainda, as já esperadas vitórias de Charli xcx, que ganhou seus três primeiros gramofones em uma única noite, com seu aclamado álbum BRAT - um dos favoritos ao Album of the The Year - a consolidaram como uma das favoritas da nova cena pop. Em álbum de rap, a merecida vitória de Doechii, também indicada em outras 2 categorias – inclusive a de Artista Revelação – foi seguida de um discurso emocionante da cantora, que reforçou a luta e o reconhecimento de mulheres negras na indústria, além de uma apresentação, horas depois, sagrada como a melhor da noite e, em minha opinião, a melhor dos últimos anos. Chappel Roan levando o prêmio de Artista Revelação - ou Best New Artists (BNA) em inglês - também foi simbólico. A cantora, uma mulher lésbica, proferiu um discurso poderoso exigindo maiores direitos trabalhistas para artistas iniciantes na indústria musical. 


Todos os importantes significados, símbolos e avanços, entretanto, ficaram de lado nas redes sociais e entre a parcela de fãs, que criticaram e desdenharam da vitória de Beyoncé e outros artistas. Em especial, as fanbases das cantoras Taylor Swift e Billie Eilish - artistas que saíram de mãos vazias da premiação - passaram a questionar a legitimidade dos prêmios que seus pares levaram na noite. Dezenas de comentários, apontamentos e “achismos” ainda podem ser vistos pelas redes sociais, como instagram ou X (antigo Twitter), dias após a premiação. A maioria deles questionam se Cowboy Carter, projeto de Beyoncé sagrado como AOTY,  merecia de fato levar o prêmio sobre os trabalhos de Eilish e Swift.


Aqui, finalmente, chegamos ao ponto principal desse texto. Mais do que o Grammy, as atitudes dos fãs mostram como, na verdade, a indústria por completo – isto é, a relação entre produto e consumidores – precisa ser revista, já que não são raros momentos em que os que consomem artistas – em sua maioria pessoas brancas – se refugiam em fotos de perfil dos ídolos para destilar ódio, misoginia e racismo sobre outros. 


Vejamos: Beyoncé entregou um dos trabalhos mais aclamados do ano pela crítica especializada e público consumidor em geral. O Cowboy Carter não apenas possui qualidade técnica, com excelentes composições, arranjos e vocais de Beyoncé e artistas convidados, como também coesão artística e narrativa. Parte de um projeto maior da cantora texana, que dividiu em três atos (Act I, II e o futuro Act III) os seus experimentos em gêneros que nasceram dentro da cultura negra norte americana, o Cowboy Carter nasce como um álbum country histórico, que ainda brinca com o R&B, Rap e Pop, campos já conhecidos por Beyoncé. Ainda, o projeto contará com um terceiro álbum, muito provavelmente de Rock, que foi criado e cultivado pela comunidade negra, que foi apagada quando este gênero atingiu a hegemonia cultural. 


Irmão mais novo do Renaissance, álbum de house, eletro e dance pop, sagrado como um dos melhores da cantora e que vergonhosamente perdeu Álbum do Ano para o duvidoso projeto de Harry Styles (Harry’s House), em 2023, Cowboy Carter apenas serviu para consolidar o alcance artístico de Beyoncé sem deixar de lado a excelência pela qual ela é famosa por prezar. Assim, não foi surpresa quando este se tornou um sucesso comercial, com recordes históricos (como o de primeiro álbum de Country de uma mulher negra a atingir o primeiro lugar das paradas), além de obter aclamação instantânea, figurando como o quinto mais bem avaliado do ano e sempre figurando entre os 3 melhores de 2024 - em geral, ficando apenas atrás do excelente BRAT, de Charli xcx - nas maiores publicações de música e entretenimento. 


Mesmo assim, não são poucos os questionamentos de diversos fãs irritados, que clamam que Beyoncé levou um prêmio por pena, por suborno ou mesmo por uma espécie de compensação retroativa pelas injustas derrotas do passado, já que a artista perdeu 4 de suas 5 indicações na categoria. Mesmo que fosse, fato é que isso ainda não deslegitimaria a vitória da cantora, que carrega no Cowboy Carter o peso de anos de racismo e apagamento na indústria, além de continuar o objetivo que ela tem com seus trabalhos desde o álbum Lemonade, que perdeu em 2018. 


O que acontece, na verdade, é uma reação raivosa de consumidores histéricos que possuem uma relação pouco saudável com a música - mesmo a de massa - e com seus ídolos. O álbum de Taylor Swift, The Tortured Poets Departament, por exemplo, foi um projeto morno e com recepção mediana da crítica especializada, que em nada inovou ou se equiparou a outros de seus trabalhos aclamados e de qualidade, como o Folklore, ganhador do AOTY em 2019. Swift, por sinal, é a maior ganhadora da categoria, com quatro vitórias, sem nunca haver questionamentos sobre algumas destas, revistas como injustas ou não merecidas, inclusive por vários críticos musicais. Mesmo assim, há enorme comoção dos fãs pelo trabalho recente, o que é muito válido, claro, mas que cega os consumidores ávidos por recordes e números. Não há espaço para reconhecer o talento de outros e, aparentemente, a infalibilidade de Taylor Swift é inquestionável para mais fanáticos. 


Ainda, os fãs de Billie Eilish se juntam aos famosos swifties para atacar artistas como Beyoncé, já que pela primeira vez desde sua primeira indicação na premiação, Eilish saiu de mãos vazias. A cantora que lançou o Hit Me Hard and Soft, trabalho de qualidade que a consolidou como uma das maiores artistas de sua geração, teve 7 indicações e zero prêmios, o que talvez tenha chocado grande parcela de seus fãs, acostumados com vitórias fáceis - devido a qualidade do trabalho da artista - em inúmeras premiações, incluindo o Oscar. 


Beyoncé, Taylor Swift e Billie Eilish são titãs de uma mesma indústria, que produzem músicas de consumo em massa e com enorme sucesso comercial. Porém, o que as diferencia é a forma que cada uma conduz sua carreira e prioriza aspectos de seu trabalho. Swift, por exemplo, é conhecida por compor suas músicas, sendo um dos maiores atrativos para sua enorme legião de fãs. Com muitos, inclusive diminuindo outras cantoras por isso, já que o próprio Cowboy Carter é questionado quanto ao número de compositores que trabalharam nele. Mesmo assim, são essas acreditações que garantem o reconhecimento de artistas que participaram mesmo que indiretamente das obras, os quais Beyoncé busca para seus samples e interpolações ao longo das faixas, algo que nem sempre é feito por parte dos grandes cantores. Já Eilish, por sua vez, é famosa por sua voz diferenciada e compor estilo e estética com seus projetos, que agradam uma legião jovem que clama por dinamismo criativo. Já Beyoncé abarca todas as competências das anteriores somada com o peso histórico e a coesão de seus trabalhos. 


Mesmo assim, não apenas pelo critério racial mas também pela relação problemática que as novas gerações possuem com a música – e a arte em geral – na qual tudo é baseado em números, em que se quantifica a qualidade e se preza muito mais por charts e streamings do que de fato pela experiência prazerosa de se escutar um artista que se gosta, um trabalho como Cowboy Carter não mereceria os maiores louros da noite. Pelo contrário, parece que, mais uma vez, deviam ser as mulheres brancas, que agradariam mais o ouvido do consumidor médio do pop - classe na qual me incluo - a levar Album of The Year (mesmo que que não estivessem perto da vitória, já que BRAT ainda era o favorito para o prêmio).


No fim, a massificada indústria musical americana - que, infelizmente, dita regras e influencia as indústrias no mundo todo - sobrevive disso. Se readapta para caber nas expectativas pobres de uma massa que não consegue reagir de forma saudável à rejeição de si ou seus gostos. Não existe espaço para reconhecer quando seu ídolo erra, quando este não entrega algo bom ou quando simplesmente não merece algo. Tudo é agressivamente reduzido a discussões rasas no Twitter ou a ataques preconceituosos no Instagram. 


E claro, mesmo acertando em vários pontos, o Grammy ainda cometeu vários erros. Como grande exemplo para nós, brasileiros, cito o fato da premiação deixar o lendário Milton Nascimento de fora da cerimônia televisionada, não o dando uma cadeira, mesmo que ele fosse um dos indicados por melhor álbum vocal de jazz. Esse acontecimento já valeria um outro texto explicitando a xenofobia nada velada da indústria americana. No fim, ainda há um longo caminho a ser percorrido até que se alcance de fato diversidade na música hegemônica. Até lá deve-se repensar e contornar também essa dinâmica corrosiva entre consumidores e consumo. 


Entre tantos grandes nomes e artistas talentosos, felizmente, podemos esperar que talvez aos poucos poderemos ver indústrias musicais mais e mais diversas, excelentes e compromissadas com uma arte autêntica. Seja nos EUA ou no Brasil, a originalidade e a artisticidade precisam ser relembradas para que, talvez, as pessoas entendam que às vezes está tudo bem consumir algo que não agradou aos outros, que é saudável explorar novas coisas e celebrar os acertos históricos. 


Beyoncé levou o maior prêmio da noite, engrandecido pelo contexto – o mesmo que outras fanbases tentam usar para diminuí-la.  Mesmo que essa vitória represente, ainda, uma indústria de massa hegemônica, ela também é parte de algo maior, uma mudança em paradigmas enraizados em uma sociedade inegavelmente racista como os EUA. Não há consumidores raivosos, adolescentes histéricos que mudem isso. Um dia, quem sabe, todos entenderão que não há problemas de se gostar por gostar, de enaltecer o merecido e reconhecer os erros. Um dia, mesmo a indústria de massa pode evoluir. Até lá, fico com a minha playlist do Spotify. A melhor do mundo, para mim, claro. Recomendo que você, leitor, faça o mesmo com as suas e redescubra a alegria de ouvir - e consumir - sem culpa o que você gosta. Claro, deixando que os outros façam o mesmo. 



Autor: Arthur Quinello

Revisão: Artur Santilli e Manuela Ferreira 

Imagem de capa: Kevin Winter/Getty Images for The Recording Academy



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