Tenho em casa alguns livros de crônicas que folheio esporadicamente. Essa é sempre uma atividade contraditória – ainda que goste de ler textos de Millôr ou Stanislaw, sempre me acho perdido em meio às memórias que me esforcei para esquecer. Recentemente, caí nessa armadilha: peguei um livro e, ao folheá-lo, deparei-me com o texto "No lotação", de Carlos Drummond. Recordei que já o havia lido. Li-o em meio às marés altas de fins do ensino médio. Na colação de grau, disponibilizei-me para ser um dos oradores de minha turma. Fomos avaliados em termos de eloquência, dicção e fluidez e, para isso, tivemos que proclamar "No lotação". De início, lembrei do ônibus, dos passageiros do lotação e da monótona rotina descrita pelo narrador. No entanto, não posso negar, acho que o texto não fez muito sentido para mim naquele momento. Atentei-me à forma, mas me esqueci do conteúdo. Pensei tanto em declamá-lo acertadamente que esqueci de entendê-lo.
Reli-o. Dessa vez com mais esmero. A crônica trata de antíteses – o habitual e o incomum, a rotina e a surpresa. Acostumados ao silêncio ruidoso no lotação, a estranheza dos passageiros surge quando um homem canta, sem acanhamento, em voz livre e desprendida: “Não queriam acreditar que alguém cantasse no interior do lotação. Rádio se tolera. Mas voz humana, próxima, direta?” De imediato, o ultraje frente ao inabitual, a repulsa instantânea ao que é estranho. Afinal, como poderia aquele homem ousar cantar sem cerimônia nem encabulamento? Um simples ato que fora capaz de romper toda a normalidade subentendida – e, como todos sabem, não é de bom tom quebrá-la. Ater-se à normalidade é menos demandante. Tão mais confortável que estranhamos e condenamos quem não a segue. Sem perceber, acostumamo-nos a ela. Refugiamo-nos na inércia diária. Conformamo-nos com o café com pão. Com o ritmo incessante que conduz nosso caminhar.
Penso que eu também estava acostumado e, acostumado, vivia automaticamente. Meu ensino médio foi marcado de conformismo. Em meio a tantas escolhas, escolhia não escolher. Entre vestibular, despedidas e discursos, seguia o roteiro, sem desvios, evitava a novidade. Todavia, sinto que agora a novidade me faz falta. Fazem-me falta as pequenas quebras na normalidade subentendida, as simples mudanças no caminho. Decerto, tento mudar, mas é custoso. A rotina, intransigente. Talvez essa seja a beleza do texto: a capacidade de quebrar a inércia com um simples ato, cantar. Fazer o que parece expressamente proibido sem de fato ser. “É tão natural desobedecer a uma proibição, como absurdo fazer alguma coisa que não desobedece a nada, mas não foi expressamente permitida: esta, sim, é a verdadeira, sutil infração.” Em um primeiro momento, a estranheza dos passageiros, depois, uma inusitada contemplação. Quando o rapaz parou de cantar, o silêncio se revelou como uma presença indesejada. A novidade no lotação não parecia mais um desconforto: “cantava por si, talvez por nós, que não sabemos ou temos vergonha de cantar.”
Acho que tenho procurado alguém que cante por mim. Tenho me contentado em buscar um cancioneiro no lotação. Alguém que me tire forçosamente dos monótonos deslocamentos rotineiros. Eu mesmo cantar? Isso não. Não serei meu próprio cancioneiro, prefiro seguir na espera. Rapidamente, fechei o livro, apaguei a luz e tornei a cabeça no travesseiro. Amanhã tenho que ir cedo para a faculdade.
-------------------------------------------------------------
Autoria: Giovanni Tortorella
Revisão: Artur Santilli e Luiza Parisi
Imagem da capa: Linha de lotação Penha IAPI - Madureira em junho de 1963. Foto por Décio Vicente Monteiro. Fundo Correio da Manhã. Arquivo Nacional
Kommentarer