É noite. Joana desliga seu computador. Deus, já são onze horas da noite e eu ainda não fiz a droga da maquete de anatomia. Coisa inútil, tenho 10 anos por acaso? Três anos de cursinho para entrar numa faculdade de medicina que me passa trabalhos com Play-Doh… puta merda. Jojô xingava tudo aquilo que ela não conseguia fazer de inútil e estúpido.
Nas aulas de artesanato, ao contrário de seus coleguinhas, seus projetos nunca davam certo. Os cartões de celebração do dia dos pais e do dia das mães eram um desastre. Às vezes, Jojô colocava muita cola com glitter e o cartão não se abria, ou então não usava qualquer apetrecho e ficava sem sal. No dia dos pais, ela sempre fazia dois, um para seu pai e outro para seu avô, Oscar. Não importava o quanto ela se esforçava, sempre tinha algum defeitinho.
Apesar disso, o avô sempre a enaltecia pelos seus trabalhos. Jojô achava engraçado, não importava o quanto os cartões estavam com as letras tortas ou a quantidade de erros gramaticais, o vô sempre pendurava na geladeira e lá ficavam todos os mimos que ele ganhara da netinha. Eles tinham rituais próprios. A entrega de presentes era um deles: Jo entregava o presente e se desculpava ao mesmo tempo que seu avô abria os embrulhos, ele então a agradecia e a elogiava enquanto decidia onde colocaria seu novo item de decoração.
Joana checa seu celular antes de deitar-se e lê as mensagens que sua mãe lhe deixou. Oi, Jô. Você pode vir aqui amanhã? É o vô Oscar, ele está bem, mas anda um pouco esquecido, sabe? Eu e seu pai sabemos que você anda muito ocupada, mas venha, por favor. Te amamos, durma com Deus. *figurinha da menina coreana fazendo um coração com as mãos*
Ela então responde as mensagens e põe-se a dormir. Oi, mãe! Volto para casa amanhã, acho que chego lá pelas 15 horas. Vou avisando no caminho, ok? Amo vocês, se cuidem!!
Já na casa de seus pais, Joana toma um café e vai visitar seu avô. A casa continua a mesma, os cartões horrorosos continuam na geladeira, as fotos de família continuam perto da lareira, os protótipos de artesanatos gone wrong continuam na mesa de centro da sala de estar. Tudo continua em ordem. Não pode ser muito grave.
A conversa começa com o de sempre. E aí, como vai a vida? Pergunta o Sr. Oscar aos visitantes. O de sempre, pai, muito trabalho! Estou com duas estagiárias novas no escritório, aí elas são uma mão na roda! E você, o que tem feito de bom?
Fui à farmácia comprar uns remédios que me faltavam. Acho que fui à farmácia errada, aquela onde eu sempre vou fica umas três quadras daqui e os atendentes eram todos diferentes, achei estranho, demorei muito tempo para chegar em casa. Ao ouvir isso, Joana surpreende-se. São apenas três minutos de caminhada para chegar à farmácia e os atendentes sempre foram os mesmos.
O Sr. Oscar percebe que não havia se dirigido à jovem que o visitava. E indaga:
E você? É uma das estagiárias dela?
A frase ecoou em sua cabeça.
Como assim? Como não sabe meu nome? Como não sabe quem sou? Ele me conheceu antes mesmo de eu ter consciência de que era uma pessoa. Foi ele quem me ensinou a andar de bicicleta, quem sempre amarrava os cadarços dos meus sapatos, quem me buscava na escola, quem me apoiava em tudo incondicionalmente. Como pode ter se esquecido de mim? Impossível.
De repente, Jo não tinha certeza se tudo aquilo que os dois tinham vivido juntos foi real ou se isso não se passava de sonhos lúcidos. Não, são muitas lembranças. Não tem como terem sido apenas sonhos, sua memória de sonhos não é tão boa assim… Como pode ter se esquecido de mim? Ela frequentemente se preocupava com o estado de saúde de seu avô, sabia que a memória seria uma das primeiras coisas afetadas pela doença dele, mas acreditava que ele nunca se esqueceria dela, ou então, que ela seria a última a ser esquecida. Não faz sentido eu ser a primeira.
Ela achava que tinha tempo. Tempo para mantê-los conectados, tempo para fazê-lo recordar-se constantemente dela, tempo para ser a neta de seu único avô, tempo para nutrir a pequena Jojô de 6 anos que ainda habitava na Joana atual, de 20 anos.
Joana há muito não o visitava, mudou-se para São Paulo e ingressou na faculdade de Medicina. Ralava tanto, nunca parecia o suficiente. Feriados iam e vinham, mas sempre tinha a impressão de que não compensaria voltar ao interior — 12 horas na estrada não é brincadeira, melhor era ficar na capital paulista, assim ela não perderia tempo e seus estudos não seriam afetados. Que insensível. Eu não voltei para casa nesses últimos três meses, agora nem sei o porquê disso.
Ele não se lembra mais de mim. Como pode ter se esquecido de mim?
Sente-se órfã, a impressão de que tudo acontecera muito rápido e de que ela não percebeu o passar do tempo lhe causava aflição, sente seu peito pesado. Jojô sabe que ele ainda estava vivo, mas quem é essa nova pessoa no corpo dele? Os dois já não se conhecem mais, é como se nunca tivessem.
Sente o luto por seu querido avô, pois está ciente de que esse, a versão do Sr. Oscar, pai da mãe de Joana, se fora. Jojô era sua única netinha. Ele amava seu jeitinho teimoso e sagaz e sabia que Jo seria uma excelente médica, sentia muito orgulho dela. Entretanto, agora não se lembra dela. Todo esse amor, todo esse orgulho e toda essa admiração já não existem mais.
Joana está de luto, tanto pelo vovô Oscar, quanto pela neta desse. Afinal, se não possuo avós vivos, não sou neta de ninguém. Tinha tanto dele que eu ainda não conhecia, o processo de imigração ao chegar no Brasil, a época da ditadura militar, o sentimento de ver a seleção brasileira de futebol vencendo as Copas do Mundo até a frustração do 7x1, a sensação de aposentar-se — tudo isso nunca fora assunto de nossas conversas, eu pensava que tinha tempo, que quando eu voltasse para casa trataria dessas questões. Perdi o tempo. Perdi meu avô Oscar. Perdi a Jojô.
Autoria: Mônica Takehara
Revisão: Lucas Tacara e Fernanda Abdo
Imagem de capa: "We inhabit the littoral of habit" (1940) - James Gleeson/Reprodução: Google Arts & Culture
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