A contemporaneidade está experimentando (e sofrendo) a crise do Estado liberal. Um dos aspectos fundamentais dessa concepção de Estado é o sistema democrático como forma de organização política da sociedade. Nele, a soberania popular é exercida por meio do voto, de maneira que pode influenciar, direta ou indiretamente, a formação das leis e a escolha de seus representantes.
É justamente a crise desse aspecto fundamental que procuro explorar neste artigo. Se por um lado o sistema democrático garante maior igualdade entre os cidadãos ao estender a todos o direito de participação política, por outro ele permite que sejam escolhidos líderes sem nenhum compromisso com o próprio sistema — eis o paradoxo da democracia.
É verdade que o sistema democrático não está simplesmente vulnerável a esse tipo de fenômeno. Ele se encontra ao lado de outras instituições importantes do Estado liberal[1], como um conjunto de direitos e regras constitucionalizadas e a divisão de poderes que se fiscalizam e se "corrigem" mutuamente. Contudo, não é impossível que lideranças políticas de tendência populista sejam capazes de contornar esses mecanismos de proteção da democracia — sobretudo em tempos de crise.
Levitsky e Zibblat, em "Como as Democracias Morrem", argumentam que lideranças populistas e antidemocráticas podem ganhar força e popularidade em contextos de crise econômica. Os autores citam os exemplos históricos da ascensão de Hitler e Mussolini na Europa, mas também Alberto Fujimori e Hugo Chávez na América Latina[2]. Essas lideranças ascendem, dizem os autores, porque nesses contextos o establishment político se encontra desacreditado e desmoralizado.
As elites, então, incapazes de resolver os conflitos por meio de seus próprios quadros, realizam o "pacto com o diabo", isto é, formam alianças com as lideranças populistas acreditando que assim conseguirão acalmar o ânimo da população descontente e que ao mesmo tempo serão capazes de controlar os impulsos autoritários desses líderes. Foi isso o que houve na ascensão de Chávez, Hitler e Fujimori[3].
Pode-se perceber, nesse sentido, que um contexto de crise econômica, frequentemente acompanhado de crise política, propicia o surgimento de líderes que prometem respostas fáceis a problemas complexos, cujo discurso populista sempre brada a afirmação de que se identificam diretamente com o sentimento do povo. Penso que nessa chave podemos entender com alguma clareza as razões que levaram a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil.
Em primeiro lugar, é preciso apontar os problemas que o Brasil enfrentou (e continua a enfrentar) em meados desta década. O país sofreu uma grave crise econômica em 2014, durante o mandato de Dilma Rousseff. Devido a múltiplos fatores, entre eles a desvalorização das commodities e políticas macroeconômicas equivocadas[4], a economia brasileira retraiu por dois anos consecutivos, o que levou um grande número de pessoas a perderem seus empregos — em 2015 o número superou a marca de 10 milhões.
A crise econômica e a perda de sustentação política culminou no impeachment de Dilma Rousseff, de modo que, em 2016, foi alçado ao poder seu vice, Michel Temer, cujo governo foi atravessado pela crise que havia herdado e pelos escândalos de corrupção.
Não obstante a insatisfação com o agravamento da crise econômica que começou a se manifestar por meio de uma série de protestos por todo o país, pode-se sustentar que a crise política realmente se aprofundou com o desencadeamento da Operação Lava Jato (2014), que resultou na investigação e prisão de políticos, empresários e membros da alta burocracia do Estado. Dentre as principais lideranças políticas e empresariais que foram condenadas e presas estão os ex-presidentes Lula e Temer, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, os ex-governadores Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, bem como os empresários Eike Batista e Marcelo Odebrecht.
De maneira simplificada, este era o panorama das crises pelas quais o Brasil passava. É certo que há outros aspectos igualmente importantes que não foram mencionados, mas acredito que a descrença no sistema político e nas elites está razoavelmente compreensível.
Intencionalmente ou não, o resultado da Operação Lava Jato e seus desdobramentos foi a total desmoralização das elites política e econômica do país. São em momentos como este que lideranças populistas têm a oportunidade de se alavancarem e se tornarem ainda mais populares.
Um líder populista, na definição de Levitsky e Zibblat é uma figura que:
[...] afirmando representar a “voz do povo”, entram em guerra contra o que descrevem como uma elite corrupta e conspiradora. Populistas tendem a negar a legitimidade dos partidos estabelecidos, atacando-os como antidemocráticos e mesmo antipatrióticos. Eles dizem aos eleitores que o sistema não é uma democracia de verdade, mas algo que foi sequestrado, corrompido ou fraudulentamente manipulado pela elite. E prometem sepultar essa elite e devolver o poder “ao povo”[5].
Ora, Jair Bolsonaro certamente apresenta todas as características da definição dos autores. Bolsonaro ganhou popularidade progressivamente à medida que seu discurso se tornava mais reacionário e antissistema — o fatídico "estou contra tudo o que está aí[6]". O então candidato, que outrora havia defendido o fuzilamento[7] do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, afirmou em comício no Acre que iria "fuzilar a petralhada[8]". Além disso, ao longo de sua carreira política no Legislativo, Bolsonaro chegou a defender o fechamento do Congresso, o golpe de 1964, torturadores, e que o Brasil só iria mudar "no dia em que partir para uma guerra civil aqui dentro[9]".
Esses comentários extremistas demonstram que Bolsonaro, já na época das eleições, não tinha compromisso algum com os valores democráticos. Bolsonaro questionava (e ainda o faz) de maneira frequente a confiança nas urnas eletrônicas[10], afirmando que não iria reconhecer o resultado das eleições caso perdesse. Não é preciso dizer que também não reconhecia a legitimidade de nenhum de seus adversários na disputa pela presidência, isto é, concebia todos como seus inimigos, não como adversários
Se por um lado essas falas antidemocráticas provocaram repulsa e desprezo por parte daqueles realmente compromissados com a democracia, por outro elas não foram capazes de convencer os demais candidatos de que Bolsonaro era um candidato forte e competitivo.
Nesse sentido é possível encontrar um paralelo com o que aconteceu nos Estados Unidos durante a ascensão de Donald Trump:
Muitos republicanos se apegaram ao dito segundo o qual os críticos de Trump o tomavam literalmente, mas não seriamente, enquanto seus apoiadores o tomavam seriamente, mas não literalmente. Sua retórica de campanha, segundo essa visão, era de “meras palavras”[11].
Geraldo Alckmin, um dos candidatos favoritos, chegou a afirmar que Bolsonaro perderia para qualquer um no segundo turno[12]. De fato, havia razões para sustentar sua posição, na medida em que as pesquisas de intenção de voto indicavam a derrota de Bolsonaro no segundo turno[13].
Havia ainda uma peculiaridade no caso brasileiro que o diferencia dos paralelos com os populistas do século XX: a forte rejeição ao Partido dos Trabalhadores e o poder de influência das redes sociais. Tendo um papel importante no início da década de 2000, com políticas assistencialistas de combate à pobreza e à desigualdade durante o governo Lula e Dilma, o partido teve sua credibilidade seriamente agravada com a crise econômica e sobretudo com as denúncias de corrupção envolvendo membros do partido.
Essa perda de credibilidade foi essencial para a campanha de Bolsonaro, que foi quase exclusivamente realizada por meio das redes sociais. Como estratégia, a campanha esforçou-se ao máximo na tentativa de associar os problemas econômicos que o país enfrentava à corrupção encontrada nas gestões petistas, e também de vincular todos os seus adversários à velha política — ao establishment — a "tudo o que está aí".
Resultado: Bolsonaro foi eleito em 2018, vencendo o segundo turno contra Fernando Haddad, com considerável margem de vantagem sobre o adversário[14]. Em síntese: o sistema político permitiu a ascensão de uma liderança populista ao poder a qual explicitamente rejeitava o sistema democrático.
Segundo os critérios de Levitsky e Zibblat, já durante a campanha, aqueles que tinham algum compromisso com a democracia deveriam estar preocupadíssimos com Jair Bolsonaro. Não se pode ignorar lideranças políticas quando elas:
1) rejeitam, em palavras ou ações, as regras democráticas do jogo; 2) negam a legitimidade de oponentes; 3) toleram e encorajam a violência; e 4) dão indicações de disposição para restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia[15].
Se Bolsonaro já demonstrava algumas dessas características durante a campanha, uma vez eleito presidente ele não exitou em nenhum momento em demonstrar todas elas. Já como presidente, Bolsonaro travou um conflito quase que diário contra a imprensa durante os primeiros meses de governo, ameaçando cortar o fornecimento de recursos públicos para grandes jornais e levantando a possibilidade de não renovar a concessão pública da TV Globo[16], a maior emissora de televisão do país.
Uma vez no poder, lideranças populistas frequentemente se sentem frustradas quando tentam "mudar tudo o que está aí" por meio dos mecanismos que a democracia fornece. Isso porque, nas democracias liberais, os sistemas de checks and balances[17] são construídos justamente para conter as mudanças abruptas e radicais que esses líderes desejam.
Mas são nos momentos em que elas se sentem frustradas que os democratas devem estar mais atentos, argumentam os autores. Uma vez que suas tentativas não obtêm o resultado que procuram, os populistas se utilizam desse fato para insuflar suas bases e colocá-las contra o sistema democrático — já que ele estaria impedindo a realização da "vontade do povo".
O presidente Jair Bolsonaro demonstrou esse comportamento quando participou de manifestações de apoiadores do governo que defendiam a volta do AI-5, o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal[18]. Ou seja, não há a mínima preocupação em agir de acordo com o sistema de checks and balances, ao contrário — o que se deseja é justamente a sua destruição.
Levitsky e Zibblat argumentam que, entretanto, na era contemporânea as democracias não morrem como no século XX com tanques nas ruas. Elas morrem quando as lideranças populistas corrompem o sistema por dentro, isto é, quando elas passam a ter controle sobre os próprios mecanismos de controle. Exemplo clássico seria o aparelhamento da polícia federal, do Ministério Público, dos tribunais e da corte constitucional. Talvez a grande questão nem seja se a democracia brasileira já morreu, mas sim o quanto estaríamos dispostos a correr o risco de vê-la morrer — e só agir quando for tarde demais.
Autoria: Felipe Takehara
Revisão: Guilherme Caruso e João Vítor Vedrano
Imagem de capa: Wilson Dias/Reprodução: Agência Brasil
Referências:
[1] BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 19
[2] LEVITSKY, Steven; ZIBBLAT, Daniel. Como as Democracias Morrem. 13. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2019. p. 86
[3] LEVITSKY, Steven; ZIBBLAT, Daniel. Como as Democracias Morrem. 13. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2019. p. 26-28
[5] LEVITSKY, Steven; ZIBBLAT, Daniel. Como as Democracias Morrem. 13. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2019. p. 36
[11] LEVITSKY, Steven; ZIBBLAT, Daniel. Como as Democracias Morrem. 13. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2019. p. 74
[15]LEVITSKY, Steven; ZIBBLAT, Daniel. Como as Democracias Morrem. 13. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2019. p. 35
[17] Separação de poderes.
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