“É preciso uma aldeia para educar uma criança” — provérbio africano
Quem é responsável pelo cuidado das crianças? As famílias, a sociedade ou o Estado? Se analisarmos sob o prisma da Constituição, os três [1]. Isso significa que todos têm um papel fundamental no desenvolvimento brasileiro e, dadas as estruturadas desigualdades de nosso país, é preciso que o Estado atue de forma coordenada para que esse direito seja garantido.
Na educação infantil e no ensino fundamental, por exemplo, os entes municipais são os principais responsáveis, mas convenhamos que trabalhar sozinho e com poucos recursos fica muito mais difícil. Por isso, é necessária uma atuação de governança, de gestão e de financiamento.
Anísio Teixeira disse que a escola pública é a máquina das democracias. Concordo. E adiciono uma reflexão: o que se constrói nas escolas públicas para que a democracia seja atingida? Sabia que apenas metade das escolas públicas têm projetos para combater o racismo? E que somente 25% das escolas têm ações contra machismo e homofobia? [2]
As escolas não são apenas lugares nos quais as crianças aprendem conteúdos técnicos; mas também de formação e, de desenvolvimento de análise-crítica. Devem ser um ambiente de respeito e cuidado. É também a partir das vivências escolares que as crianças e adolescentes formam suas identidades, e, por isso, devemos deixar de apagar e negar suas histórias.
Pode ser também nas escolas que as crianças aprendem a sonhar. Contudo, muitas meninas estão desaprendendo a sonhar. Você já deve ter ouvido sobre o estudo que mostra que aos cinco (5) anos, surge o “Dream Gap” (a “Lacuna dos Sonhos”) [3], que se refere ao momento em que as meninas deixam de acreditar em sua própria capacidade, minando sua autoestima e desestimulando suas atitudes. E os meninos também deixam de sonhar quando não há perspectiva de futuro, incentivo e representatividade.
Quando pensamos em crianças pretas, vemos que muitas sequer chegam nessa idade: o sonho é minado pelo assassinato. No combate ao crime, infanticídio é tido como efeito colateral. Em 2020, no estado de São Paulo, 44% das mortes por violência de crianças e adolescentes foram decorrentes de violência policial; o equivalente a 140 vidas perdidas [4]. Aqui vemos o completo oposto do sentido de cuidado. Vemos então, a necropolítica [5]: onde deveria haver o dever de educar [1], habita o direito de matar.
Nessa mesma lógica, a necropolítica e a negligência, além de matarem, adoecem. Em 2019, 27,3% das crianças brasileiras de até 6 anos viviam em domicílios em situação de pobreza [6]. Problemas de nutrição insuficiente, acúmulo de estresse, privação de estimulação e interação social afetam a estrutura e funcionamento do cérebro, com consequências duradouras para o cognitivo e o emocional [7].
Já a ação inversa — o cuidado — tem efeitos positivos. O desenvolvimento nacional depende do desenvolvimento infantil. O investimento em crianças é o que gera maior retorno, em termos econômicos e sociais [8], então vamos investir no cuidado das nossas crianças. Financiar o acesso a creches, ampliar programas sociais já existentes e fazer um trabalho conjunto com a participação dos governos federal, estaduais e municipais.
Sinceramente, não acho que educação deve ser A prioridade do Estado, mas uma das. Até porque as medidas educacionais são muito mais efetivas se realizadas em consonância com as de saúde, segurança pública e assistência social.
Existem movimentos e organizações sociais que geram conhecimento e realizam ações em prol da educação. Além disso, há casos brasileiros de implementação e monitoramento de projetos e políticas públicas de muito valor, que podem ser replicados com coordenação e financiamento adequados. Por isso o Estado é tão importante.
Aqui, deixo minha mais sincera gratidão a todos que se dedicam a cuidar de nossas crianças e também lhe convido a participar desse processo. Antes, o título deste texto era “cuidem de nossas crianças”, mas achei interessante adicionar eu e você nessa equação. A gente pode fazer parte desse movimento: ele envolve a família, a sociedade e o Estado. Em algum deles, estamos enquadrados.
Obs.: Sabia que agosto é o mês da primeira infância?
Autoria: Helena Kokeny
Revisão: Anna Cecília Serrano e André Rhinow
Imagem de capa: Folha de São Paulo
REFERÊNCIAS:
[1] De acordo com a Constituição brasileira, “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho'' (Art. 205.).
[2] CARVALHO, J. Apenas metade das escolas públicas têm projetos para combater racismo no Brasil. Disponível em: <https://todospelaeducacao.org.br/noticias/apenas-metade-das-escolas-publicas-tem-projetos-para-combater-racismo-no-brasil/>.
[4] SP tem a maior proporção de mortes de crianças e adolescentes cometidas por policiais no país; 44% foram mortos pela polícia em 2020, diz estudo. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/10/22/sp-tem-a-maior-proporcao-de-mortes-de-criancas-e-adolescentes-cometidas-por-policiais-no-pais-44percent-foram-mortos-pela-policia-em-2020-diz-estudo.ghtml>.
[5] Livro “Necropolítica”, de Achille Mbembe
[6] Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância (2021). Estudo nº VI: O Bairro e o Desenvolvimento Integral na Primeira Infância. http://www.ncpi.org.br
[7] Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância (2014). Estudo nº 1: O Impacto do Desenvolvimento na Primeira Infância sobre a Aprendizagem. http://www.ncpi.org.br.
[8] Políticas públicas na primeira infância: a importância do investimento público adequado e da avaliação global do desenvolvimento. Disponível em:<http://www.soupro.com.br/nnce/Arquivos/Artigos/2014/134.pdf>