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DA DURA POESIA CONCRETA DE TUAS ESQUINAS




E quem vem de outro sonho feliz de cidade

Aprende depressa a chamar-te de realidade

Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso


Caetano Veloso


Reino Tão Tão Distante


Lembro vivamente de como eu me sentia quando vinha a São Paulo anos atrás. Para uma menina de cidade pequena do interior, chegar observando os prédios espelhados, as pontes estaiadas e a Avenida Paulista fazia com que eu me sentisse na carruagem com o Shrek, a Fiona e o Burro chegando no reino de “Tão Tão Distante” ao som de Funkytown. Tudo era novidade, eram muitas atrações, brinquedos, doces e parques diferentes para um lugar só. Não tinha como ser ruim, se meus planos na capital paulista, nessa época, se resumiam em: ir ao Playcenter, ao cinema, ao Parque da Mônica, ao Zoológico e ao show de Carnaval do Palavra Cantada.


Já um pouco mais velha, aos poucos, fui passando a compreender as realidades da terra da garoa. Deliciava-me com as idas ao Conjunto Nacional, à Fnac, à Pinacoteca ou às cantinas italianas do Bixiga—que eram ainda melhores ao som do CD de Adoniran Barbosa. Mas, ao mesmo tempo, já andava com todo o cuidado na rua, seguindo os conselhos da minha mãe: com a bolsa na frente do corpo e sem “dar bobeira”. A imensidão ainda me impressionava, cada vez de forma menos lúdica.


A primeira grande quebra na visão de reino “Tão Tão Distante” foi quando fui ao Pátio do Colégio e à Faculdade de Direito de São Paulo em um domingo ensolarado, porém nublado (com aquelas nuvens que ninguém sabe dizer se são de poluição ou de chuva). Parecia uma cidade há décadas abandonada, com tudo fechado, pessoas esquecidas nas calçadas, sujeira pra todo lado. Os destinos foram interessantes, mas o caminho me traumatizou. Essa experiência tirou uma camada do brilho que a cidade tinha, adicionando um nível de complexidade à minha visão, porque me apresentou mais uma das múltiplas faces de São Paulo. Eu comecei a entender melhor os seus seus contrastes, querida SP. No centro, as pombas, a lotação, as pessoas abandonadas e a história. Na Vila Madalena, os bares, os amigos, as comidinhas e as bandas ao vivo. Na Avenida Paulista, os prédios, as pessoas engravatadas, a pressa e as famílias aos domingos. No Ibirapuera, os potes de açaí, as bicicletas, as mulheres tomando sol e os cachorros…


Os anos passaram e eu continuei construindo uma perspectiva cada vez mais realista da dura poesia concreta de tuas esquinas, Sampa. Ia aos jogos do Palmeiras e à L’Osteria Palestra, aos shows e fazia outros tantos programas que o pequeno interior jamais seria capaz de me oferecer… mas andava depressa, apertando a bolsa contra minha barriga a cada minuto, checando se o celular não tinha caído nas mãos de alguém que nunca mais me deixaria colocá-lo de volta nas minhas.


Selva de pedra


Chegou a pandemia do coronavírus e jamais fui tão grata por morar no interior, e não na selva de pedra. Pobre São Paulo, pobres paulistanos. Sofrendo, como todos nós, com a contaminação ágil e brutal do vírus, sofrendo, também, com as enchentes, os acidentes nas estradas, os desmoronamentos de prédios e a escassez de natureza. Tudo o que São Paulo tem de melhor, fechado: os museus, os parques, os bares, os cinemas, os restaurantes.


Semanas após o começo da pandemia, eu e minha família viemos esvaziar o apartamento abandonado, e a chegada foi o mais distante possível do momento Funkytown. A minha segunda grande quebra de expectativa: estava mais perto do fim do mundo e realmente parecia que não havia vida aqui quando passamos pela Marginal Tietê escutando It’s the End of the World as We Know It, da banda REM. O quadro de infecções aqui estava bem mais agravado do que no interior, era como se estivéssemos entrando em uma cidade radioativa, verdadeiramente perigosa e possivelmente letal. Respirar, mesmo através das máscaras, era arriscado, porque, além de todas as partículas da poluição de sempre, poderíamos trazer o vírus assassino para dentro de nossos corpos.


Não Existe Amor em SP


Com a queda no número de casos e fatalidades, dei mais uma chance para Sampa. Depois de tanto tempo no interior, a saudade transformou a visão de “casa dos horrores” que tinha em algo mais parecido com aquele reino “Tão Tão Distante” de antes. Ainda no período do EaD, eu vim morar aqui. Cheguei em um domingo ensolarado, mas nublado, como aquele do dia do Pátio do Colégio. No caminho, ouvi Vienna do Billy Joel inúmeras vezes, na expectativa de mergulhar de vez naquilo que seria a minha primeira real e definitiva mudança de vida para a maior cidade do país.


Acordava dançando, comia o que queria, assistia às aulas, gostava do tempo sozinha. Até que bati de frente com a minha terceira e maior quebra de expectativa. Uma semana depois, mais um domingo, sol, poucas nuvens, 9 horas da manhã, passarinhos cantando. Resolvi ir caminhando até o supermercado do quarteirão de baixo. Sentia-me em um bairro pequeno no interior, poucas pessoas na rua, a maioria de idade, passarinhos cantando. Os benditos passarinhos. Eu me iludi, me distraí e fui contra o que a minha mãe sempre dizia: “dei bobeira”. Peguei o celular para enviar uma mensagem e foi o que bastou.


Um susto, um homem em uma bicicleta, um tapa na minha mão e lá se foi meu celular. Corri por dois quarteirões atrás dele, por puro instinto, gritando “pega ladrão!” (hoje dou boas risadas dessa parte da história). Ele virou uma esquina e eu desisti. Parei em uma banca e pedi o telefone emprestado, liguei para o meu pai, aos prantos.


Um ano de pandemia e a saudade da cidade me iludiram e me deixaram mal acostumada. Não queria sentir ódio de São Paulo, mas senti. Também senti ódio do bairro e das pessoas que estavam na rua naquele momento. Senti dó da menina enganada que, uma semana antes, vinha para esse lugar ao som de Vienna buscando uma nova vida. Senti raiva da mulher de 20 anos que saiu na rua da maior cidade do país e pegou o celular na mão, sem precaução nenhuma, como se o que “acontece com os outros” nunca fosse acontecer comigo. Sete dias depois de chegar, me sentindo sufocada e incapaz de ficar aqui por mais um dia sequer, voltei para o interior. Uma semana, foi apenas disso que São Paulo e sua ausência de amor precisaram para me mandar de volta.


O avesso do avesso do avesso


Hoje, mesmo com o peito feito táubua de tiro ao álvaro, sem ter mais onde furar, após tantas quebras de expectativa, eu te entendo, Sampa. Sei como você é com todas as suas particularidades, encantos e problemas. E te perdoo. Amo você por todos os momentos maravilhosos que me proporciona, mas ainda ando com o peito furado e o coração acelerado toda vez que caminho em suas ruas, mesmo que sejam 9 horas da manhã, mesmo que seja domingo e que esteja ensolarado ou nublado.


Assaltos, caminhadas no parque, acidentes, cinemas, furtos, bar com os amigos, miséria, carnavais, enchentes, pôr do sol. Você é assim. E, talvez, exatamente por isso, é tão bonita. É um dos retratos mais fiéis das belezas e tristezas desse país, perdendo, talvez, apenas para o Rio de Janeiro. Mas as ilusões da Cidade Maravilhosa vão ter que ficar para outra hora. Não posso ficar nem mais um minuto com você, porque, como em todos os outros dias desta semana, está chovendo e tenho que fechar as janelas.



Músicas citadas:


Sampa - Caetano Veloso

Funkytown - Lipps Inc

Que País é Este - Legião Urbana

Vienna - Billy Joel

It’s the End of the World as We Know It - REM

Tiro ao Álvaro - Adoniran Barbosa e Elis Regina

Trem das Onze - Adoniran Barbosa



Autoria: Beatriz Bernardi

Revisão: André Rhinow e João Vítor Vedrano

Imagem de Capa: Fotografia de Alan Alves


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