A nossa redatora Dominique Mattos compartilhou a importância do Rock para o atual ambiente político brasileiro. Rock não é apenas música, é um movimento cultural e social, faz parte da história. Como já dizia Freddie Mercury: “the show must go on”
Passei algum tempo nesses dias ponderando sobre o que eu escreveria dentro desse cenário caótico em que estou vivendo de forma tão intensa e diária. Poderia falar sobre o novo Congresso e o que esperar dele, sobre a minha opção de voto, sobre os relatos crescentes de violência física por questões políticas. Decidi, então, falar sobre algo que me ajuda a sobreviver no dia-a-dia e que recentemente entrou em xeque: a música. O rock, para ser mais exata.
Quem ficou nos últimos dias de olho nas notícias ou tem um apreço maior pelo assunto viu o que aconteceu nos dias 9 e 10 deste mês aqui em São Paulo, no show do guitarrista e vocalista da banda de rock clássico/psicodélico Pink Floyd, Roger Waters. No meio da miríade de porcos voadores anti-Trump e um espetáculo musical e visual que lhe rende críticas generosas, surge um apelo em um gigante telão: #EleNão. “Acabe com o neofascismo”; “Neofascismo está crescendo. No Brasil - Bolsonaro”; “Ponto de vista [anti-Bolsonaro] político censurado”. Não demorou muito para que os aplausos se tornassem vaias e o resultado do show fosse preocupante, tendo desde indivíduos se agredindo em plena pista até inúmeras reclamações sobre ele querer “5 minutos de fama”, estar “falando sobre um país que ele não entende”, ser “bancado pela Lei Rouanet” e, pasmem, “não entender a sua própria obra”.
Este grupo peculiar (para não usar um termo mais pejorativo) sofreu, de parte da Internet, uma contra-argumentação: “mas, pera aí, sobre o que você achava que Pink Floyd fazia música?”, “Roger Waters é politizado desde sempre, além de ter perdido o pai para o nazismo”. Não irei discutir sobre o “lado certo da história” aqui, muito menos sobre o Bolsonaro em especial – já estou exausta e acho que há muitas vozes que falam por mim. Quero colocar em questão, afinal, o papel do rock enquanto movimento musical. O rock ainda é um gênero transgressor, anti-establishment? Ele é anacrônico? Ele está se renovando, atraindo novos fãs? E… o que diabos se passa pela cabeça dos fãs de Pink Floyd que vaiaram Waters esta semana?
Primeiramente, vou retornar ao que disse: não quero resumir o movimento a pessoas específicas, a uma busca pelo liberalismo, comunismo ou anarquismo. Mas eu partirei do pressuposto de que o rock historicamente se colocou como um gênero musical que representava o desejo de ruptura, questionamento e luta por liberdade e igualdade. Se quiser, pode colocar na conta um simples “progressista”. O surgimento do rock, queira você ou não, vem dos negros norte-americanos, andando lado a lado do rhythm and blues. A proposta era simples: sacudir, balançar, fazer barulho. Nada de floreio estético ou superioridade musical.
O rock ‘n’ roll, no seu começo, tinha a mesma reputação do funk carioca – de novo, queira você ou não. Foi o pano de fundo da luta do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, por unir negros e brancos – mesmo que estes, depois, fossem se apropriar do rock de tal forma que os negros no rock, como Jimi Hendrix e outros que vieram a surgir depois, fossem vistos como “aliens” dentro de um mundo branco. Pelo menos, puderam encontrar outros lugares na música: soul, jazz, hip-hop, disco etc.
Mesmo com tal apropriação musical, os nomes mais relevantes do gênero, usando das letras e/ou dos sons, discutiam sobre insatisfação e desejo de se distanciar de um passado com menos liberdade. Pink Floyd se encaixa perfeitamente neste universo: críticas ao sistema capitalista vigente, aos extremismos e às instituições com poder repressor. Depois de todos os conflitos sociais que se passaram naquela época, é difícil dizer a última vez que os clássicos tiveram tanta relevância no debate, salvando exceções mais ligadas ao punk e à música indie. Mais difícil ainda é entender como se tornou um símbolo de superioridade e conservadorismo musical em relação aos novos gêneros. Criamos, especialmente no Brasil, uma espécie de “velha guarda” que não se atém a entender criticamente o que ouve, que “só gosta do som”, visível nos últimos shows de Waters aqui em São Paulo. Isso é prejudicial tanto para o artista e o seu papel na sociedade, quanto para uma falta de reconhecimento crescente do rock como gênero musical “revolucionário”.
Ademais, esse fenômeno de deslocamento de identidade não aparece de forma isolada no rock. É comum ver grupos extremistas adotarem a musicalidade e estética de outros movimentos culturais historicamente progressistas e colocarem os seus discursos sem entender que letra e conteúdo geralmente andam juntos. Hip-hop, rap, metal, rock gótico e até mesmo gêneros mais recentes, como vaporwave e synthwave são alguns exemplos que passaram por uma apropriação que é possível de ser feita – que não é proibida –, mas que é, no mínimo, preocupante. Preocupante porque esvazia a música de seu sentido social, torna-se música por música, sem contemplação das sutilezas e dos significados que ela pode assumir.
Em suma, a situação que Roger Waters enfrentou por conta de seus admiradores e fãs foi, no mínimo, vergonhosa. Uma atitude incoerente com tudo aquilo que ele sempre produziu. E não, não é necessário concordar com tudo o que ele diz, mas é necessário entender de onde surgiu a história desse fenômeno cultural: dos negros, da luta pela justiça, da contracultura e às vezes até mesmo da necessidade de doar menos de si para o Estado, como algumas bandas mais ligadas ao liberalismo econômico fazem. Além disso, entender que, para artistas como ele, é algo essencial. O cenário atual exige discussão ampla, conhecimento e posicionamento frente ao que acontece, independentemente de sua opinião. No entanto, precisamos, acima de tudo, entender quem somos e ser coerentes com nós mesmos e com aquilo que admiramos num palco. Ver acontecimentos como esse só me traz mais receio ao tentar entender o que essas pessoas, em especial os bolsonaristas, dizem ao defender suas posições e ouvir rock. Ou, então, declaramos o sepultamento desse movimento… e vamos deixar só no som mesmo.
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