Acho que a humanidade deu errado assim que o ócio surgiu. Isso aconteceu depois que nossos ancestrais descobriram que eles podiam cultivar plantas comestíveis e criar animais para seu consumo. Mais sensacional ainda foi quando começaram a usar o fogo para cozinhar e o cérebro humano, com toda essa sustança, desenvolveu-se de maneira como nunca antes vista. A comida agora sobrava e o ser humano não precisava mais estar constantemente perseguindo a próxima refeição. Além de comida, passou a ter tempo de sobra. E foi aí que tudo degringolou.
E tudo degringolou porque o ser humano precisou encontrar maneiras de ocupar esse tempo. Como os chamados “homens da caverna” não tinham lá muito o que fazer além de comer, cagar, transar e dormir, começaram a preencher o tempo vazio com pensamentos, até porque seus cérebros de dimensões astronômicas os permitiram. Acho que todos podemos concordar, depois de um certo evento de proporções mundiais que nos trancou em casa por dois anos seguidos, que passar muito tempo pensando nunca acaba bem.
Tanto não acaba bem que tomo remédio todos os dias para minimizar os efeitos que o pensar excessivo dessa época teve em mim. Meu enorme cérebro, que, para ser honesta, nunca foi dos mais saudáveis, simplesmente desbalanceou-se todo de tanto pensar. Depressão, foi o que a médica disse, depressão ansiosa, e ainda levei possível ansiedade social de brinde (possível era na primeira consulta, nas próximas, para a surpresa de ninguém, era certa). Podem falar o que quiserem, de genética, de trauma, de químicos e de hormônios, nada me convence que, se eu vivesse quando não havia tempo para pensar e quando o cérebro humano não tinha essa capacidade toda, eu não seria perfeitamente saudável.
E, se não fosse perfeitamente saudável, morreria, simples assim. O ser humano pensou tanto que perverteu a seleção natural, conceito este também fruto do pensamento humano. Parece-me mais natural que um animal que não consegue executar as tarefas mais mundanas nem conviver pacificamente com outros da espécie morra. Quem não caça, não come. Mas o ser humano pensou muito e decidiu que sua própria morte deve ser evitada a todo custo e que é muito mais natural viver com dor do que morrer, como aconteceria na natureza — animais com dor na natureza morrem, porque nunca tiveram tempo de pensar. Animais na natureza agem pelo instinto e o instinto dita comer, cagar, transar e dormir. Um animal que não caça porque está tristinho não come. Ele não tem escolha, não há espaço para a tristeza. Eu, quando estou tristinha e deixo de fazer as coisas hoje consideradas banais na rotina do ser humano, ainda como.
Talvez o fato de eu ainda comer aumente a tristeza. Porque, como ser humano, penso que pela lógica da natureza deveria estar morta e a tristeza do pensamento junta-se a uma tristeza existencial que no fundo é também tristeza de pensamento. Se não pensasse, não sofreria, porque sem o pensar não pensaria que sou um erro de cálculo ambulante, que minha existência se deve a artificialidades criadas pelo pensamento humano e que não tenho conserto, que a tristeza é infinita e dela não há saída, que sou meio esquisita se comparada aos outros exemplares da minha espécie, mas que não tenho nada de particularmente especial e que cada um tem suas questões então é um tanto idiota de mim pensar que se eu não fosse eu o problema estaria resolvido.
Acho que o problema estaria resolvido se o tempo nunca tivesse sobrado. Sem tempo de sobra, não haveria o que preencher de pensamento. Sem pensamento, haveria somente instinto, porque o instinto acontece sem pensar. E, sem pensar, ninguém é triste. Quem não pensa, caça e come.
Autor: Luiza Parisi
Revisão: Artur Santilli, Laura Freitas
Imagem de capa: Ble, Thinking of you, acrylic and modelling paste on canvas pad, 42 x 29,7cm, 2023
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