(Música para a leitura:
Velha Amiga – Tim Bernardes)
Bonnie: “Não. Eu não vou parar com isso, Doutor. Eu comecei isso, e não vou parar. Você acha que eles vão me deixar sair ilesa depois de tudo que eu fiz?”
Doutor: “Vocês são todos iguais, todos crianças birrentas, sabia? ‘Olhe para mim, eu sou imperdoável’. Bem, aqui vai o imprevisível: eu te perdoo. Depois de tudo que você fez. Eu te perdoo.”
Coisa mais curiosa que é o perdão. Pelo menos foi o que eu sempre achei a seu respeito. Uma atitude que vai contra boa parte de nossa resposta natural de lutar ou fugir e que nos convida a abraçar aquilo que nos ameaça e dar-lhe uma outra chance. Evolutivamente, não faria nenhum sentido e, ainda assim, faz total sentido. Pensar na humanidade sem nossa inerente (por mais que às vezes oculta) bondade e misericórdia é remover um dos pilares da construção do nosso caráter como espécie. O perdão, além de uma palavra muito longa e complicada, é um conceito tão profundo que só pode ser rivalizado, na minha visão, com a saudade, outra emoção sem a qual o ser humano não seria nada.
Mas é verdade mesmo tudo isso? Não parece, né? Não vemos muitas demonstrações no nosso dia a dia do perdão que todos temos dentro de nós, às vezes porque o mundo não merece, mas às vezes é porque nós não achamos que nós merecemos. De nada adianta usar palavras chiques e rebuscadas de poetas mortos, mas que nem sempre foram tão brilhantes como a literatura os têm mostrado. Repetir discursos batidos só comprova ainda mais a morte de uma grande ideia. Grandes ideias inspiram, mudam, transformam o pacato em constante surpresa. Repetir é se entregar à monotonia e ao esquecimento.
Mas a mente humana é um terreno fertilíssimo para grandes ideias, boa parte das quais são transformadas em... televisão! Ou streaming, se você não sabe o que é uma parabólica. (Sim, eu sei, bem anticlimático, mas fazer o que, a vida não é só montanhas-russas, sabia?) Uma boa série ou um filme são ótimos para distrair um pouco e sair da rotina para divagar sobre realidades que queríamos tanto viver (ou talvez nem queríamos assim, mas adoramos ver os outros nela). Eu também adoro séries e tenho as minhas queridinhas, mas a mais especial de todas é Doctor Who (Ou Doutor Quem, mas cá entre nós, muito melhor em inglês, não?). Essa é uma série que fala sobre as aventuras de um alienígena viajante no tempo e no espaço, conhecido apenas como O Doutor, e seus companheiros humanos e eles o fazem a bordo de sua icônica espaçonave: a TARDIS (Time And Relative Dimensions In Space).
Entre tantas aventuras e peripécias, a gente acaba se familiarizando e criando até afeto por todos os personagens. E a série ainda aproveita para sempre trazer reflexões profundas sobre identidade, pertencimento, ética, amor e amizade. Assim, um episódio, que talvez seja o meu favorito de todos os tempos, sempre me vem à cabeça. Nele, uma raça de alienígenas que são capazes de mudar sua aparência dominam a terra, se infiltrando como seres humanos. Daí rola intriga e aventura. Tiro, porrada, bomba e tudo mais. Para então chegarmos no clímax do episódio: a líder da invasão, Bonnie, tem uma difícil escolha a fazer entre trair sua espécie ou seus princípios.
No meio disso, chegamos a um ponto do diálogo em que Bonnie faz uma pergunta ao Doutor e eu simplesmente amo essa parte. “Você acha que eles vão me deixar sair ilesa depois de tudo que eu fiz?” e ele responde: “Vocês são todos iguais, todos crianças birrentas, sabia? ‘Olhe para mim, eu sou imperdoável’. Bem, aqui vai o imprevisível: eu te perdoo. Depois de tudo que você fez. Eu te perdoo.” Quando eu vi essa cena pela primeira vez, me deu calafrios, e até hoje eu penso nela com o maior carinho. Não somente pela genialidade teatral e de interpretação de Peter Capaldi como Doutor, mas por ele ter utilizado aquela palavra: perdoar…
A primeira vez que eu te conheci não sabia ao certo o que achar. Você parecia tão tímida, reclusa, encolhida. Parecia que simplesmente não queria estar ali, mas estava. Me simpatizei, senti que você era o tipo da pessoa interessante que aparece às vezes na vida da gente. Não nos vimos muito depois disso, mas você sempre me fazia perguntar o que se passava dentro da sua cabeça. Dentro desse serzinho tímido, recluso e aparentemente pequeno.
Mas você não era pequena, era? Mas como eu ia saber? Eu era só um moleque ingênuo, tentando entender como a vida funcionava entre seus trancos e barrancos, tentando me equilibrar na onda de emoções e hormônios à flor da pele. Você também. Talvez fosse isso, você também sentia. Eu conseguia ver no seu olhar. Alguém interessante. “Quem me dera poder ser amigo de alguém interessante”, era o que eu pensava. Será que você também? Talvez...
Então por que foi que você estragou tudo?...
Para mim, sempre foi um pouco estranho falar de perdão. Não porque eu nunca reconheci o perdão como uma ação que vale a pena ser considerada, mas porque acho que nunca soube usá-lo direito. Uma coisa aparentemente tão simples e que, ainda assim, a maioria de nós é incapaz de compreendê-lo por completo. A força de vontade que o perdão exige de todos nós é indescritível, o que ainda é mais bizarro porque, de um jeito, o perdão é mais para nós mesmos do que para os outros.
Perdoamos aquilo que cremos que o impacto gerado pela ação já se passou; ou não foi tão forte quanto imaginamos; ou quando nós estamos errados. De forma geral: quando somos afetados, mas quando isso não nos impede de nos darmos paz. A raiva, afinal, tá mais para um veneno do que uma solução. Nos enchemos dela e esperamos que o outro sinta dor: simplesmente não fecha, mas não ligamos muito.
A verdade é que acho que nunca saberemos realmente como funcionamos, somos seres complexos (“ahh juraa??”, exclamam, cansados de lerem isso, os meus leitores que amo tanto). Repetidas vezes somos vítimas de um universal “faça o que eu falo, não faça o que eu faço”, no qual todos falam, mas ninguém faz absolutamente nada. Perdoar se tornou uma daquelas coisas que se esconde em plena vista e que nunca percebemos de verdade: embutimos o perdão em nossas histórias, nossas religiões, nossos discursos motivacionais, só para então aplaudirmos, compartilharmos e seguirmos com nossas vidas. Às vezes parece até isso: um embutido, aquilo que, originalmente, não era incluso na concepção, nós o colocamos lá.
Bom, mas vamos por partes. Ao chegar até aqui, parece que estou de forças esgotadas e jogando a toalha, desistindo de que poderemos melhorar, mas quase nunca tudo é tão triste quanto parece. Nós sabemos perdoar, afinal, está dentro de nós e só depende de nós, o que precisamos mesmo é de um pequeno empurrãozinho…
Nossas conversas sempre foram muito boas. Poucos compreendiam exatamente do que estávamos falando, mas isso nunca importou muito porque, se nós entendíamos, já era o suficiente. Nem sempre todos vão te entender, e você sabia disso melhor do que ninguém. Tá certo que você não lidava da melhor forma, mas quem sou eu para julgar?
Lembra daquela festa? Aquela que entramos de penetras? Eu me sentia como um total intruso, você também, mas a adrenalina e a emoção eram tantas que não te davam tempo para pensar em se preocupar. Disso eu não posso negar: você sabia se divertir, eu poderia aprender uma coisa ou outra com você. Nós rimos, dançamos, ficamos pasmos com muita coisa que os outros convidados faziam. Foi divertido, sempre é. Com você tudo parecia melhor…
Por que você teve que jogar tudo isso fora?...
Pregamos por todos os lados a tolerância e a admissão de erros, mas somos ligeiros para não notar as vezes em que somos um tanto quanto hipócritas, e eu me incluo nessa também. A verdade é que nenhum de nós é santo para ficar dando lição de moral nos outros, muito menos eu tenho esse direito. Mas o que pretendo com tudo isso é cutucar com uma vareta a nossa consciência: minha e sua, quem quer que seja você aí do outro lado. O quanto você está preparado(a) para perdoar?
Eu sempre acreditei que somos péssimos auto avaliadores, mas eu quero confiar que seremos todos os mais fiéis possíveis ao tentar responder essa pergunta. Posso começar, se quiser. Eu sou péssimo em perdoar, mas estou melhorando, bem aos poucos. Talvez o passo mais difícil do perdão seja realmente entender que ele é tanto sobre o outro quanto sobre nós mesmos. A vida está sempre sob constante mudança, pessoas crescem, amadurecem, mudam sua forma de ver e perceber o mundo ao seu redor, às vezes se tornando personalidades completamente diferentes do que um dia foram. O perdão é uma das principais ferramentas do ser humano para acompanhar essa mudança e não deixar que ela nos domine por completo. É aceitar que o fluxo do rio continua seguindo, e nós precisamos continuar nadando. Perdoar não é aceitar a derrota, ser infantil ou não ter limites. Perdoar é exatamente sobre ter limites: limite à raiva, limite à dor, limite à ansiedade. Perdoar é nos dar paz e dar ao próximo o que todos tanto almejamos, amor.
Somos todos moldados pelas nossas experiências, aquilo que vivemos e deixamos de viver, e pelas pessoas que estão ao nosso redor, nossos pais e mães, amigos e familiares, professores e colegas. Somos a soma de uma diversa coleção de cabeças pensantes que tentam, por transmitir o seu conhecimento ao outro, ajudar na construção de uma pessoa melhor. Mas, bem no fundo, somos todos criancinhas, com medo e curiosas em um mundo cheio de novas descobertas e novas aflições. Erramos (e beeeeem feio, as vezes) e as consequências sempre vêm, e terão de vir, mas deixar que atos nos assombrem pelo resto de nossa existência seria tão cruel quanto o ato em si. Permitir que os outros fluam no rio da vida é necessário, mas acima de tudo, é natural. Afinal, peixes que não conseguem acompanhar a correnteza, choram. Quem somos nós para impedir que os outros tenham a chance de seguir com seus caminhos? E quem somos nós para impedir que nós mesmos sigamos com o nosso?
Perdoar é saber que tudo vai ficar bem, sempre. Podemos não acreditar muito nisso agora, podemos não achar que os outros cumprirão com suas promessas, mas não podemos deixar tudo isso nos consumir e depois culpar a incerteza da vida pela nossa falta de cuidado. Todos estamos juntos nessa, é a sua primeira vez vivendo (e do outro também). Lembre-se disso da próxima vez que encontrar com aquele seu amigo com quem está brigado. Estamos todos aprendendo a viver, e todos chegamos de paraquedas e sem aviso prévio; pressões e expectativas por todos os lados. Bem que a gente podia dar um desconto, não?...
Eu confiei em você, sabia? Eu te contei tudo sobre mim. Desde minhas superficialidades até as mais profundas entranhas da minha alma. E você jogou tudo fora. Pelo que?
Eu acho que nunca vou entender suas razões, nunca vou entender você. Somos e sempre fomos pessoas diferentes, e na verdade isso era algo que eu admirava em nós: não éramos feijão e arroz, éramos legais demais pra isso, nós éramos nós mesmos, essa era a graça de tudo. Mas quem diria que de feijão éramos só um caldo azedo e de arroz um grão duro e sem tempero.
Apesar disso, eu ainda acredito que tudo foi real. Você foi real, eu fui real, nossas experiências foram reais. E mais importante: a emoção foi real. Quando a amizade e o amor surgem, não tendem a sumir. Mesmo que brigas separem e até façam mal a uma relação que não sabe como lidar com elas (nunca fomos bons em comunicação, para falar a verdade).
Eu já pensei muito sobre tudo. Em como eu me senti, e em como eu me sinto. Em como tudo mudou a minha vida, e em como tudo não passou de um enorme abuso. O quanto eu amei tanto tudo, mas o quanto você realmente se importou?
Finalmente, hoje eu entendo o que se passou. Hoje eu sei quem eu sou. Não preciso mais de ódios e fomentos para criar uma personalidade, não tenho tempo para futilidades e para decepções, tenho amor demais para dar.
Ou seja, está tudo bem. Tudo está melhor do que parece.
E sim…
_____________
Nota do Autor: Um ótimo texto complementar a este é o poema Leçons de Ténèbres por Clive James. É bom ler ele na íntegra, mas aqui vai a minha estrofe favorita como um gostinho:
“But are they lessons, all these things I learn
Through being so far gone in my decline?
The wages of experience I earn
Would service well a younger life than mine.
I should have been more kind. It is my fate
To find this out, but find it out too late.”
_____________
Autoria: Enrico Romariz Recco
Revisão: André Rhinow
Imagem da capa: Acervo pessoal
Comments