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FINS E MEIOS




É dito que os fins justificam os meios. Pensemos em que partes isso se verifica. Veja-se, por gentileza, na situação de planejar uma viagem para um lugar qualquer. O lugar em si não possui, em nosso exemplo, sistemas de portos aéreos ou marítimos. A premissa aqui é de que você vá para esse lugar de ônibus ou de trem. Mesmo que seja impossível à vera, pense que é bem real a prerrogativa. Nessa viagem, estarão presentes estimadas e divertidas companhias, ótimos assuntos, conversas e aperitivos, drinks e bebidas de qualquer natureza e tudo o que mais se exigiria de alguém em dado contexto para se divertir. Quando você chega ao destino, depara-se com um lugar não tão agradável, um clima pouco propício ao divertimento, pouca ou muita gente, qualquer que seja a pior alternativa, e, por consequência, você deseja retornar o mais breve possível e a viagem de volta é igualmente, senão mais, divertida do que a ida.


Adicionalmente, e, deixando um pouco de lado o exemplo anterior, pense que há um dado sujeito com a intenção de comprar um carro. Para tanto, esse sujeito trabalha e poupa suas adições proporcionalmente até completar o valor necessário para adquirir o bem. Ao longo do trajeto, ele mantém a disciplina e a empolgação necessárias e, à medida que a execução de seu objetivo se aproxima, ele se vê mais animado para atingi-lo. Quando finalmente adquire o carro, sua felicidade atinge o pico e, daí em diante, quando o costume de utilizá-lo e de sentir-se dono do carro se apodera da rotina desse certo indivíduo, a mesma felicidade atingida e a empolgação decorrente da busca pelo item se perde até que o carro, a propriedade sobre ele e a sensação de poder utilizá-lo da forma que melhor lhe convier descem ao ponto da discreta normalidade. Claro, o cenário que pintei para esse exemplo é uma específica demonstração de algo bem comum. O mesmo acontece quando sentimos muita fome e, depois de algumas horas sem nos alimentarmos, nos deparamos com um grande e atraente prato de comida.


O objetivo desses exemplos, como bem poderíamos inferir, é demonstrar que, naturalmente, a humanidade tem o tesão de buscar, de procurar, de prosseguir, talvez mais do que ela o tem de possuir, de conquistar, de atingir. Isso porque, analiticamente, lembremos do exemplo anterior em que o pico da alegria de nosso sujeito se deu da aquisição do veículo, não antes nem depois disso. E, claro, a progressão até o pico é também deliciosa porque submerge o adquirente em porções cada vez maiores do bom sentimento de estar mais e mais perto do destino final. Foquemos, antes de tudo, na primeira parte, qual seja: o pico. Para isso, não acho que preciso pesquisar e apresentar resultados de qualquer natureza para ter o leitor concordando com minhas hipóteses. Penso que, em algum ponto de nossa complexa estada na sociedade moderna, experimentamos esses sentimentos de que lhes falei há pouco.


Pois bem, o pico. É o mais delicioso marco de toda a trajetória. Do planejamento até a execução. Uma coisa que notei há tempos sobre as festividades humanas é que as pessoas que bebem demais não buscam necessariamente o álcool da bebida, tampouco, quem sabe, a sensação da embriaguez em certos casos, como buscam a experiência de estar bebendo. O último gole é menos gostoso do que o primeiro, então a imediata solução para isso é experimentar um outro novo gole que virá, claro, de uma nova bebida, igual ou diferente. Assim mesmo é com o carro e com o prato de comida. Diria o Oráculo em Matrix, ao questionar “o que desejam os homens com poder?”, uma previsível resposta: “mais poder”. Por mais que isso pudesse ser utilizado como uma bela crítica quanto a figuras poderosas ou influenciadores políticos, o prato de comida sugere que o homem é simplesmente um animal institucionalizado.


Imagine você que, do contrário, a viagem para o destino fosse chata, mas, o destino em si, incrível. A jornada pela obtenção do valor do carro fosse árdua e cansativa, mas, o carro em si, maravilhoso. A fome que antecipa o prato de comida, irrefreável e punitiva, e o prato, deliciosamente aliviador. Ainda assim, pense também por quanto tempo você manteria a empolgação pelo lugar turístico se ele fosse, também, seu local de residência. Por quanto tempo estaria feliz com seu novo carro utilizando-o constantemente e por quanto tempo estaria feliz por se alimentar à medida que sua fome novamente se acentuaria ao longo da tarde. A título de exemplo, basta olharmos para as coisas que temos. Você sente empolgação, felicidade, alegria ao chegar em casa e se deparar com seus pertences e propriedades em geral, mesmo vendo-os todo dia? A questão que aqui se estabelece não é de que somos ingratos, mesquinhos ou nojentos. A questão é o motivo porque milionários também têm depressão, bêbados desejam mais álcool e viajantes buscam mais viagens. Precisamos de variabilidade.


Não são os fins nem os meios que motivam-nos a quebrar a inércia que nos impede o esforço de buscar por algo. É a experiência. Estabilidade, banalidade, previsibilidade são coisas que matam-nos a libido pela vida à medida que estampam a verdade de que não há nada por que viver em qualquer novo dia quando a expectativa que temos é de que tudo vá se repetir da mesma forma. Cronogramas, tabelas, horários, diálogos parecidos, problemas linearmente postos, soluções planejadas, agendas e tempo e dinheiro. O que nos mantém vivos são as coisas progressivas, as coisas que mudam ao longo do tempo. Nossas relações com as pessoas não se mantêm intactas pela infinitude da vida — que só é infinita para quem ainda não a terminou —, porque amigos podem se tornar amantes, namorados, casados. Porque casados podem se divorciar, se separar e se afastar. Porque conhecidos podem tornar-se mais ou menos conhecidos até que sejam amigos ou completos estranhos. Porque completos estranhos podem se tornar colegas e colegas podem se tornar lembranças e memórias, e assim por diante.


Se assim não fosse, tenho para mim que descobriríamos rápido o bastante que não há porque viver se não há qualquer mudança. É viajar para o destino e lá permanecer. É comprar o carro e com ele ficar. É comer aquele maravilhoso prato de comida para ser ele a última coisa que comeríamos para, depois, morrermos, e tudo bem morrermos. Por que mais viveríamos? Essa reflexão me traz à conclusão de que, naturalmente, somos mutantes. Podemos mudar para melhor, para pior, para nenhum dos dois e, talvez, somente mudar. Talvez Deus estivesse tão entediado com a criação de tudo em certo ponto, que reduziu-se a um de nós, ou a todos nós, e deu cabo de sua memória para viver como um mortal, para ter experiências, para sentir. Talvez Deus não exista, e talvez nem nós mesmos existimos como pensamos existir. A questão última que lhes ponho e que encerra a discussão é de que não temos respostas para certas coisas e, talvez, jamais as tenhamos. Pense em quantas formas ainda temos de procurar essas respostas apenas para termos a surpresa de que precisamos tentar, mais uma vez, de outro modo. Não sei se, nesse caso, desejo resposta alguma. Desejo mais é procurar por ela.




Autor: Rodrigo Ferreira

Revisão: André Rhinow, Laura Freitas, Luiza Parisi

Imagem de Capa: “A Cold Drink”, Mee6 prompt

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