
René Magritte, conceituado artista belga do surrealismo nascido em 1898, é referenciado por suas incríveis obras. Elas retratam objetos e pessoas em contextos improváveis e inesperados, o que provoca, naturalmente, reflexões acerca das ideias de representação da sociedade, do tempo e do mundo real. Sua obra “The Lovers II”, de 1928, é a continuação da antecessora “The Lovers”, que mostra uma circunstância similar, mas cabe, como na segunda obra, em suas próprias particularidades.
A análise visual da obra nos permite apreciar elementos que podem se comunicar a partir da paleta de cores, do tema, da textura e do contexto. Vemos, de perfil, a figura de dois sujeitos direcionados para beijar um ao outro. À direita, de vestimenta social, temos o sujeito de maior altura, com terno em cores neutras, e à esquerda, outra personagem trajando, por sua vez, um vestido vermelho. Impedindo o contato físico entre as figuras, dois panos repousam sobre suas cabeças, suprimindo as sensações que poderiam estabelecer uma conexão entre ambos.
O cenário, não por acaso, é constituído por uma parede vermelha e uma cobertura de um branco fosco e estático, separadas por um ornamento no ângulo reto da estrutura. No fundo, é visível, pela ausência de continuação do adorno e pela falta de estabilidade na coloração, que um céu escuro e sóbrio se denota, como em um período de pouca luminosidade do dia, o que sugere um pálido amanhecer ou o tecido que sucede o crepúsculo celeste.
Interessante observar a semelhança entre a separação do casal através dos panos e a separação das faces vermelha e branca da estrutura através do ornamento. Como em um diapasão, ambos parecem emitir a mesma nota sobre o que se retrata. A definição da separação aqui não se isola, porque a dita sobriedade da obra parece fazer parte da interpretação. As vestimentas das personagens idealizam a formalidade, o gabarito, a padronização de estruturas sociais e a construção de um controle que pode estar sendo ironizado na pintura.
O céu pacato, com nuvens escuras em formação, induz a um sentimento de pouca esperança, de ansiedade e de pessimismo. Isso nos guia ao ponto que me parece crucial sobre o retrato: a frustração de se estabelecer uma conexão genuína devido à impossibilidade construída através de elementos impeditivos. Em teoria, o pano e o ornamento mostram esse impeditivo, mas não há referências do que seja exatamente sua natureza. O estilo de traje em que se mostram as personagens seria uma expressão de que as posições e as imagens refletidas por sujeitos sociais não viabilizam contatos genuínos entre as pessoas, senão a impedem, no pior dos casos.
Aqui, poderia caber uma distinção entre amor e contato e, pelo que me vem à mente, o contato não realizado poderia ser a maior expressão da pintura, mas o amor ironizado pode bem ser a consequência disso. A definição de amor transita entre filosofia e ciência, e mesmo a pura lógica não pode determinar sua expressão plena. Na obra de Magritte, o amor me parece uma forma que se busca e se deseja – o desejo é visualizável no próprio ato do beijo entre as figuras –, mas que não se alcança na estaticidade dos sujeitos da Matrix humana. Importante também compreender que o tecido não impede apenas o tato, mas prejudica a visão, a audição e o olfato das personagens.
Este impedimento deteriora a própria percepção da realidade e exibe um outro sentido para o tema da obra. Uma vez que o organismo humano percebe o mundo por meio dos sentidos, suprimi-los faz com que a leitura do real se faça opaca e insuficiente. Um paradoxo pode ser estabelecido entre essa supressão e o próprio contato que se vê na imagem. Como Narciso se inebria com a própria beleza, o amor entre as figuras é inebriante o bastante para privá-los de outros sentidos necessários para que se perceba o mundo tangível. Portanto, entra o paradoxo, porque, não percebendo a realidade, o impedimento recai sobre a própria relação entre ambos, provocando uma mútua ignorância quanto ao seu subjetivo papel de amantes. Isso poderia alimentar uma sátira à paixão inconsequente, às relações líquidas, ao falso amor e à veneração injustificada. Assim, o próprio contato entre os dois provocaria sua obtusão e seu isolamento.
Autoria: Rodrigo Ferreira
Revisão: Lucas Tacara, Enrico Recco e Anna Cecília Serrano
Imagem de Capa: The Lovers II, por Renè Magritte
Comments