JÚRI DAS PEQUENAS CAUSAS
- Enrico Romariz Recco
- 4 de abr.
- 7 min de leitura

(Música para leitura:
Don’t Worry Be Happy – Bobby McFerrin)
Caso nº 2025109847632 (Sra. Fernanda Pena v. Starbucks Corporation) – Transcrição
Tribunal de Justiça Intercranial
Comarca de Fernanda Pena
Juizado Especial Cível
1ª Vara do Juizado Especial Cível
ESCRIVÃO – Está aberta esta sessão do Tribunal de Justiça Intercranial, presidida pelo Exmo. Sr. Desembargador Evanildo Cachola. Todos de pé.
JUIZ – Tá, tá, vamos para o que interessa mesmo: o que foi dessa vez, hein Fernanda?
ESCRIVÃO – (sussurrando) Mas senhor, o protocolo...
JUIZ – Ah Carlos, me poupe! Já é 12ª vez essa semana que eu tenho que me sentar nessa cadeira dura para ouvir mais lamento dessa daí.
ACUSAÇÃO – Eu acho que a acusação merece um pouco mais de respeito neste tribunal.
JUIZ – E eu queria férias nas Bahamas. Mas cá estamos. Ninguém mandou ter uma consciência ativa. Bom, vamos ao que interessa, Carl–, digo, Escrivão, leia a acusação.
ESCRIVÃO – A Sra. Fernanda Pena acusa o atendente da referida Starbucks Corporation de ter escrito o nome incorretamente da própria e de mais 6 outras pessoas que a precediam, mesmo após cada uma das pessoas terem soletrado seus nomes e nenhum deles se tratarem de nomes incomuns. A acusação pede a quantia de 1 (um) pedido de desculpas sincero, a reescrita de todos os nomes nos devidos copos, juntamente com a criação de um registro de clientes assíduos ao lado do caixa para evitar futuras ocorrências e 10 (dez) meses de estoque de Pumpkin Spice Lattes.
JUIZ – Ok, agora você está começando a passar dos limites.
ACUSAÇÃO – Não entendi o que o senhor quis dizer.
JUIZ – Os nomes, Fernanda? Tá de brincadeira? De que diferença faz se está escrito “Luiza” ou “Luisa” ou “Luísa” ou sei lá mais o que? O café vai continuar tendo o mesmo gosto.
ACUSAÇÃO – (Sutil risada) Bom, o senhor claramente nunca conheceu uma Luiza. Ou teve alguma coisa que pediu e veio com o nome errado.
JUIZ – Mas aí é claro né? Até porque é você mesma quem pede. E quem erra Fernanda?
ACUSAÇÃO – O mesmo cara que errou “Auberto”, “Karlos”, “Marciu”, “Jooana”, e, claro, “Fenanda”.
JUIZ – Minha nossa, mas aí ocorreu mesmo foi uma chacina. Como é que o deixam escrever esses nomes? E ninguém reclama?
ACUSAÇÃO – Acho que ninguém mais quer ficar no caixa. Ou ele é pior ainda fazendo café. Ou ninguém só ligou o suficiente. Enfim, um monte de razões, mas eu senti que tinha que entrar com esse processo. Afinal de contas, a discussão do que vem a ser o Bem Comum pode ser traçada desde Platão e Aristóteles e com suas–
JUIZ – Vencido.
ACUSAÇÃO – Perdão?
JUIZ – O réu é culpado de seus crimes e deve ressarcir à acusação todas aquelas baboseiras que ela pediu aí. Já deu por hoje.
ACUSAÇÃO – Ah, bom, perfeito! Eu tinha montado todo um discurso sobre a natureza do bem e do mal, sobre o que seria moralmente correto–
JUIZ – Ok, ok, a gente entendeu já que você veio toda preparada. Você ganhou, está certa. Agora deu por hoje.
RÉU – Mas calma lá, eu nem pude falar nada.
JUIZ – E quem disse que isso é uma corte justa? Estamos literalmente dentro da cabeça dessa daí. Isso é tudo um grande monólogo glorificado, mas os impactos são reais, viu?
(Juiz se levanta da cadeira e começa a descer do palanque, mas antes de terminar a descida, volta para sua cadeira)
JUIZ – Na verdade, senhora Fernanda, pensando melhor: o que mais a senhora tem? Pode mandar.
ACUSAÇÃO – Como assim? O julgamento não foi encerrado?
JUIZ – Esse sim, mas eu já estou por aqui com suas angústias diárias, então tive essa brilhante ideia: por que não resolvemos tudo que temos de uma vez só? Daí poupa o meu e o seu tempo.
ACUSAÇÃO – E quem disse que eu vou ter tudo que queria pronto para apresentar?
(O juiz abaixa seus óculos levemente e olha para a acusação com um ar de “jura?”)
ACUSAÇÃO – Ok, você venceu...
JUIZ – Bom, qual a boa da vez?
ACUSAÇÃO – Já falaram mal injustamente de um grande amigo meu!
JUIZ – Fofoca, Fernanda? Até tu, Brutus?
ACUSAÇÃO – Mas é diferente. Eu faço com quem merece, quem realmente está aquém da sociedade e tá merecendo levar umas pauladas para voltar a si.
JUIZ – Claro, sim, sim. Errados são os outros. Mas e daí? Como quer proceder?
ACUSAÇÃO – Mas não é o senhor o juiz? Você quem me diga.
JUIZ – Sim, mas a cabeça é sua. Quem decide é você.
ACUSAÇÃO – Quem decide sou eu... Profundo isso, senhor. Não acha? Parece um pouco demais eu levar isso tudo a um julgamento, movimentar todo o arsenal da minha consciência, do meu senso ético e moral por uma simples fofoquinha. Mas isso me enche de frustração, sabe? Como esse tipo de coisa sai impune do mundo?
JUIZ – Olha, para falar a verdade, nada sai impune do mundo. A questão é se vai ser você quem vai proferir a sentença ou se vai ser outra pessoa. Quem merece, sempre tem algo à sua espera. Pelo menos é o que eu acredito. Condizente para um cargo no magistério, não acha?
ACUSAÇÃO – Talvez, mas não é nem um pouco satisfatório. Eu tenho um pouco de ansiedade em pensar que talvez nada aconteça, que o outro saia ileso e as injustiças não terminem nunca. Não acho que eu tenho esse autocontrole todo como o senhor.
JUIZ – Mas é compreensível. Ninguém consegue lidar muito bem com o sofrimento do outro. Se ele é distante, talvez consigamos mais. Agora quando o injustiçado desconhece do seu sofrimento, daí é quase impossível. Faz o nosso sangue ferver. Perder uma luta é horrível, mas nem ter uma chance é agoniante.
ESCRIVÃO – (sussurrando) Psiu… senhor... o caso...
JUIZ – Sim! Certo, Escrivão. Me perdi tanto na divagação aqui que até me esqueci de ouvir os fatos. Pode citar.
ESCRIVÃO – A Sra. Fernanda Pena acusa um fofoqueiro de fazer fofoca. O tipo de fofoca que caracteriza escárnio e maldizer, que mexe com as emoções daqueles que sofrem. O tipo de fofoca que implica um homicídio de 1º grau, mas que o fofoqueiro crê ser culposo, da reputação alheia, sem nenhum cuidado para as reais implicações de suas ações, mas daí são os assassinos. O tipo de fofoca que se acha justiceira, mas que não percebe que justiça não se faz pelas costas, se faz de frente, encarando a realidade da situação. A Sra. Fernanda Pena acusa um fofoqueiro de utilizar seus poderes indevidamente e ainda o acusa de não ter moral para praticar tal ato.
JUIZ – Certo, e o que a acusação pede como compensação?
(O Escrivão vira e olha para Fernanda, como que esperando uma resposta)
ACUSAÇÃO – Quem, eu? Eu não sei, não sei dizer ao certo o que deveria receber. Não sei nem se sou eu quem deveria receber algo. A justiça pela Justiça já não seria o suficiente...?
JUIZ – Pode começar descendo desse seu cavalo branco da ética aí, viu? Eu sei bem o que você quer com tudo isso.
ACUSAÇÃO – Pode dizer então.
JUIZ – A senhora quer vingança. Mas não aquela que infelizmente envolve com frequência o derramamento de sangue daqueles que não o merecem. Ou aquela que lhe torna necessariamente pior do que antes. Mas sim aquela que constrange, aquela que humilha, nem que apenas um pouco. Aquela que ensina e transmite o recado da forma correta, não é?
ACUSAÇÃO – Mas quem não quer isso?
JUIZ – Muita gente, na verdade. Idosos, crianças...
ACUSAÇÃO – Mas eu não me enquadro em nenhum desses. E que tipo de exemplos são esses?
JUIZ – Os melhores que têm. Afinal, as extremidades da vida são perfeitas para um pouco mais de inocência consigo mesmo.
ACUSAÇÃO – Mas desde quando a inocência ajudou alguém? A gente pensa o melhor dos outros e quase nunca funciona.
JUIZ – Mas aí é que está. Inocência, renegar do seu ódio para se tranquilizar perante o outro nunca foi algo destinado a atingir esse outro. Foi feito para atingir você. Tanto é que quem sente os efeitos da raiva é somente você.
ACUSAÇÃO – Mas e as injustiças? Ficam impunes por aí, pensando que “aí, mas não tem problema porque, um dia, tudo vai ser resolvido”?
JUIZ – Inocência nunca foi sobre ignorar a dor. Muito menos a dor alheia. Inocência é sobre focar somente em ajudar ela a cicatrizar. É sobre estar presente para aqueles que sofrem e é sobre priorizar aquilo que importa: a pessoa, não a raiva e o possível sabor teórico de uma vingança que, no fundo no fundo, seria vazia. Entendeu, senhora Fernanda?
ACUSAÇÃO – (Fernanda se curva na cadeira e pensa por 1:37) Acho que já sei o que quero, senhor Juiz.
JUIZ – Ô coisa boa! Pode dizer então que incluímos nos autos.
ACUSAÇÃO – Paz.
JUIZ – Hmm, você faz um pedido complexo. Não sei se poderemos oferecer isso como compensação pelo crime.
ACUSAÇÃO – Tem um jeito. (Fernanda sussurra para o Juiz).
JUIZ – A senhora tem um ótimo ponto. Este tribunal fará o melhor para garantir isso. Então está decidido, o processo vai para o arquivo. Escrivão, pode direcionar os autos.
ACUSAÇÃO – Mas como assim? Achei que eu tinha ganho? Cadê minha justiça?
JUIZ – Mais uma vez: estamos na sua cabeça. É claro que você ganhou. Não importa muito se eu bato esse martelo ou não, ainda não entendeu?
ACUSAÇÃO – Ah, bom..., mas então porque só não falou que venci, só de satisfação?
JUIZ – Sempre quis dizer “tal coisa vai para o arquivo”. Me sinto tão oficial.
(Fernanda dá uma leve risada e olha para o Juiz com um olhar de “jura?” Ela recolhe suas coisas e deixa a sala da sessão)
JUIZ – Bom, Carlos. Acho que acabamos por hoje não é mesmo?
ESCRIVÃO – Sim, senhor! Esse foi o último ca–
(Um papel surge de repente ao lado da mesa do escrivão)
JUIZ – Ah não.
ESCRIVÃO – “(censurado por segredo de justiça) v. ‘Escritorzinho Ordinário’. A Acusação, que se encontra censurada por se tratar de um processo correndo em segredo de justiça, acusa mais um escritorzinho de encher a paciência alheia porque ele se acha mais conhecedor da vida do que a Acusação quando, segundo a Acusação, ele não sabe de nada mais do que a própria”
JUIZ – Mas pera lá, isso nem é nessa comarca, é?
ESCRIVÃO – Vixe, verdade, senhor. Acho que deve ter caído aqui por acidente. Osmose cerebral e tudo, sabe como é.
JUIZ – E lá se vão as minhas Bahamas…
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Autoria: Enrico Romariz Recco
Revisão: André Rhinow e Artur Santilli
Imagem da capa: Acervo pessoal
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