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KIDS SEE GHOSTS E A IMPORTÂNCIA DA SAÚDE MENTAL



Crianças e os fantasmas que as assombram. O nome do álbum Kids See Ghosts nada mais é do que uma tradução do que escutamos ao longo de pouco mais de 23 minutos. A dupla conhecida pelo mesmo título do álbum é formada por dois dos artistas mais influentes do último século, Kid Cudi e Kanye West, amigos de longa data que se uniram para falar de algo maior que a música: seus fantasmas e a importância da saúde mental.


A ideia de realizar o álbum se deu, infelizmente, por histórias trágicas que se passaram na vida dos dois artistas. Cudi, por um lado, após o lançamento do seu álbum Passion, Pain & Demon Slaiyn’, estava passando por graves problemas vinculados ao seu vício em drogas, aliado a diversos pensamentos suicidas, que fizeram com que o rapper buscasse tratamento em uma clínica de reabilitação. Em um texto publicado em seu Facebook, o cantor esclareceu para todos os fãs sobre os demônios que estavam lhe perturbando, pedindo ajuda e preces, dizendo que voltaria renascido (guarde essa palavra).


Em um cenário muito mais midiático, Kanye estava imerso nas polêmicas vividas durante a turnê de seu aclamado álbum The Life of Pablo, com diversas falas controversas, apoio ao, à época, futuro presidente Donald Trump, além de um recente diagnóstico de transtorno de bipolaridade. Somou-se a isso o sequestro sofrido pela sua esposa no período, Kim Kardashian, em Paris, que foi a gota d’água para o rapper e sua saúde mental. Diante disso, West decidiu internar-se em uma clínica de reabilitação.


Dessa forma quase catastrófica, os rappers se unem para criar um dos álbuns mais inspiradores da última década. Amigos desde o quarto álbum de estúdio de Kanye, o aclamado 808’s & Heartbreaks, os artistas realizaram diversas colaborações até que o álbum em conjunto fosse verdadeiramente produzido, sendo apresentado ao público no ano de 2018. Visando fugir do olhar da mídia, West se isolou em seu rancho no Missouri, local em que produziu 5 diferentes álbuns em um curto período de tempo. Um deles foi o Kids See Ghosts, gravado anteriormente em uma passagem de Kanye e Cudi pela Ásia, mais especificamente na China e no Japão. Dessa maneira, após os respectivos períodos de reabilitação, os artistas passaram a escrever as músicas desse novo trabalho.


Uma das características mais presentes nos trabalhos produzidos por Kanye no período era a curta duração dos álbuns, não passando dos 30 minutos. Assim, o álbum que falaremos hoje também segue a mesma linha, possuindo somente 7 faixas e 23 minutos ao todo. Apesar do pouco tempo, parece que ficamos dentro dos pensamentos de Cudi e West por horas e horas, entendendo um pouco mais de suas mentes conturbadas, além de captar a mensagem de esperança passada para todos os ouvintes. Aqui temos uma gravação que ultrapassa os limites do hip-hop, caminhando por gêneros como o rock, gospel e até o eletrônico.


A capa do álbum, realizada pelo renomado artista japonês Takashi Murakami, representa os artistas como fantasmas, isto é, sendo eles seus próprios demônios. Após diversas reuniões durante o período de gravação no Japão, a capa foi finalizada com diversas cores que simbolizam a calma e a esperança.


Na primeira faixa, intitulada Feel the Love, temos a participação de Pusha-T e a magnífica voz ecoante de Cudi dando melodia à música. Com a faixa sendo apresentada com as rimas e os versos de Pusha-T a respeito de uma vida superficial e Cudi acompanhando com sua melodia constante, temos a entrada de Kanye com improvisos. O artista chega na faixa com diversos sons que, junto aos tamborins da música, simulam barulhos de armas, representando a ira do rapper. Aqui o destaque fica para a musicalidade presente, principalmente no sentido dos instrumentos utilizados. A guitarra e os tamborins dão um clima mais cru e unem-se perfeitamente a batida que acompanha a raiva, demonstrada principalmente por Ye.


Em seguida, na segunda música, nomeada Fire, já somos introduzidos a uma nova experimentação da dupla, com a presença de uma bateria e um chocalho, enquanto logo nos primeiros versos temos frases que mostram a recuperação psicológica de West: “voltei a me governar”. Assim como a primeira música, aqui ainda não temos a presença de um sample, utilizando instrumentos junto aos vocais para promover uma atmosfera mais intimista, em que a dupla mostra seus dias imersos na depressão e na esperança pela recuperação. Cudi, com sua voz extremamente marcante, recita seu verso com extrema transparência sobre seus momentos de tristeza: “São tantos dias que orei a Deus / Toda essa dor, não conseguia encontrar um caminho”. A música finaliza com uma mensagem de coragem e esperança que, com os dias de trevas passados, Kid Cudi deixa suas cicatrizes para trás para que fosse aceito no céu. O destaque aqui, além dos versos encorajadores, está novamente na musicalidade e, mais especificamente, na experimentação da faixa, com o uso de flautas, um solo de guitarra final e chocalhos.


A terceira música, 4th Dimension, já possui a presença de um sample que dita, junto a uma grave batida, o tom da música. Em quase que uma volta à sonoridade inicial de sua carreira, Kanye retrata em seu verso as relações sexuais como algo quase que de outra dimensão, realizando uma conexão para sua dupla, que mostra como essa vida de curtição lhe levou a uma verdadeira perdição, um lugar escuro e sem saída. A faixa finaliza-se com um sample extremamente distorcido, após Cudi pedir para Deus livrar-lhe de seus pecados.


Posteriormente, temos a música Freeee (Ghost Town Pt.2), uma continuação direta da música Ghost Town, presente no álbum Ye, lançado semanas antes do Kids See Ghosts. Em seu álbum solo, Kanye apresenta-nos uma música libertadora, com memoráveis versos que indicam sua esperança de livrar-se de seus medos, como: “Algum dia quero descansar como Deus fez no domingo” e “Nada mais dói, me sinto livre”. No álbum conjunto, possuímos a continuação da colaboração já presente no álbum solo. Nessa segunda parte da música, estamos imersos em uma mistura de rap com hard rock, além de vocais distorcidos e ecoados. A psicodelia também faz parte da faixa, apresentada a partir de diversos sintetizadores. Os temas presentes na música seguem diretamente os citados na primeira parte, falando sobre a liberdade e a inexistência das dores, superando o que havia passado em um período recente.


Em seguida, é apresentada a faixa mais famosa do álbum, intitulada Reborn. Lembra do texto de Kid Cudi postado nas redes sociais que citei anteriormente? Aqui está sua resposta: o artista se mostrou renascido, superando seus demônios. Aqui somos apresentados a um verdadeiro hino sobre a saúde mental e sobre estar livre das amarras da depressão. Com uma sonoridade mais simplista, que alavanca a melodia evocada por Cudi, repete-se ao longo de toda a música: “Eu estou tão renascido, estou seguindo em frente”. Após um diálogo com Deus e mostrando-se confiante em continuar sua jornada, temos o verso de Kanye entrando de maneira extremamente orgânica na música, em que falará sobre seus tempos sombrios, falando de “peito aberto” sobre estar fora do controle, sem tomar seus remédios, e completamente envergonhado, pedindo quase que de maneira masoquista para que sofra as consequências de seus atos, assim, exorcizando seus pecados. Seguindo quase que em um confessionário, Cudi canta sobre seus problemas e o sentimento de estar perdido, mas dando uma mensagem de esperança não só para si, mas para todos os seus fãs. Frases como “A paz é algo que começa comigo” e “Não há como te parar de jeito nenhum” traçam um caminho que a esperança e a paz de espírito pode ser alcançada, algo que é visto como não só a máxima da música, mas de todo o álbum.


A faixa posterior, de mesmo nome do álbum, traz uma atmosfera crua que te leva a um ambiente quase que amedrontador, dando a perspectiva de ver fantasmas, como traz o nome da música. Os rappers colocam-nos em um lugar que pode ser visto como suas próprias mentes, isto é, um lugar escuro e lotado de fantasmas que os assombram. De maneira mais explícita, Kanye fala sobre seus fantasmas, mais especificamente sobre a vontade e a pressão de ser sempre o melhor, somada à visão sobre suas atitudes frente à mídia.


Por fim, o desfecho do álbum é feito pela música Cudi Montage. Um clima extremamente nebuloso criado pelo assustador riff de guitarra de Kurt Cobain retirado da música Burn the Rain guia-nos ao fim dessa viagem pela mente conturbada de dois artistas. Cudi inicia com um vocal cru, com frases que nos deixam angustiados só de imaginar o que estava se passando em sua mente: “Me encontro no frio, preso em outra alma, eles não conseguem me ouvir gritar”. Aqui, não só as pessoas em seu entorno não conseguem escutar o grito do rapper, mas também Deus, que parece ignorar todas suas súplicas. Entretanto, mesmo com a difícil realidade, o cantor não desiste, dizendo: “Aguente firme! Me salve, senhor”. Assim, temos o desfecho do álbum, com uma mensagem de que devemos aguentar firme, mesmo quando parecer que ninguém está ali para nós.


Pessoalmente, já passei por momentos difíceis, sentindo que não havia solução. Esse álbum me ajudou de uma forma quase inexplicável e gostaria que ajudasse as pessoas que também passam por esses problemas. Escutar esse álbum é, para mim, um momento de paz de espírito em que me reconecto comigo mesmo. Desde a musicalidade até as letras que me transmitem esperança, me sinto em um ambiente seguro. Espero que, de alguma forma, seja por este álbum ou qualquer outro, você tenha um porto seguro.


Kids See Ghosts é um verdadeiro exorcismo de dois artistas que, durante toda sua vida, passaram por turbulências. Apesar de hoje em dia Cudi e West não manterem relações, muito por conta dos abomináveis discursos de Kanye, a mensagem que fica é algo quase que espiritual. Se você está passando por um momento difícil, saiba que não está sozinho. Aguente firme e renasça.


Autoria: Rafael Barcelos

Revisão: Anna Cecília Serrano, Enrico Recco e Laura Freitas

Imagem de capa: Kids See Ghosts por Takashi Murakami





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