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LAR, CAÓTICO LAR (UMA RELEITURA DA VIDA UNIVERSITÁRIA EM TEMPOS DE PANDEMIA)

No texto de hoje, nossa redatora Laura Kirsztajn rememora um de seus primeiros textos para nossa revista, em que ela conta como a rotina universitária moldou e ressignificou totalmente sua vida, traçando um paralelo com a realidade atual. Como a mudança em nossa rotina, do real para o virtual, afeta nossas concepções de produtividade, sociabilidade e lar? Venha ler este artigo emocionante e envolva-se com cada palavra.

Há quase três anos, em um dos meus primeiros textos para a Gazeta (Lar, Discente Lar), eu discuti como a rotina da faculdade, especialmente o choque do primeiro semestre, havia impactado a minha vida como um todo. O principal impacto foi na minha relação com a minha casa: uma vez na faculdade, estive cada vez mais distante daquilo que era mais frequente na vida de colegial – meu quarto, minha cama, minha cozinha, minha família, meus amigos da escola.


O período integral de ensino fez com que minhas refeições fossem feitas no espaço da faculdade ou locais próximos a ela, que meus estudos ocorressem nas bibliotecas ou nas salinhas de reunião, que as sonecas fossem deslocadas para os sofás da faculdade de Direito e que o banheiro virasse um espaço de relativa privacidade para chorar.


Em 2020, veio uma pandemia e a necessidade de distanciamento social, fazendo com que a idealização do lar e de como ele me foi afastado em razão da faculdade, aparentasse estar equivocada, ou, pelo menos, fosse menos dramática do que a Laura de 2017 fez parecer.


Eis o parágrafo final, que parece um delírio quando lido hoje em dia:


Enfim, fora do mérito de ser bom ou ruim, no fim do dia letivo eu retorno a minha casa e passo apenas algumas horas usufruindo do que ela tem. A geladeira dos almoços e jantares acaba fornecendo só lanchinhos, a cama oferece poucas horas de sono, e parece que o final de semana em casa é uma visita àqueles amigos do colegial com os quais tentamos manter algum contato. Assim, sinto falta do local que eu preencho meu endereço nos formulários e, mesmo assim, continuo dizendo que “estudo na GV”, como se esquecesse que aqui é onde eu durmo, almoço, janto, choro, encontro amigos, escrevo textos pra Gazeta e tenho crises existenciais. Nisso, eu me pergunto se o que resta do meu “eu” antigo está lá em casa, ou se ele foi abandonado, reformado, e agora vive aqui, nesse novo lugar, para se desenvolver e se remodelar até a formatura.¹


Só que, talvez, a questão não fosse apenas a distância da casa, mas sim o tempo que nós tomamos para nos dedicarmos a nós mesmos, tempo esse que costuma ocorrer dentro do ambiente doméstico. Essa dedicação envolve comer com calma, preparar uma comida que você gosta na sua casa (nem que seja um miojo, o que eu adoro), conversar com a sua família, ter tempo para manter contato com seus amigos até por mensagens de whatsapp... Ler um livro ou a assistir a um programa que não são necessários para o seu currículo, porém atiçados pela sua curiosidade e necessidade de divertimento.


O fato de você deslocar as atividades universitárias para o ambiente doméstico não necessariamente significa um alívio dessa rotina de faculdade. Talvez você tenha ganhado algum tempo ao poder dormir até mais tarde e não depender de algum transporte, mas as exigências cotidianas continuam ali. O que antes envolvia dois espaços (ou mais) com suas devidas funções, agora concentra todas elas. Os espaços que separavam o aluno do filho, o estagiário do aluno, não existem mais. Isso faz com que você se pergunte: “o que eu sou agora?”, porque você é tudo ao mesmo tempo. Você tem que correr para preparar o almoço antes da aula online começar, mas também precisa enviar aqueles e-mails do estágio. Separar esses papéis é, em si, uma situação que gera muita insegurança.


Como afirmou Garcez em um Webinar realizado pela FGV, a nossa rotina não é neutra: ela é fundamental para construir o nosso horizonte de expectativas sobre a vida, gerando uma noção de vida “normal” (dimensão normativa) para cada um de nós. Para mim, foram quatro anos em uma rotina de afastamento do lar e aproximação do espaço universitário. Essa rotina significou uma adaptação, cansativa, porém que dava sentido aos dias da semana, e aquietavam algumas ansiedades sobre “o que terá amanhã?” ou, pensando no desespero da pandemia, “o que será do amanhã?”.


O rompimento da rotina embaralha nossas expectativas e nossa noção de normalidade. O que é normal fazer em um contexto como o nosso? Isso é difícil de saber, nunca nos ensinaram, e eu diria que os filmes de apocalipse não pensaram em pandemias como a atual.


Concentrar nossas atividades em um só espaço também dá origem a muita ansiedade e muitas cobranças. Como Garcez explicou, a “Modernidade” carrega consigo a noção de que o espaço produtivo é exterior ao nosso lar. Isso explica muito do apagamento que se faz ao trabalho doméstico, o qual, dentro do ambiente familiar (pois não estou considerando aqui a realidade das empregadas domésticas, a qual já representa bem como gênero não pode ser separado de discussões de classe e raça), não é remunerado, sequer é tratado como uma atividade produtiva. Pensando na desigualdade de gênero, era isso o que trazia a ideia de que o homem saía de casa para trabalhar, enquanto a mulher ficava no lar “sem fazer nada, só cuidando da casa”.


Assim, quando saíamos de casa para a faculdade, era comum sentir-se automaticamente mais produtivo, mesmo sem ter feito muita coisa além de mover o seu corpo para outro lugar. Ao mesmo tempo, ficar em casa fazendo alguma atividade acadêmica facilmente dava uma noção de pouca produtividade, porque associamos o deslocamento do lar a um sinal de trabalho.


Quando transportamos esse universo educacional para o virtual, a princípio se tem uma noção de perda, de menos coisas sendo feitas, de aulas “mais fracas”, e, por isso, o impulso é preencher toda essa frustração com atividades e responsabilidades novas. Mais trabalhos, mais cursos, aulas que vão além do horário previsto, mais atividades, textos mais longos, leituras mais complexas. Tudo porque mudamos o nosso espaço, uma variável relevante, porém que não foi a única a ser modificada ou impactada nesse contexto. Mudar de ambiente e viver uma pandemia muda um pouco de nós também, especialmente a forma como nos portamos e vivenciamos cada situação.


O que será de nós daqui a alguns meses? Acredito que, até o momento, cada um já teve algum grau de introspecção quanto à própria experiência universitária: alguns descobriram que sempre amaram aulas presenciais, outros encontraram conforto no relativo anonimato de uma câmera desligada e um microfone fechado. Talvez alguns tenham descoberto que ter o professor na mesma sala que você ao final da aula era uma enorme oportunidade para tirar dúvidas, e que agora foi anulado por “esta reunião foi encerrada”. Ou que esbarrar em alguém no meio da faculdade pode proporcionar discussões super interessantes e que não mais ocorrem quando cada reunião e encontro é agendado e programado.


Isso inevitavelmente tornará nosso ambiente educacional algo diferente quando tudo isso voltar. Eu me imagino aliviada ao poder levantar a mão em uma aula sem ser através de um botão, ou efetivamente olhar nos olhos de um colega enquanto ele contribui para a discussão. Coisas que eram simples, até odiadas, mas que agora mostram um pouco como a nossa vivência humana é extremamente dialógica e dependente das nossas relações interpessoais.


Penso que, até o fim disso tudo, a nossa rotina já vai ter se adaptado a essa situação, e talvez possamos afirmar se superamos alguns dos nossos preconceitos e obstáculos nessa experiência universitária diferente. Será que haverá algum alívio para esse senso de falta de produtividade dentro do lar? Será que seremos capazes de suprir o distanciamento físico nas nossas amizades? Descobriremos formas novas de estudar e aprender, ou justamente o que não devemos mais fazer? Teremos em nossa mente a imagem de um lar caótico, ou de um lar idealizado e distante? Essas perguntas aguardam o tempo.


¹ Lar, Discente Lar: https://bit.ly/3gkx8yL

² WEBINAR – Educação: reconstruindo caminhos, aprendendo com as adversidades (2020): https://bit.ly/2LUWQw4

³ Para se aprofundar nessa temática, recomendo o filósofo Charles Taylor, que aborda isso em seu texto Modern Social Imaginaries. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/26276/pdf



Foto de capa: Kristina Tochitskaya







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