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MEU MALDITO ESPELHO


Sentado naquela velha poltrona felpuda, olhando fixamente para a imagem formada no espelho metros à minha frente, não me via. Meus óculos funcionavam perfeitamente. Era possível descrever todos os detalhes dos móveis ao meu redor: desde aquele quadro de pessoas felizes até as solas desgastadas de meu sapato próximo ao rodapé. Via tudo, menos eu. As minhas cansadas pernas tardaram a levantar para aproximar-me daquele reflexo. Continuava sem me ver.


A cada passo que dava, a imagem ficava mais nítida. Os traços daquela pessoa no espelho me remeteram a meu pai; mas não era eu. Óbvio que não era eu. Não sou como meu pai. As roupas sempre nos diferenciavam, mas naquele momento nos aproximavam. Claro, todos trabalham com as mesmas roupas. Mas não sou igual a ele. As dores nas costas que senti ao levantar pareciam muito as que meu pai reclamava quando eu era menor, mas isso é normal nessa idade.


Meu coração disparava, cada ruga daquele rosto na imagem era idêntica às de meu velho pai. A camisa listrada azul com branco, as calças jeans com um cinto preto e o sapato eram as mesmas. Mas eu sou eu e ele é ele. Sou completamente diferente.


Naqueles minutos em que olhava para aquela imagem, lembrei dos meus tempos de adolescência. A rebeldia, a angustiante ansiedade de simplesmente ser diferente. As músicas, roupas, escritos e discussões me faziam diferente. A vontade de tatuar todo meu corpo e num estalo começar uma vida em outro país. Esse era eu. Na verdade, esse sou eu. Estou esperando o momento certo para poder fazer tudo isso.


A cada memória que vinha à minha mente, me sentia mais relaxado. Lembrava-me das vezes que meu pai dizia que o sonho dele era ser super bem sucedido para poder morar no lugar que ama. Nisso, eu lhe falava: “Por que você espera que tudo isso aconteça para poder ser feliz?”. Ele me respondia: “Quando você tiver responsabilidades, você vai entender”. Até nisso sou diferente, consigo ser feliz hoje em dia. Não sei se meu pai era uma pessoa feliz durante os períodos que venho relembrando. Tenho memórias dele sendo um cara muito estressado e responsável, mas feliz? Lembro dele sempre cansado ao chegar em casa, deitando logo após qualquer inconveniente. Era fraco.


Evitando olhar para aquele espelho, caminhava pela sala e pensava em quem eu era. Tudo, menos meu pai. Os círculos que eu fazia em volta do tapete me deixavam reflexivo. Abrindo as gavetas que tinha na sala, achava fotos e memórias profundas guardadas em caixas. As imagens não mentiam, desde bebê sou completamente diferente, só olhar os traços. Dentre toda aquela nostalgia, me deparei com uma carta que escrevi aos meus 19 anos. Após tirar todo aquele pó, existiam somente rasuras naquela única página. Era possível ver somente a data em que escrevi e uma frase:

“A mãe, gritando, me disse que era igual ao meu pai. Não gritei de volta, meus nervos baixaram, apenas voltei ao quarto. Nunca me disseram isso. Por favor, Deus, não me deixe ser…”


Me sentia confiante e feliz, não era igual ao meu pai. Por que caralhos aquele espelho não dizia o mesmo? Aquela imagem que eu via não era nem um pouco eu. Ela repetia os movimentos que eu fazia. Enquanto aquela coisa me olhava fixamente, fui perdendo minha cabeça. Meu dia foi estressante, não aguentei mais. Perdi a cabeça. Peguei aquele espelho e joguei-o no chão com toda minha força. Claro, estava formando uma imagem que não era minha. Os cacos espalharam-se por todo o chão da sala. Logo após isso, uma poça de sangue se formou no chão: meus pés estavam cortados.


Corri as pressas para pegar a bandagem. A cada passo daquela corrida, me lembrava que o sangue que marcava todo aquele corredor também era de meu pai. Devia continuar? Aquilo não podia ser verdade, estava ficando louco. Continuei a correr. Os esparadrapos e gazes ficavam ao fundo daquele armário mofado embaixo da pia. O esforço para abaixar era enorme, minha coluna estava estragada. Sentei-me no vaso para realizar todos os curativos. Meu pé sangrava muito e a dor era descomunal. Ao tirar todos os cacos, realizei um curativo básico, muito parecido com aquele que meu pai fazia quando me machucava jogando bola. Mas eu faço de um jeito um pouco melhor para doer menos. Abaixei-me novamente para guardar os medicamentos e tudo doía.


Precisava limpar toda aquela sala, estava imunda. Levantando rapidamente, acima daquela pia tinha outro maldito espelho. Num relance de milissegundos, olhei para ele, mas desviei o olhar logo em seguida. Tratava a visão fixamente para a porta do banheiro; eu tinha medo daquele espelho. Criei coragem e virei em direção à pia, com a cabeça abaixada. Meus pés estavam anestesiados e o coração disparado. Levantei a cabeça e, com os olhos abertos, encarei cada detalhe da pessoa que o espelho mostrava. Meus olhos encheram-se de lágrimas, acho que de dor; mas homem não chora, como dizia meu pai. Estava cansado, fui-me deitar.



Autoria: Rafael Barcelos Salles

Revisão: Beatriz Nassar e Anna Cecília Serrano

Imagem de capa: Victor Koldunov


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