O texto de hoje foi enviado para a Gazeta Vargas por nosso membro Gustavo Laffitte enquanto ele prestava nosso Processo Seletivo. Surpreenda-se com o incrível "Na Minha Ilha..."!
“É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós.”
José Saramago
“O pintor Paul Gauguin amou a luz na Baía de Guanabara
O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela
A Baía de Guanabara
O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara
Pareceu-lhe uma boca banguela
E eu menos a conhecera mais a amara
? Sou cego de tanto vê-la, te tanto tê-la estrela
O que é uma coisa bela?” Caetano Veloso
THESIS STATEMENT - É o know-how dos nossos mentores estrangeiros que nos compele a sistematizar o Corpus Christi espiritual em uma thesis statement concisa e coesa, daquele jeito. Seus templos são de sal, e o vinho, cianureto. Nós, pobres brasileiros, órfãos da mãe funesta que é Latinoamérica (e que Deus me perdoe por ironia tão ingrata), providos do tão sórdido don’t know how, nós temos apenas de nos contentar com a servidão. Ao mesmo tempo sabendo e vendo, com mais de setenta mil olhos, o quão seca e moribunda é a ilhota em que eles habitam. Ó deuses americanos! Não precisamos da sua avançada tecnologia telescópica para atravessar esse oceano de miséria na malícia de um olhar! E se fartar, de rir, ao ver que são vós os cegos, e nós os cães-guia!
Afinal, quem é que está certo, e quem foi que errou? Estava certo Paul Gauguin, pintor francês que encantou-se com as cores exóticas da costa oposta? Ou talvez Lévi-Strauss, que estraçalhou o seu coração hermeticamente estruturado ao deparar-se com a geometria extraterrestre da Baía de Guanabara? Talvez o seja, enfim, que nesse cabo de guerra entre o exótico e o fétido, entre o sacro e o profano, quem esteja mais em erro seja mesmo o nosso mano Caetano. Mas esse cara, quando erra, sempre erra divino maravilhoso.
E eu, então, que nos dois curtos dias que passei na Cidade Maravilhosa, enfermo de intoxicação alimentar e em certa indecorosa companhia, devo ser eu sem dúvidas quem mais está em erro. O que nunca me impediu de falar, para detrimento do ouvido alheio. E o Rio, o Rio é mesmo lindo…
A primeira lembrança que vem à cabeça é o gosto de estranheza em tudo aquilo… Aqueles morros - alguns verdejantes, outros cor de pedra sabão ou laranja-laje - emergindo do vazio como deuses antigos, caídos. É certo de que eram deuses, devem tê-lo sido. Nossos ancestrais. espíritos elevados ao céu que nos deixaram benção e maldição. E ao topo do mais doce dos morros, um Cristo solitário: Os braços bem abertos, os olhos bem fechados.
E que beleza roubar um relance do verde tropical por entre os prédios, em meio à cidade grande! É um espanta-tristeza daqueles, um antídoto milagroso! Que beleza a quietude da lagoa Rodrigo de Freitas, e os carros cantando suas águas como os violeiros de outrora… Que beleza seria sentar-se à beira do bar e batucar um samba antigo na mesa ou na caixinha… Os paulistanos, quando ouvem sua voz, perguntam se és carioca. Decerto no Rio te chamarão de paulistano. Mas o peso da orfandade não é coisa de se dar muita bola. Saibas que a voz é um rio poluído como os de Sampa-city, mas que nasce num morro verde como o mar. E assim, ao menos às nuvens, o morro é uma ilha perdida na imensidão azul dos céus.
No fundo, concordo com José. Um verso anônimo diz que a cor mais bonita é sempre de fora pra dentro, o dentro no fora. É bom conselho a qualquer aprendiz em oficina, sejam eles esbeltos como Caetanos ou aleijadinhos como nós. José sempre acerta, mesmo quando erra (ou se delonga), e nunca deixará de ser um bom português. Digo, um português dos bons. É um gajo porreiro, vermelho como eu, cego como eu, sardo como eu. Já mesmo jovem, José morreu… Será que achou bonita a vista da ilha, a terra se afastando dele a passos de tartaruga? Será que sentiu frio?
Será que sobrou sonho nos cantos de José? Quantos livros já deve ter escrito na língua dos espíritos? Ah, se Chico Xavier estivesse vivo… Gosto de pensar que José morreu feliz consigo e enfezado com o mundo, comme d’habitude o é a quem sabe o que está a ver, que sabe o que está havendo. Quem não está a venda não precisa de amuletos nem remos para guiar a sua canoa rumo ao mar, ou rio acima. E mesmo nós, os vivos, temos nossos remos, é certo - são os braços. E temos pernas e, mesmo quando um pouco tortas, são espertas. Mas não sei se a ilha permanece a mesma quando vista à distância, talvez Heráclito tivesse mais a dizer. A frase do Zé lembrou-me do nome da rosa no eco de Umberto, daquela cena em que os frades detetives desvendam a estrutura do labirinto monástico observando-o pelo lado de fora. Ao analisar a estrutura arquitetônica do edifício, revela-se fácil navegar por entre os corredores e os salões secretos. Mas é somente adentrando o labirinto que se descobre o seu verdadeiro segredo - o livro proibido, envenenado, e o cego que trazia a visão do inferno na palidez dos seus olhos -, sempre haverá um Minotauro. Creio que essa seja a representação de um fato da vida, uma inerência do ver-se. Afinal, fora da ilha, não se sente a jovem velhice serena do tempo ao passar os dedos nos troncos das árvores, nem tampouco colhem-se os frutos das suas estações.
É certo de que precisamos sair de nós mesmos para nos vermos, e tal esforço vai muito além de um espelho alquímico ou emplastro mágico que revele nossos multicoloridos espectros. Ao mesmo tempo, o fora também é o Eu, mesmo nunca sendo de fato o fora a substância da qual o Eu é feita. Sair de nós mesmos é impossível, sempre nos encontraremos em cada esquina, a cada curva, a cada gota da chuva, a cada relance do luar. Mas entre o Eu e o mundo, há de fato um oceano. Somos eternos navegantes, temos o anseio do mar etéreo em nosso sangue e não há água ou vinho que arrefeça essa sede de saudade. Nesse eterno vai-e-vem entre ilha e continente, entre nós e o mundo, nos fazemos, desfazemos e nos refazemos a cada rajada fresca de vento. Em nossas ilhas temos a perfeição do imaginário, a possibilidade de ser tudo ou nada - uma falsidade. Enquanto estivermos em corpos, há o mundo, e o mundo é e nunca não é. O que não é não é o mundo, mas pode ser, na ilha. Aí jaz, talvez, a principal razão de José, e a intuição de Lupicínio:
“Felicidade foi-se embora
E a saudade no meu peito ‘inda mora,
E é por isso que eu gosto Lá de fora,
Porque sei que a falsidade Não vigora.” - Lupicínio Rodrigues (cantador de samba-canção)
Quanto à ilha, a ilha de onde venho nunca se vê por inteira. Um tanto como no dia chuvoso em que aterrissaram no paraíso, no prelúdio de um terror sem tamanho, minha ilha se diz ilha somente porque se imagina, ou mesmo se espera, que essa terra seja enfim finita. Mas nunca houve comprovação científica, tampouco evidências quaisquer a serem captadas pelas herdadas antenas indígenas ou pelos nossos chakras semânticos do cotidiano.
Pangeia? Muito mais. Imagina-se um planeta antigo onde não apenas o Rei, mas o Tudo é que está nu. Planta, pedra, terra e mar; o céu e os pássaros, os homens e suas nuvens, os sabores e o tempo… Nada se cobre nem se descobre, nada pode ser escondido. Tudo jaz junto e misturado num tacho de vida e morte, onde não se pode dizer ao certo quando acaba o mar, nem onde começa a praia.
Foto de capa: Benjamin Flouw
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