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NEM TUDO O QUE PARECE, É




Vira homem! Sim, você mesmo. Vira homem! Seja, aja, cresça como um homem. Não importa o que aconteça. Seja homem, dizem eles. Mas como? Que homem? Quais homens? 


Nasça homem, honre suas calças. Faça valer o pau que tem entre as pernas. Trabalhe, seja provedor. Case, produza e reproduza. Seja homem. Cuspa no chão e arrote. Xingue quem quiser, arranje brigas para mostrar sua força. Ei, seja homem. 


E se você não for? Ah, simples. Aceite seu lugar, se recolha a sua insignificância. Não há muito o que você possa fazer. Ou é homem ou é resto. Ou é azul ou é rosa. Ou honra o pau ou não. Simples, direto. Seja viril, não tenha medo. 


É assim que é o mundo, do homem para o homem. Mas o medo existe, e é ele que dita as regras nesse cansativo jogo, nessa coisa que chamamos de sociedade. Da guerra à paz, da democracia à ditadura, tudo é o medo. O medo dos homens sobre o não ser homem. O modus operandi do masculinismo que dita que para ter sorte na vida, basta seguir a cartilha do “ser” homem e passar sua curta  existência tentando fugir do não ser, provando ter merecido seu lugar entre os pares das calças compridas. 


Mas e se eu não me encaixo? Ah, sei lá. Não tem nada escrito. Se não se encaixa, então sumam da frente. Mulheres, putas histéricas, viados, aberrações da natureza, são peças descartáveis na sociedade do homem. Há jeitos de se manter a ordem e de garantir que tudo será como deve ser. 


Ah, que delícia ser homem. Que delícia poder ser e não pensar em quem não é. Não há necessidade de questionar. Tudo é lindo quando se ocupa o melhor dos espaços, certo? Tudo é satisfatório quando podemos pura e simplesmente ser homens. 


Conversa furada. Na verdade, o ser homem nunca será plenamente satisfatório. Não basta só ter vergonha de não ser, tem que saber que também vai viver na vergonha de nunca ser o bastante. Isso porque constantemente inventam novos modos de ser aquilo que deveria ter sido. Com toda a licença poética por essa brincadeira com as palavras, aqui trago o principal ponto: o ser homem é algo que perpassa tanta coisa que o simples ato de “ser homem” já não basta. Há tanto mais, como o modo de falar, de agir, de gostar, de pensar e de se expressar enquanto pessoa nessa brincadeira toda do “ser” homem. O eu masculino é quase platônico, lírico, utópico de tão inalcançável.


Para que tudo dê certo, penso também que desenvolvemos a fórmula perfeita para que todos possam viver sob a sombra de uma expectativa nunca alcançada. O ataque, a repulsa e a condenação dos atos que ousem desafiar a ética masculinista que dá o tom da sociedade são os artifícios ideais para causar vergonha aos ousados. Assim, de pouco em pouco, se reprime os que buscam se libertar de ser homem e querem simplesmente ser gente. No fim, não há ninguém que viva o bastante para dominá-lo, mas há os que passam a vida nesta tola performance.


Performance, ah sim! No fim, não passa disso. Não somos o que veem de nós, mas o que escondemos, o que deixamos embaixo da camada construída para nos apresentar ao mundo. Se você acredita nisso ou não, pouco me importa. Defendo que, de fato,  no final somos sim produto moldado pelo meio, seja por adaptação ou por oportunismos, criamos a face do mundo em que vivemos para nos encaixar. Uma faculdade de elite ou um trabalho corporativo, não importa. Nossa performance é o que dá o tom do cotidiano e nos protege. 


Para o homem forte, viril, másculo, é inadmissível a ideia da vulnerabilidade. O irônico, porém, é que justamente essa performance é a maior prova do espaço de vulnerabilidade que ocupamos. Não há liberdade de ser o que queremos, pois é justamente o mecanismo de repreensão age mais forte, colocando cada um em seu devido lugar, sua devida caixinha. A maior fraqueza, no fim, é deixar a eterna performance ganhar, para que não se decepcione o rígido sistema que forçosamente nos coloca em cena, sem ensaio, sem script. Cada um por si. Que vença o melhor, o mais forte. 


Falar de masculinidade, de ser homem, é muito mais complexo do que faço parecer. Juntei um emaranhado de ideias e voilá, saiu algo. Mas quando pensamos em todo o processo histórico de moldar o bicho homem perfeito, nos damos conta de todas as nuances que compõem o fenômeno. A dor de cabeça vem, desistimos de pensar e só aceitamos o script. Falando com amigos, percebo que não é só para mim: o bicho homem, em todo seu regozijo de privilégio, evita pensar muito como foi parar lá. Na verdade, num geral, o bicho homem não pensa. Pelo menos não sobre isso. Coisa de homem é pensar a política, o Estado, a economia, o prover do pão. Coisa de bicha mulher, coisa de bicha também, é pensar no cuidado, na aparência, na futilidade que em nada agrega o mundo. 


A revolução industrial — opa, mais um aspecto — moldou a ideia ideal da família e, acima de tudo, do homem. O ético trabalhador, que vai cuidar da família e do assunto público, que vai prover e garantir o andamento do Estado. Que vai virar burguês, ter filhos para continuar o ciclo e cobrir de joias o pescoço de sua bela e recatada senhora. Isso, claro, no folhetim. No dia-a-dia escondiam-se os verdadeiros desejos e aptidões para dar conta desse eterno teatro. Nem tudo o que parecia, era. Não havia tempo para questionar, e a mecanicidade deu o tom que foi herdado por todas as gerações subsequentes. Nesse meio tempo, apenas algumas panes no sistema, apenas algumas revoluções que conseguiram colocar em cheque, mesmo que parcialmente, a ideia do bicho homem ser o certo e todo o resto uma falha abominável da natureza. Anos, décadas, séculos. 


Hoje, então, não é de se admirar que eu, amigos e todo o resto da sociedade estejamos presos nos padrões do homem, que forjou o mundo ideal para si, ignorando a participação de todos os outros elementos no processo. Não questionamos a fundo o que nos dá essa posição, porque ocupamos o espaço que ocupamos, seja para o bem ou para o mal. Há pelo menos trezentos anos agimos assim, e antes disso agíamos de formas que, embora parcialmente diferentes, ainda eram igualmente pensadas por e para homens. Homens, claro, que assumiam com gosto esse papel medíocre do idealismo masculinista. Família, política, Estado, economia e prover, tudo dentro da cartilha global do bom bicho homem. 


Tem padrão, tem critério, Tem jeito certo de ser o impossível. Passar a vida parecendo ser o que não somos custa muito. Custa sonho, custa a própria vida. A construção do eu masculino não é barata. Se amei, sou menos homem. Se chorei, já não sou mais. Chatice! E se eu quiser mudar? Essa caixa não é pra mim. Infelizmente as opções são limitadas. Seja o garoto de 7 anos que sempre foi chacota por seus comportamentos, seja o pai de família ridicularizado por suas fraquezas. Não importa. E se não for homem? Ah, aí nem relevância tem, não há validade dos problemas e lamentos. Deixe os cavalheiros se resolverem, quem sabe se sobrar um tempinho não olhamos para isso.


O pensar homem, mulher e gente não é novo. Na verdade é a partir de ideias antigas que escrevo esse lamento. Uma das frases mais famosas da história talvez seja a de Simone de Beauvoir, que afirmou que “não se nasce mulher, torna-se”. Se diariamente o pensamento da filósofa francesa se prova verídico, eu ouso ainda adicionar um must: de fato se nasce homem, mas ainda passa-se a vida tentando ser.


Quando pensamos que esse ser “homem”, o bicho de muitas facetas, apresentado até aqui como peão de seu próprio sistema, não apenas aborda a identidade do gênero, muito menos só a dimensão biológica da coisa, podemos compreender essa minha tentativa fajuta de complementar Beauvoir. O homem nasce homem, alívio. Mas não basta, ele também passa a vida tendo que provar, superar infinitos testes de sua hombridade, sua masculinidade, sua testosterona. Se falhar em um, é questionado. Se falhar em dois, ridicularizado. Se falhar em três, reprovado.


Dinâmica quebrada para um mundo quebrado. Mundo de homens para homens. O homem bom, ético, que produz e reproduz. Que ama uma mulher, mesmo que ela não queria ser amada. Que cria filhos. Que trabalha. Que se encaixa. Mas nem tudo o que parece, é. E é nisso que, no fim, a vivência se resume:  a uma luta de aparências, de performar o alcance do inalcançável.


Não apenas vítima, o homem é combustível dessa dinâmica, já que é o primeiro que, percebendo o risco de perder sua privilegiada posição no sistema, alimenta toda essa exaustiva rotina. No meio do caminho alguns se perdem, se desviam: amam outros homens, não reproduzem, choram, não são os provedores. Que sejam eliminados também. No fim, a manutenção do todo é mais importante do que a preservação da parte. Lutar para ser homem diariamente, dentro do modelo convencional, é mais válido do que todo o resto, do que qualquer vivência do pseudo homem.


Mas como? Quais armas são usadas no combate silencioso? Claro, o próprio contexto histórico do mundo, a religião, a política e o Estado são fundamentais para fomentar a dinâmica. Mas no dia a dia, há aparatos igualmente potentes, mas letalmente mais sutis. Para compor a performance, há os critérios certos. Gabarite a lista e seja bem-vindo ao clube. 


Gol! Grito, euforia. Nunca fui bom no futebol, nunca senti o mesmo apreço que meus pares. Sentença. Excluído dos círculos exclusivos dos garotos e relegado à companhia das mulheres, tida como pequena ou insignificante. Se não vibro por um jogador que reforça diariamente qual o espaço que um homem ocupa, não sou digno de ser considerado um. Fora. Cartão vermelho para mim, com meu jeito de viadinho e meus gostos femininos. Aqui, claro, vale lembrar: gosto feminino não é gosto. Histeria não pode ser comparada com a inquestionável instituição do gostar masculino. Diva pop é produto de massa fajuto, futebol é aspecto sócio-político fundamental. Mais uma vez, validade para os que performam, ostracismo para os que se recusam. Ostracismo, no mínimo. Não posso esquecer que as punições são variadas, criativas, que recorrem a subterfúgios grotescos para manter a dinâmica quebrada.


A sexualidade, aqui, talvez seja o maior fator de poder e símbolo para a criatura homem. O ser viril que transa, goza e regozija sobre o falo e sobre o ato. O homem precisa ser macho, “comer quantas puder”, com o perdão da expressão. Se o homem não come, se não se empapuça, então o homem é fraco. O teste primordial para a masculinidade que move o mundo é o domar pelo sexo. Às vezes, como bem sabemos, nem consentimento é necessário. O ato que coloca o homem no topo, que ensina aos desavisados quem tem o real poder. Me recordo de casos e mais casos que ilustram isso. Na verdade, poderia ficar escrevendo por mais duas horas. Prefiro não o fazer, já que o assunto merece muito mais espaço do apenas parágrafos dentro de um texto e, acima de tudo, já é bem conhecido por todos, embora mais ou menos falado a depender de qual lado você está: os homens felizardos ou o resto subjugado. 


O amar fica para depois. Ou melhor, para quem não é homem. Amar só aos semelhantes, os que passaram no teste da vida, que separam esses felizardos dos infelizes desonrados com a vergonha de não serem homens de fato. Fora do meio, no sigilo. O certo é performar para garantir o bom andamento do mundo. Vamos prover, homens. Vamos conquistar, dominar e gozar. Vamos ser, embora, no fundo, saibamos que nunca iremos, de fato, ser. Homem ou gente. 


A ideia supera o feito. A busca inalcançável pelo ser masculino, pelo fetiche da coisa, pela satisfação de ocupar o topo move o mundo fajuto em que vivemos. Nesse meio tempo, putas e bichas que se fodam. Sumam da frente ou serão massacrados. Se submetam ou sofrerão as consequências. Vamos nos travestir de nossa melhor performance, colocar para jogo a picumã e a maquiagem que constrói o personagem ideal para o mundo dos homens. Guardar o medo embaixo de camadas e mais camadas, de aspectos históricos e sociais tão maiores que nós mas tão desimportantes que nem valem a pena ser lembrados. 


Mas nem tudo o que parece é. O homem é fraco, vulnerável. O homem perfoma com medo de encarar a verdade. O homem não questiona porque, no fim, sabe que não tem forças para encarar o tranco. Por isso o medo. Por isso a performance de encaixe ideal. Por isso continuar na dinâmica quebrada. A vulnerabilidade, o maior temor do bicho homem, dá o tom da coisa. Muito mais forte do que a idealização, do que a busca certeira pelo eu masculino. É do medo de ser fraco que se faz a vivência, desde que o mundo é mundo. 


É em meio a essa ciranda de rosa e azul, de homens, putas e bichas, de amores fracos e perfomances frageis, que fica o questionamento: você é homem o bastante para não o ser?

Texto: Arthur Quinello Revisão: Artur Santilli e André Rhinow Imagem de capa: John Frank Keith, The Library Company of Philadelphia

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