Coautora: Letícia Laurindo
Meu pé estava gelado. Muito, muito gelado. Já tinha passado frio durante a noite, esta cidade está cada vez mais insossa. E agora, perdi tudo. Não tenho mais nada. Não posso chorar, pois está tudo cheio de água. Se cair mais uma gota sou capaz de morrer afogado. Daria uma boa matéria, uma coisa meio sensacionalista.
JOVEM MORRE AFOGADO POR CHORAR NO MEIO DA ENCHENTE
Ninguém soube se o motivo foram as lágrimas ou a chuva
Depois de fortes chuvas de madrugada, o homem é acordado por um mar de água em sua casa. Ao ver tudo que perdeu, deixou cair uma lágrima e não conseguiu mais nadar. O enterro deve acontecer no cemitério municipal do bairro vizinho, pois as ruas de sua região se tornaram rios e afluentes.
Será que alguém leria esse texto? Alguém realmente se importaria com algo assim? Acho que não, essas coisas acontecem o tempo todo: ouvem-se os gritos, os pedidos e nada. Porém, isso pouco importa. Preciso resolver minhas coisas.
A primeira coisa que fiz foi tentar correr até o quarto de minha mãe. Ela já havia acordado, desde que papai faleceu ela não conseguiu mais dormir direito. Estava colocando em uma caixa seus pertences mais valiosos: um colar que minha avó usava, seu diploma da faculdade de Informática, seu livro do Milton Santos e uma foto de papai. Nos abraçamos rapidamente, ela me olhando com seus olhos profundos e chorosos. “Tudo de novo, filho. Tudo. De novo”. Saí do quarto e me pus a recolher as coisas. Peguei algumas panelas que havíamos comprado há pouco tempo, um saco de arroz, dois de feijão, três latas de ervilha e MEU DEUS O CATATAU! Saí meio correndo meio nadando para o meu quarto, abri o armário e ali estava ele! Graças a Deus. Tinha seu cantinho na prateleira mais alta pra quando estava assustado. Ele devia estar pior do que a gente. ou : do jeito que aquele gato odeia água, com certeza estava vivendo o seu pior pesadelo. Na verdade, pior que a gente ele não tava. Odeio água tanto quanto ele, mas não tenho sete vidas. Tenho só esta e devo dizer que não estava indo muito bem. Tínhamos acabado de construir aquela casa e agora teríamos que nos mudar de novo. Que maldição.
Não havia tempo para ficar divagando e lastimando. Terminei de juntar as coisas mais importantes, coloquei o Catatau numa bolsa, dei a mão pra minha mãe, tomei coragem e, com dificuldade, abri a porta. A rua estava um caos completo. O retrato mais fiel do desespero de quem perdeu tudo (de novo). Apertei a mão de mamãe com mais força, o que me rendeu um olhar repreensivo no meio da melancolia dos castanhos dela. Aquilo não podia ser real. Será que sou um personagem caricato? Será que somos? Aqueles que passam na televisão com os olhos marejados e o semblante de quem perdeu a batalha de hoje, mas não pode parar de lutar? Viver realmente é só lutar? Levantar de um golpe sem nunca ter abaixado a guarda para não ser surpreendida pelo próximo soco? Há vida após o golpe?
Minha cabeça se enche com mais pensamentos a cada passo que dou em direção ao abrigo. As pessoas observam, os olhares condenam. Enquanto elas visitam os parques, as lojas, os museus, eu vou em busca de um abrigo. Não tenho escolha. A cidade em que vivo se restringe ao abrigo, ao bom prato, a uma nova casa que se destruirá em poucos meses. Saudades de ir ao museu. Não que tenha ido muitas vezes. A São Paulo das maravilhas, da avenida Paulista e das oportunidades não existe para mim. Me contento com a periferia, a pobreza e a falta de perspectiva. Da música, só concordo com o fato de sangrar demais e chorar pra cachorro, porque Deus com certeza não é brasileiro e nem anda do meu lado. O brasileiro é miserável. Desperdiça voto e perde a casa em enchente. Sem (?) a casa, perde tudo. Perde a vida. O nome do programa não é “Minha casa, minha vida” à toa, quem não tem casa, não tem vida. E eu agora, não tenho mais vida.
Ando meio nadando com minha mãe pela rua. Fazemos o caminho que faço todo dia à noite, depois do trabalho, para ir à aula da faculdade. É uma caminhada infinita. Depois um ônibus, depois duas linhas do metrô. E depois mais uma caminhada que poderia ser curta, mas quando você fica horas espremido com um mar de gente, se torna outra caminhada infinita. Vejo em um poste um lambe lambe escrito “#VOTECIDADESJUSTAS”. Lembro da aula do dia anterior. Falávamos sobre direito à cidade. Não acho que a cidade é a solução de tudo. A cidade está errada em seu princípio. Ela não é igual, não representa uma concepção imutável e imponente para todos. A cidade é o grande instrumento da desigualdade. A materialização da lógica opressora que condenamos nos discursos, mas que vivemos todo dia. E a aumentamos todo dia também, afinal o setor imobiliário não é um dos mais fortes não à toa. Todos querem viver na cidade, pisar com os próprios pés nos buracos do asfalto, que em uma metáfora criada pela vida representam o abismo entre aqueles no centro e aqueles na periferia. Todos querem estar no centro — menos na praça da Sé — e gozar do que é a cidade ali.
Avisto o abrigo no final da rua. Avisto também a fila quilométrica que se forma em sua entrada. São tantas pessoas com tão pouco. Um senhor se sobressai da multidão por estar agarrado em uma televisão enorme. Deve ter batalhado muito para consegui-la. Todos ali lutaram e viram o fruto do seu esforço flutuar para longe ou afundar na míngua. A vida inteira escorrendo pelo ralo, se perdendo no bueiro. Mas o que é importante agora não é isso. Não é a escadaria enorme que é preciso subir, é o próximo degrau. A próxima noite dormida, a próxima refeição, o próximo dia de trabalho. Apenas a próxima pessoa da fila imensa do abrigo. Essa cidade é cruel demais com quem nasce no berço errado. Ou mesmo, não tem berço. Meus olhos se enchem de lágrimas. Não posso deixá-las cair, se não vou morrer afogado.
Autoria: Tiz Almeida (@tizschroeder) e Letícia Laurindo (@let.laurindo)
Revisão: Beatriz Nassar (@beanassar) João R. Colleoni
Imagem de capa: @bdgomes no Flickr
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