A expressão "acesso à justiça" é uma das primeiras que são ensinadas na faculdade de Direito e carrega uma complexidade às vezes menosprezada devido à fácil compreensão de seu significado, especialmente quando comparada com termos como "jurisprudência" ou "ex tunc". Então, de forma a explorar uma das facetas deste tema, esse texto irá abordar a história dos centros de assistência jurídica universitária na cidade de São Paulo e como estes atuam para promover esse acesso.
Primeiramente, é preciso compreender o que se entende por assistência jurídica. Tal termo foi incorporado pela Constituição de 1988 com o inciso LXXIV do artigo 5, que prevê que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos". Essa ideia de que a assistência jurídica deveria ser integral e gratuita reflete um avanço no escopo de tal conceito. Previamente, "assistência jurídica" contemplava apenas o pagamento das custas envolvidas em um processo, como explicitado no parágrafo 32 do art. 113 da Constituição de 1934: "A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais assegurando a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos.". Esta concepção, segundo o artigo "A assistência jurídica gratuita em núcleos de prática jurídica e a possibilidade de extensão de prerrogativas da Defensoria Pública", de Daniel Jacomelli Hudler, demonstra-se desatualizada "em face aos avanços na própria teoria de acesso à justiça, visto que não basta o patrocínio de causas judiciais para fazer valer o direito da parte: deve-se pensar o direito muito além do âmbito judicial."
Assim, percebe-se a constante evolução da concepção do acesso à justiça como teorizado por Galanter e expresso no artigo "Acesso à Justiça no Brasil: reflexões sobre escolhas políticas e a necessidade de construção de uma nova agenda de pesquisa", de Daniela Monteiro Gabbay, Susana Henriques da Costa e Maria Cecília Araujo Asperti: "Segundo Galanter (2010, p. 115-128), a premissa central do acesso à justiça é a de que a sua distribuição parte de escolhas políticas distributivas, necessárias diante do constante reconhecimento de novas injustiças e da dinamicidade das fronteiras entre justiça e injustiça.".
Ou seja, analisando as mudanças na terminologia usada nas constituições brasileiras, percebe-se, de acordo com Hudler, uma evolução na definição de assistência jurídica, em consonância com a expansão do que se considera acesso à justiça, como previsto por Galanter. Portanto, tem-se como assistência jurídica atualmente o fornecimento dos meios necessários para garantir o acesso à justiça, seja através de orientação, medidas extrajudiciais, ou processualmente.
Tendo tais conceitos consolidados, a assistência jurídica universitária consiste no fornecimento de atendimento jurídico gratuito à população hipossuficiente. É realizada por estudantes de Direito que são orientados por professores de suas respectivas faculdades e, em alguns casos, outros advogados. Tal atividade pode ser desenvolvida nos âmbitos de núcleos de prática jurídica, programas de extensão ou entidades estudantis.
Segundo o artigo "O papel das universidades e os núcleos de prática jurídica: o caso do Centro de Assistência Jurídica da Universidade Federal Fluminense Campus Macaé", de Ully Hashimoto Mayerhofer, "o atendimento jurídico gratuito é um exemplo de iniciativa das universidades, que buscam oferecer relevantes serviços gratuitamente à comunidade em que estão situadas". Portanto, percebe-se que, para além dos benefícios para o aprendizado dos estudantes de tais organizações, os centros de assistência judiciária universitária contribuem para a ampliação do acesso à justiça na região, como também destacado nesse mesmo artigo: "A literatura pesquisada sobre os núcleos de prática jurídica trata principalmente de sua função pedagógica aos alunos da graduação, mas também como recurso de universalização do acesso à justiça no que se refere à assistência jurídica integral e gratuita à população hipossuficiente."
Então, com base na caracterização das assistências jurídicas universitárias feita por Mayerhofer, percebe-se que estas atuam de forma a ampliar o acesso à justiça da população, atuando neste âmbito, por vezes, antes do próprio Estado.
Por exemplo: em 1920, com a Lei estadual nº 1.723, nasce formalmente a assistência judiciária à população hipossuficiente no Estado de São Paulo, determinando que as pessoas desprovidas de meios pecuniários tenham direito à isenção do pagamento de custas e à designação de um patrono ex officio. Mas, antes disso, em 1919, estudantes de Direito já haviam se organizado para promover o acesso à justiça, fundando a Assistência Judiciária Acadêmica da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, que foi a primeira entidade paulista a prestar assistência judiciária aos menos favorecidos, atualmente conhecida como Departamento Jurídico XI de Agosto.
Em 1950, mais de 30 anos após a criação desta entidade, foi promulgada a Lei federal nº 1060/50 (subsequentemente revogada pelo CPC de 2015), que estabelecia normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados, incluindo a isenção do pagamento de custas e dos honorários advocatícios. No entanto, a formalização de uma instituição específica que garantisse a prestação do serviço de orientação jurídica de forma gratuita só viria a ocorrer com a Constituição de 1988, cujo art. 24, inciso XIII, determina que: "Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...] assistência jurídica e Defensoria Pública". Posteriormente, em 1994, foi promulgada ainda a Lei Complementar nº 80/94, a qual organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados. Já em 2014, com a Emenda Constitucional nº 80, foi estruturada a seção IV da Constituição, referente às normas que regulam a Defensoria Pública.
Porém, previamente a tais avanços no acesso à justiça promovidos pela Constituição de 1988, estudantes da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo já haviam fundado outros dois centros de assistência jurídica na cidade de São Paulo: respectivamente, Assistência Judiciária João Mendes, em 1959, e a Assistência Judiciária 22 de Agosto, em 1966.
Embora a Constituição de 1988 já houvesse regulamentado as Defensorias Públicas e criado a Defensoria Pública da União, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo foi fundada apenas em 2006. A principal diferença entre a Defensoria Pública da União e as Defensorias dos Estados é a competência de cada uma delas. Enquanto a Defensoria Pública da União atua em processos que tramitam na Justiça Federal, as Defensorias dos Estados atuam na Justiça Estadual. Mesmo que a criação de uma defensoria estadual represente um avanço significativo para o acesso à justiça no Estado de São Paulo, tal órgão ainda opera com um déficit de funcionários, não tendo capacidade de atender a todos que o necessitam. Segundo o Ministério da Justiça, deveria haver uma proporção de um defensor público para cada 15 mil habitantes, portanto, o Estado de São Paulo deveria contar com 2099 membros. Atualmente, há apenas 750.
A partir dessa deficiência, percebe-se que, mesmo com a Defensoria Pública estadual, o trabalho dos centros de assistência jurídica universitária continua sendo essencial para a promoção do acesso à justiça. Refletindo tal necessidade, a Assistência Judiciária João Mendes, por exemplo, possui convênio com a Defensoria Pública para recebimento e atendimento gratuito da população.
Portanto, a existência de Defensorias Públicas não tornou os centros de assistência universitária redundantes ou dispensáveis, o que pode ser notado pela contínua atuação destes e, inclusive, pela criação de uma nova entidade, o Centro de Assistência Jurídica Saracura (CAJU), fundado por estudantes de Direito da Fundação Getúlio Vargas em 2019 e atuante, principalmente, na região do Bixiga e da Bela Vista. Ademais, em 2021, as quatro organizações aqui mencionadas uniram-se para formar a Liga Nacional das Assistências Jurídicas Universitárias, com o objetivo de "ampliar o acesso à justiça para as pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica no Brasil", como explicitado em sua carta-manifesto de fundação.
Percebe-se que a concepção de acesso à justiça baseia-se em uma constante expansão, sendo as universidades, muitas vezes, vanguardistas neste sentido. Buscando garantir um direito básico do cidadão brasileiro previsto pelo art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, e ampliar cada vez mais o acesso das populações carentes ao Poder Judiciário, os centros de assistência jurídica universitária atuam de forma a suprir lacunas do Estado — o que demonstra o caráter fundamental de sua existência.
Autoria: Centro de Assistência Jurídica Saracura (CAJU)
Revisão: Artur Santili
Imagem de capa: Canva
Referências:
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA JOÃO MENDES. História. Disponível em: https://ajjoaomendes.com/historia/. Acesso em: 5 abr. 2023.
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BARBOSA, Augusto. Um novo olhar sobre a Defensoria Pública de São Paulo. Associação Paulista das Defensoras e Defensores Públicos, São Paulo, Disponível em: https://apadep.org.br/2019/01/08/um-novo-olhar-sobre-a-defensoria-publica-de-sao-paulo/. Acesso em: 05 abr. 2023
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 1934 .
BRASIL. Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, com redação dada pela Lei. 7.871, de 8 de novembro de 1989.
BRASIL. Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, com redação dada pela Lei Complementar 132, de 2009.
CENTRO ACADÊMICO 22 DE AGOSTO. Relançamento da Assistência Judiciária da PUC-SP / Centro Acadêmico 22 de Agosto. Disponível em: https://www.pucsp.br/sites/default/files/download/graduacao/cursos/direito/eventos/direito-Relancamento-da-Assistencia-Judiciaria-da-PUC-SP_Centro-Academico-22-de-Agosto.pdf. Acesso em: 8 abr. 2023.
DEPARTAMENTO JURÍDICO XI DE AGOSTO. Nossa História. Disponível em: https://www.djxideagosto.org/nossa-historia. Acesso em: 6 abr. 2023.
GABBAY, Daniela Monteiro; COSTA, Susana Henriques da; ASPERTI, Maria Cecília Araujo. Acesso à justiça no Brasil: reflexões sobre escolhas políticas e a necessidade de construção de uma nova agenda de pesquisa. RBSD – Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 6, n. 3, p. 152-181, set./dez. 2019.
HUDLER, Daniel Jacomelli. A assistência jurídica gratuita em núcleos de prática jurídica e a possibilidade de extensão de prerrogativas da Defensoria Pública. Jusbrasil, 2015. Disponível em: https://djhudi.jusbrasil.com.br/artigos/220557557/a-assistencia-juridica-gratuita-em-nucleos-de-pratica-juridica-e-a-possibilidade-de-extensao-de-prerrogativas-da-defensoria-publica. Acesso em: 9 abr. 2023.
LIGA Nacional das Assistências Jurídicas Universitárias é criada. Migalhas, São Paulo, 12 fev. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/340251/liga-nacional-das-assistencias-juridicas-universitarias-e-criada. Acesso em: 06 abr. 2023.
MAYERHOFER, Ully Hashimoto. O papel das universidades e os núcleos de prática jurídica: o caso do Centro de Assistência Jurídica da Universidade Federal Fluminense Campus Macaé. Revista Estudos de Administração e Sociedade, Macaé, v. 5, n. 1, p. 108-117, 2020. Disponível em: http://www.revistaeas.uff.br/. Acesso em: 07 abr. 2023.
SÃO PAULO. Lei nº 1.763, de 29 de dezembro de 1920. . São Paulo, Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1920/lei-1763-29.12.1920.html. Acesso em: 08 abr. 2023
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