1. RETRATO MARCADO DE SANGUE
Certa vez, em entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto, o ex-presidente Fernando Collor declarou: “Que fique registrado por aqueles que escrevem a História. Porque eu faço a História, vocês escrevem a História”. É uma frase bem reveladora e que, em toda sua vanglória, típica do ex-presidente, carrega uma série de significados implícitos: a oposição entre escrever a história e fazer a história, o papel do jornalismo e da historiografia ao contar os fatos históricos e, acima de tudo, o questionamento sobre o que seria essa História à qual Collor se refere com letras maiúsculas e como ela impacta as vidas de nós, que não somos nem jornalistas, nem ex-presidentes.
O nosso primeiro contato com a história é na escola. Livros didáticos, apostilas, professores, todos eles contam os acontecimentos importantes do nosso passado. No caso do Brasil, começa-se a estudar o período pré-colonial, a chegada dos portugueses, e lá se vão mais de 500 anos até que se chegue nos dias de hoje. Alguns irão adorar estudar história e outros irão detestar, mas esse processo, muitas vezes, é acompanhado por um sentimento de alienação, em que é comum não conseguirmos nos sentir parte da história discutida, encarando todos esses processos como algo que está preso ao passado, em um livro. Sabemos quais são os acontecimentos importantes da história brasileira, mas, como sociedade, temos problemas para entender de que forma esse passado ecoa em nossa atualidade. É inevitável que os diagnósticos dos problemas que vivenciamos hoje fracassem, posto que falhamos como nação em analisar criticamente o nosso passado.
Todos nós somos frutos de processos históricos, mesmo que não diretamente. Por extensão, somos sujeitos históricos: todas as características de nossa existência – como local de nascimento, cor de pele e religião – contam um pedacinho de uma história compartilhada pelos brasileiros. Todavia, é notável como algumas figuras brasileiras funcionam quase como uma personificação de elementos de nosso passado, presente e futuro. O próprio Fernando Collor é um exemplo disso, dada sua trajetória política de ascensão e queda, recheada de corrupção, traições e fracassos. Porém, poucas pessoas representam melhor o nosso país que o atual presidente da República: Jair Bolsonaro.
Essa é uma ideia interessante, especialmente, quando posta em oposição à outra visão, que afirma que a figura de Bolsonaro seria uma anomalia na história brasileira. Levantada frequentemente nos dias que sucederam a eleição de Bolsonaro, essa noção continua presente no imaginário político brasileiro. Em entrevista recente ao podcast Podpah, o ex-presidente Lula afirmou que "o Bolsonaro é uma anomalia política no Brasil. O povo brasileiro, pelas lutas que já fez, não merecia essa figura grotesca". Lula e os defensores dessa tese, justiça seja feita, têm um ponto: é injusto com um país que seu representante máximo não só seja terrivelmente incompetente, sórdido e perverso, como também possua desdém declarado ao seu povo. Mas é, justamente, por ser sórdido e perverso que Bolsonaro é uma representação perfeita da nossa trajetória histórica, marcada por um fator essencial para entender o Brasil: a violência.
2. A TUA PISCINA TÁ CHEIA DE RATOS
O Brasil é um país violento. Nosso nascimento historiográfico como nação é uma invasão: em 1500, os portugueses chegaram à Bahia e, a partir de 1534, iniciaram a colonização do nosso país, que durou até 1822. Durante esses quatro séculos, o Império Colonial Português explorou predatoriamente os nossos recursos, promoveu o genocídio dos povos indígenas, suprimiu as liberdades religiosas e instaurou o maior regime escravocrata das Américas a partir do tráfico transatlântico de pessoas negras de origem africana, que eram vendidas como mercadoria para trabalhar no ciclo canavieiro – ao longo de mais três séculos, cerca de 4,8 milhões de africanos foram trazidos forçadamente ao Brasil. A escravidão brasileira, que durou até 1888, fundamentava-se em inúmeros atos de brutalidade contra os negros escravizados por parte dos donos de escravos, como castigos físicos, abusos morais e psíquicos, estupros contra as mulheres e assassinatos.
Em 1822, o Brasil se tornou independente e virou um Império, condição que durou até 1889. A escravidão permanecia como regime de trabalho vigente, e as violações contra a população negra continuavam. Com o desenvolvimento das identidades regionais de cada província, muitas revoltaram-se contra o governo central, promovendo rebeliões como a Cabanagem, a Sabinada e a Guerra dos Farrapos. Todos esses movimentos foram reprimidos violentamente pelas forças governamentais, que começaram a se organizar a partir de uma lógica em que a violência deveria ser a resposta imediata às insatisfações populares. O período imperial brasileiro também foi marcado pela Guerra do Paraguai, um conflito armado travado por uma aliança entre Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai, em uma guerra em que o nosso vizinho foi dizimado, tendo cerca de 90% de sua população masculina morta em conflito. A Guerra do Paraguai também representou uma mudança de status para o Exército Brasileiro que, devido à vitória, passou a ser uma força política e social de relevância.
Não à toa, a transição do Império para a República, em 1889 – um golpe militar –, foi organizada pelas Forças Armadas, lideradas por Marechal Deodoro da Fonseca, que se tornou o primeiro presidente do Brasil. A presidência de Deodoro e a de seu sucessor, Floriano Peixoto, ficaram conhecidas como "República da Espada", o que atestava o poder dos militares naquele momento. Floriano, em especial, foi apelidado de "Marechal de Ferro", devido à repressão violenta aos movimentos que eclodiram durante o seu governo, como a Revolução Federalista e a Segunda Revolta da Armada.
Os militares se afastaram do poder em 1894, dando espaço às oligarquias regionais que comandaram a Primeira República até 1930. Se antes tínhamos a mentalidade bélica militar – forjada não só nos campos de batalha do Cone Sul, mas também reprimindo revoltas populares em seu próprio território –, a ascensão das oligarquias regionais ao poder continuou esse legado de sangue, possibilitando que o Estado brasileiro institucionalizasse a violência como método organizador de sua estrutura.
Mesmo com o fim da escravidão, o dispositivo racista do Estado permaneceu. A total ausência de amparo econômico aos negros recém-libertos da escravidão já indicava o mecanismo estatal perverso frente a essa questão, e a organização do movimento eugênico brasileiro só sacramentou isso. Inspirado nos ideais racistas e pseudo-científicos que se difundiam na Europa, o Brasil criou uma lógica própria de eugenia em que todos aqueles que não fossem brancos eram considerados inferiores. Era "desejável" embranquecer o Brasil. Essa lógica eugênica que pretendia a concepção de uma nação branca não se restringiu apenas às pessoas – ela se estendeu às cidades e à cultura – e encontra apoiadores até a atualidade.
A violência racista do período mostra-se presente em eventos como a Revolta da Chibata, de 1910, em que marinheiros negros se revoltaram contra os castigos físicos recorrentemente aplicados contra eles. A Primeira República também é representativa de uma outra grande tragédia brasileira: a desigualdade social. Enquanto o ciclo do café estava a todo vapor e as oligarquias regionais – principalmente a paulista e a mineira – enriqueciam, o grosso da população brasileira, que crescia cada vez mais, vivia em miséria. Mesmo que não fosse a causa direta desses enfrentamentos, a desigualdade social é essencial para entender os conflitos do período, sejam eles guerras – como a de Canudos e a do Contestado – ou fenômenos sociais de violência que afloraram nos confins brasileiros, como o cangaço.
Em 1930, outro golpe de Estado acabou com a Primeira República e deu início à Era Vargas. Getúlio Vargas ficou no poder até 1945, o que é fundamental para entender as contradições da história brasileira: se foi sob o seu comando que o Brasil realmente buscou consolidar um projeto de nação – concorde ou não com ele – também foi sob Vargas que o país enfrentou uma ditadura de 1937 até 1945. Sem revisionismo histórico: o Estado Novo foi uma ditadura e, durante esse período, Getúlio Vargas foi um ditador. O governo de Vargas estabeleceu a censura à imprensa, fechou partidos políticos e perseguiu opositores, como Olga Benário, uma judia e militante comunista que foi deportada à Alemanha nazista, onde foi assassinada em um dos campos de concentração instituídos por Adolf Hitler.
Era um país subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido…
O Estado Novo acabou, assim como a Segunda Guerra Mundial, e, aos trancos e barrancos, o Brasil tentava se organizar como uma nação democrática no chamado Período Populista. Mas a Guerra Fria pairava no ar, e em 1964, com suporte bélico e político dos Estados Unidos, as Forças Armadas depuseram o presidente João Goulart em um golpe cívico-militar que deu início a 21 anos de ditadura. Novamente, os militares estavam no poder e atuavam a partir de uma engrenagem autoritária para reprimir seus opositores, que foram mortos, torturados e exilados. O genocídio dos povos indígenas continuou, a violência no campo explodiu, assim como a desigualdade social. A ditadura militar terminou em 1985, com um rastro de sangue: de acordo com a Comissão Nacional da Verdade, foram 434 pessoas mortas e desaparecidas neste período.
Somos uma nação concebida em uma vala de mortos – até hoje –, e a nossa história é um conto de fantasmas. Fantasmas esses nunca expurgados, que nos rondam em cada esquina, em cada viela, em cada avenida e que geram um mal-estar muito grande, que nos incomoda diariamente, que não sabemos de onde vem, mas está lá, escorrendo pelas cidades, seja em erupções, seja em discretas perfurações. A violência dos porões da ditadura, da Guerra do Paraguai e das casas de engenho é a mesma das polícias militares quando sobem os morros e das mortes de ambientalistas e indígenas no campo por proprietários de terras. O fim da ditadura militar marcou o início do período da redemocratização, mas esse passado sangrento ainda volta para nos amaldiçoar.
3. HOJE É SEMPRE ONTEM
"Uma causa, um efeito, uma alegria, um arrependimento/
A violência é a vida diária/
Uma promessa, um pacto que o mundo nunca cumpriu/
A violência é a vida diária."
O excerto acima, retirado da música "Violence", da banda estadunidense Parquet Courts, refere-se à sociedade norte-americana, mas também descreve perfeitamente como a violência se manifesta na brasileira. No primeiro semestre de 2021, 666 mulheres foram assassinadas, o que equivale a 4 mulheres mortas por dia. Na mesma série temporal, foram registrados 26.709 casos de estupro no Brasil, um aumento de 8,3% comparado ao primeiro semestre de 2020. De acordo com o Atlas da Violência de 2021, referente ao ano de 2019, pessoas negras representaram 77% das mortes por homicídio no Brasil, e dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais relatam que 140 pessoas trans foram assassinadas em 2021, das quais 81% eram negras e 96% eram mulheres trans ou travestis.
Esses dados dão uma dimensão factual das principais vítimas de violência no Brasil: mulheres, negros e pessoas LGBT+. Casos específicos também nos ajudam a entender como a barbárie é o fundamento da nação: no último 24 de janeiro, um jovem congolês foi morto em um quiosque onde trabalhava na Barra da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro. Moïse Mugenyi Kabagambe tinha 25 anos e foi espancado por cinco pessoas durante mais de 15 minutos. O assassinato de Moïse, assim como outros casos, nos conta a tragédia de um país em que a brutalidade não é um instinto primitivo humano, mas um pacto com anuência da sociedade, Estado, imprensa e polícia para que atos generalizados de violência, notadamente contra grupos marginalizados, possam ocorrer, normalmente, em espaços públicos.
No mesmo veículo de onde a notícia sobre Moïse Kabagambe foi retirada, todas as notícias entre as 5 mais lidas do dia tinham atos violentos como assunto central: duas delas eram sobre o assassinato do jovem, uma relatava um tiroteio, uma outra contabilizava tentativas de linchamentos de suspeitos de roubos e furtos e a última era sobre um militar preso por matar um idoso. A eterna transmissão de notícias sobre crimes pelas nossas TVs, rádios e jornais cria um círculo vicioso de ódio e barbárie, no qual somos incapazes de atacar a real causa desses problemas, e então vivemos em um constante estado de medo, paranoia e anseio por mais violência.
Existe um motivo pelo qual programas policiais como o Cidade Alerta e o Brasil Urgente fazem tanto sucesso no Brasil: além do evidente motivo de que alguém está lucrando em noticiar incansavelmente atos criminosos de brutalidade sem nenhum compromisso ético e jornalístico, a violência é banalizada no Brasil. É parte do nosso passado, é parte do nosso presente e, se não fizermos nada, será parte também do nosso futuro. Estamos tão acostumados com a violência que escutar relatos de assaltos não é mais uma surpresa, e sim parte do nosso cotidiano. A familiarização do brasileiro com roubos e furtos no nosso dia a dia é tão grande que existe uma série de códigos não ditos de como se portar para evitar assaltos: não ande em tal rua, use um celular antigo, evite tal linha de ônibus. Assaltos, mortes, furtos, latrocínios, milícias, gangues, facções. Tudo isso é tão normal. Tão normal que programas policiais são parte inquestionável da grade vespertina nas emissoras brasileiras, mesmo com suas temáticas tão brutais.
Assim, se constitui todo um subconsciente coletivo concebido de acordo com esse registro, que não só afeta nossas próprias percepções sobre o nosso país, como cria uma imagem que vira produto de exportação, a qual também entra no imaginário estrangeiro. Além do samba e da caipirinha, o Brasil é famoso na internet por ser um país violento: é um estereótipo prevalente entre os estrangeiros que o nosso país é uma terra sem lei, um lugar onde o turista que ali visita tem que ficar atento para não ser esfaqueado a cada esquina. Obviamente, essa pré-concepção é falsa, mas é alimentada pelos inúmeros vídeos de atos violentos que se passam no Brasil. No LiveLeak, um extinto site especializado em vídeos mórbidos, o Brasil era um dos países com mais vídeos. Mesmo em sites que operam mais próximos da legalidade, vídeos dessa espécie eram comuns. No Reddit, um fórum com inúmeras subcomunidades, era popular uma finada comunidade conhecida como r/WatchPeopleDie que, como o nome indica, foi organizada para o compartilhamento de vídeos de pessoas morrendo. Nesse subereddit (o nome pelo qual as comunidades dentro do Reddit são conhecidas), também eram recorrentes vídeos que se passavam no Brasil, identificados pelos usuários com uma tag com o nome do nosso país.
Assim, acaba-se por entrar em um círculo vicioso: com base em alguns filmes e vídeos vistos na internet, os estrangeiros automaticamente supõem que o Brasil é o quinto dos infernos, só que na Terra. E nós compramos essa ideia, também com base nas representações da violência infinita que temos aqui – como o já citado Cidade Alerta –, o que eventualmente nos faz cair no limbo de um cinismo determinista. "O Brasil é um lixo, é um inferno, não temos como mudar isso, etc", dizemos, sem que avaliemos seriamente quais são as causas da nossa violência, ao mesmo tempo que podemos compreender que a violência não é a única faceta do nosso país e que existem muitos outros elementos positivos da nossa sociedade que não estão incluídos nessa fabulação reducionista sobre o nosso país.
Sendo a violência por definição um método, ela é mais sintoma de uma escala maior de problemas do que uma finalidade em si mesma. À vista disso, nosso histórico violento é totalmente entrelaçado com a desigualdade social presente na sociedade brasileira. Em outras palavras, a nossa violência é também de ordem material: existe uma brutalidade inerente à desigualdade social, na simples constatação de que milhões de brasileiros não têm acesso a saneamento básico, por exemplo. Atos diários de violência nunca são arbitrários, e quase sempre são informados por estruturas sociais que, no nosso caso, figuram entre as mais desiguais do mundo.
A história de violência no Brasil e sua banalização no presente caminham lado a lado e é exatamente devido a esse ethos unicamente brasileiro que é impossível negar quão representativo do nosso país é Jair Bolsonaro, personificação perfeita desse ethos. O nosso atual presidente ficou famoso quando ainda era um deputado de terceiro escalão, ao perceber que não só existia uma audiência que concordava com seus comentários criminosos contra negros, mulheres e pessoas LGBT+, como também havia uma série de programas televisivos – como o CQC e o Superpop – que, a troco de audiência, estavam dispostos a dar espaço aos comentários discriminatórios do então deputado. Ou seja, à medida que seus comentários cresciam em violência e perversidade, sua figura se tornava cada vez mais banal, pois ele ganhava mais espaço midiático, ainda sendo taxado apenas como "um deputado insano", sem que nunca fosse responsabilizado de alguma maneira por suas falas. Seus trejeitos também vendem perfeitamente a sua casualidade do mal: por mais que às vezes se mostre mais raivoso, na maioria do tempo, Bolsonaro se comporta como um "tiozão inconsequente", falando as maiores barbaridades de um jeito relaxado e descontraído, como se estivesse em um churrasco de família. Assim, gera identificação com uma parcela da população, ao mesmo tempo que é visto como inofensivo, para muitos outros.
Além do fator de identificação de suas visões banalmente violentas, sua ascensão política pode ser explicada por vários outros. Um deles é seu diálogo certeiro com um imaginário coletivo brasileiro de insegurança e misantropia. Em um país onde é comum que as taxas de homicídios cheguem à casa dos 60.000 por ano, cria-se uma desconfiança não apenas em relação às instituições responsáveis por esses números, mas também por nossos pares, os outros habitantes desta terra maldita. Ao mesmo tempo que se vive em paranóia sobre as ameaças da vida diária, a violência é generalizada tanto como legado histórico quanto como axioma do tempo presente. Dessa forma, além da indiferença, que se torna uma reação possível, a misantropia, o ódio pela vida humana e o desprezo ganham espaço.
Assim, em 2018, seu sucesso eleitoral funcionou como produto natural das angústias, medos e fúrias de um povo marcado pela violência. Sua plataforma para a segurança pública, na qual berrava que "bandido bom é bandido morto" e defendia o amplo armamento da população, era uma aberração de um ponto de vista técnico, mas ecoava perfeitamente em um país onde a violência é uma doença nefasta, que corre no nosso sangue, tão onipresente em nosso cotidiano que a banalizamos.
Seu discurso sociopata não reverbera apenas naqueles que vivem em medo e insegurança, mas também naqueles que promovem violência. Não será toda pessoa violenta partidária de sua plataforma e é, obviamente, equivocado chegar a essa conclusão em um país onde a violência é tão enraizada, mas é notável como sua retórica violenta ecoa desde esferas civis com características específicas – a exemplo de homens que, assim como ele, são forjados em uma misoginia ancestral e entendem que isso é o que lhes torna “homens de verdade” – até grupos criminosos mais organizados, feito milicianos, grileiros e células neonazistas.
Mais do que ódio às populações marginalizadas ou desprezo pela vida humana, Bolsonaro sente um prazer único pela morte. Em um ensaio sobre a resposta do governo Bolsonaro à pandemia do COVID-19, João Moreira Salles é preciso: "Bolsonaro não se comove com a natureza, a arte lhe é estranha, a religião não passa de um adereço político, a ciência o ofende. Até o luxo parece deixá-lo indiferente. A violência, não. É quando fala nela que parece mais vivo e potente." Como indicado no mesmo texto, sua conduta perante a pandemia – desde sua recusa a declarar lockdown nacional até sua demora para comprar as vacinas – demonstra incompetência e descaso, mas, acima de tudo, indiferença e regozijo pela morte alheia.
Bolsonaro é a herança perfeita de uma história de violência. Assumi-lo como "aberração", "anomalia" ou "monstro" e tomá-lo como ponto fora da curva no Executivo é ignorar que sua figura personifica mais de 500 anos de uma biografia marcada de sangue, quando, na verdade, ela dá continuidade a um legado brasileiro de milicos, coronéis e milicianos no poder. Simultaneamente, porém, toda a iconografia de sua pessoa configura um paradoxo: ao mesmo tempo que ele representa perfeitamente o Brasil, ele odeia tudo de admirável no nosso país, tudo que nos deixa orgulhosos de sermos brasileiros.
4. NÓS, E OS MORTOS
Quando João Gilberto faleceu, em 6 de julho de 2019, Jair Bolsonaro não prestou condolências oficiais. Em maio do ano seguinte, quando Aldir Blanc morreu, Bolsonaro também não se solidarizou. E, em janeiro de 2022, quando Elza Soares faleceu, nenhuma palavra foi vocalizada pelo presidente. Uma das poucas ocasiões em que Bolsonaro se solidarizou pela morte de um artista foi quando o cantor Tales Volpi cometeu suicídio. Conhecido como MC Reaça, o funkeiro era apoiador de Bolsonaro e, antes de se suicidar, agrediu sua esposa. Não é novidade seu total desprezo pela cultura nacional, logo, também não é surpresa que a única morte de um artista que o comove é de um semelhante que o apoiava. Pode parecer um detalhe sutil, mas não deixa de ser irônico que o mesmo país do qual é o fruto perfeito, também é o país no qual é um completo estrangeiro, em que os mesmos 500 anos são exóticos para ele, o que se converte em profundo ressentimento.
De fato, sua figura alude à tragédia tipicamente brasileira do casamento entre o arcaico e o moderno – o que se reflete nas inúmeras tentativas de se vender como "inovador", sob a égide de uma suposta racionalidade econômica, um governo de jagunços. E no meio da sobreposição entre um passado vultoso que perdura, e um futuro prometido que nunca alcançamos, temos os brasileiros. Um povo que luta contra sua terra maldita e encontra nas comemorações e nas artes uma maneira não somente de criticar a realidade de violência e de desigualdade que vive, mas também de autoafirmação, para provar que existe uma nação pulsando por vida fora dos donos de engenho, dos torturadores e dos milicianos.
Além desse papel de oposição, a arte e a cultura brasileiras despertam indiferença e ódio em Bolsonaro por sua diversidade. Sua rudimentar concepção de mundo acredita que apenas iguais a ele (homens, brancos e heterossexuais) importam, com todos os outros grupos sociais devendo ser subordinados aos mandos e desmandos destes e, portanto, é apenas sua história que vale ser contada, à sua maneira. Nossa diversidade de religiões, ascendências e origens lhe causa asco e ódio. Um caleidoscópio de sabores, cheiros, sons, cores, climas e sotaques que lhe é totalmente estranho, pois a única coisa que o comove é a violência. Bolsonaro enxerga diversidade, democracia e pluralismo com ódio, visto que dentro de si só existe uma perversidade historicamente forjada.
Por consequência, não é surpresa constatar que o grande projeto de seu governo é destruir todas as conquistas, vitórias e expressões da nossa vida comum que nos deixam orgulhosos de nosso país. Nada escapa de sua sanha destrutiva: conquistas políticas (a Constituição de 1988 e o SUS), patrimônios naturais (a Amazônia e o Pantanal), instituições de Estado (o Ibama, a Funai e a Fundação Cultural Palmares) e entidades culturais (a Cinemateca, o Iphan e a Biblioteca Nacional). Seu único impulso é destruir o que nós possuímos de bom nessa terra meio sagrada, meio maldita, e promover a manutenção das nossas piores particularidades.
Sua existência é um paradoxo, é a tese e antítese (e, portanto, a síntese) dos mais de 500 anos de um povo. A iconografia que circunda sua pessoa é tão extrema e tão representativa das nossas contradições que se pode até afirmar que seu período na presidência funciona como um estágio final da história brasileira: ou esse momento representa um profundo ponto de inflexão coletivo sobre como nossa história reverbera em nosso presente e qual é o rumo que estamos tomando como nação, ou estamos fadados ao eterno fracasso civilizatório.
Quaisquer que forem as frentes de ação a serem tomadas contra sua pessoa e seu governo, seja eleitoralmente ou em um sentido cultural e social mais amplo, essas devem se atentar em se compor como diametralmente opostas ao que ele representa. Não é suficiente contestar e condenar a figura de Bolsonaro, é fundamental se mostrar 100% contrária a ela e apresentar uma alternativa efetivamente construtiva quanto às questões brasileiras, uma nova estratégia que lide com nossos problemas de maneira responsável e rigorosa. Também é essencial levar em consideração que, se quisermos superar nossas ruínas como sociedade, torna-se de extrema importância endereçar coletivamente nosso passado e presente sangrento, punindo criminalmente os culpados pela nossa destruição ambiental, econômica, social e política, e construindo uma memória coletiva sobre esse legado sangrento, com homenagens, museus e educação histórica. Por fim, é urgente transformar as condições materiais, políticas e sociais do presente que constituem as tragédias brasileiras, como a desigualdade e a violência, para nos livrar do nosso passado maldito.
Não é uma tarefa fácil reconstruir um país cujo maior legado histórico é um mal que contamina nossas vidas e que encontra no atual presidente a sua máxima personificação. Estamos cansados, com medo, revoltados, assustados, irritados. Por mais habituados que estejamos com as barbaridades do nosso cotidiano, é difícil se acostumar com a violência. Não é aceitável um jovem negro ser espancado por 15 minutos, não é tolerável uma operação policial invadir um bairro e matar 28 moradores, não é admissível que o presidente do Brasil homenageie um torturador em rede nacional. Se quisermos deixar de ser o país do intolerável, o país do ódio, para que então possamos nos identificar com tudo de ilustre e admirável que somos capazes, devemos olhar para a nossa história e, finalmente, conhecê-la e entendê-la, para que ela não se repita.
Autor: João Pedro Fernandes
Revisão: Beatriz Nassar, Bruna Ballestero e Glendha Visani
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Referências:
Foto de capa/Imagem 1: Matilde Missioneiro / Reprodução: Folhapress
Imagem 2: Revista das tropas destinadas a Montevidéu, na Praia Grande, Jean-Baptiste Debret (1816) / Reprodução: Google Arts & Culture
Imagem 3: Cabra Marcado para Morrer (1984), dir. Eduardo Coutinho / Reprodução: acervo pessoal
Imagem 4: Autor desconhecido / Reprodução: Brasil de Fato
Imagem 5: Vista do Convento de Santa Teresa Tomada do Alto de Paula Matos, Henri Nicolas Vinet (1863) / Reprodução: Google Arts & Culture
¹Atlas da Violência. Atlas da Violência 2021. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf. Acesso em: 22/04/2022
²MARTINS, Thays. Brasil registra queda em mortes de trans, mas continua com a maior taxa do mundo: Relatório divulgado na véspera do Dia Nacional da Visibilidade Trans aponta que 140 pessoas trans foram assassinadas em 2021; a mais nova delas tinha apenas 13 anos. Correio Braziliense, 2022. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/01/4980884-brasil-registra-queda-em-mortes-de-trans-mas-continua-com-a-maior-taxa-do-mundo.html. Acesso em: 22/04/2022
³DEMORI, Leandro. PESQUISADORA ENCONTRA CARTA DE BOLSONARO PUBLICADA EM SITES NEONAZISTAS EM 2004: A antropóloga Adriana Dias é uma das maiores autoridades em neonazismo no Brasil. Carta e banner que levava a site de Bolsonaro reforçam ideia de que a base bolsonarista é neonazista. The Intercept Brasil, 2021. Disponível em: https://theintercept.com/2021/07/28/carta-bolsonaro-neonazismo/. Acesso em: 22/04/2022
⁴MOREIRA SALLES, João. A MORTE E A MORTE: Jair Bolsonaro entre o gozo e o tédio. revista piauí, 2020. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-morte-no-governo-bolsonaro/. Acesso em: 22/04/2022
⁵Genius. Violence – Parquet Courts. Genius, 2018. Disponível em: https://genius.com/14926971?. Acesso em: 22/04/2022
⁶ HAIDAR, Diego, et al. Operação no Jacarezinho deixa 28 mortos, provoca intenso tiroteio e tem fuga de bandidos: A polícia diz que 27 mortos são suspeitos, mas não deu detalhes sobre quem eles são e o que faziam ao serem baleados. A 28ª vítima é o policial civil André Frias, atingido na cabeça. G1, 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/05/06/tiroteio-deixa-feridos-no-jacarezinho.ghtml. Acesso em: 22/04/2022
⁷O Globo. Bolsonaro menciona chefe do Doi-CODI ao votar pelo impeachment: Deputado disse que votava pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que apontou como o terror da presidente Dilma. Imagens: TV Câmara. O Globo, 2016. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/bolsonaro-menciona-chefe-do-doi-codi-ao-votar-pelo-impeachment-2-19112343. Acesso em: 22/04/2022
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