A magia da linguagem é o mais perigoso dos encantos.
Edward Bulwer-Lytton
Ninguém questiona o sexo das coisas, e se questiona também é só por confusão, curiosidade. Você não duvida da língua portuguesa quando ela te diz que cadeira é feminino e chapéu é masculino. Mesmo assim tem gente que cisma em não aceitar o gênero das pessoas, a pessoa se apresenta com o pronome feminino e recebe um olho torto e um “larga de ser viado”. Não é nem o xingamento que pega, é a concordância da palavra no masculino: é usar “viado” e não “viada” — o que não tornaria a situação tão melhor, mas pelo menos alguma identificação existiria.
O Brasil é o país que mais mata por transfobia: em 2017 foram registradas 179 mortes e, entre 2012 e 2022, mais de 1.500 pessoas trans e travestis foram assassinadas [1]. Não ajuda que figuras públicas, como o deputado Nikolas Ferreira, disseminem ideais transfóbicos em rede nacional. Ele diz que “As mulheres estão perdendo seu espaço para homens que se sentem mulheres” [2], invalidando totalmente mulheres trans, como se elas não fossem verdadeiramente do gênero feminino.
A transfobia está presente também no reality show mais assistido do mundo e no fenômeno midiático mais acompanhado no país: o Big Brother Brasil, com uma audiência de mais de 155 milhões de pessoas [3]. Em 2022 a cantora Linn da Quebrada, uma mulher trans, participou do programa, e repetidas vezes os outros participantes se referiram a ela com o pronome masculino, apesar de seu pronome estar tatuado em sua testa – literalmente [4]. Alega-se um equívoco, mas com a palavra “ela” estampada em sua face, é difícil não lembrar que Linn quer ser identificada como mulher.
Não há dúvida de que o assunto vem sendo trazido à tona cada vez mais, o que resulta em uma maior tolerância da sociedade. A representação de pessoas transsexuais na mídia, antes inexistente, agora tem suas aparições, mas é fato: o Brasil é um país transfóbico, e as mortes continuam a ocorrer. Se uma pessoa se diz mulher, ela é uma mulher. Se uma pessoa se diz homem, ele é um homem. Não consigo entender qual a dificuldade de aceitar o desejo do outro de ser reconhecido por quem realmente é.
Volto então aos objetos, para provar uma tese. Muitos podem argumentar que o objeto “nasce” com um sexo e com um pronome e nunca mais muda, por isso que a gente tem que aceitar, afinal, a língua portuguesa está gravada em pedra, não? Na verdade, não: estudar línguas é tão lindo porque elas estão em constante mudança, há uma fluidez nas palavras que permite que a oralidade seja formalizada. Desconfio que você, leitor, já estudou a etimologia da palavra você: de “vossa mercê” pra “vossemecê”, para “vosmecê”, para “vancê” e finalmente para “você”, que atualmente se encontra no dicionário oficial da língua portuguesa.
Vamos pensar então na origem das palavras. Se português vem do latim, e o sexo das coisas foi definido já nessa língua antiga, não faz sentido que ele mude. Bom, para aqueles que ainda não sabem, o latim tem pronome feminino, masculino e (pasmem) neutro. Na passagem para o português, no entanto, o neutro se fundiu ao masculino, tornando-o o gênero mais utilizado no português, e assim, objetos que originalmente eram vistos como neutros ganharam um novo gênero.
Trago então mais um argumento para tentar ajudar a explicitar o meu ponto: uma análise de caso de uma língua atual. Em português a palavra dor está no feminino, o artigo que usamos para referir-se a ela é “a”, mas no espanhol dizemos el dolor, assim como “a água” e el agua, ou “a cor” e el color. Os exemplos são múltiplos, mas escolhemos uma palavra para um estudo mais profundo: mar. No Brasil nos referimos ao mar como se ele fosse homem, já na França é mulher: la mère.
A língua é uma coisa muito linda, não é? Às vezes ela é um pouco tendenciosa, machista até, mas às vezes ela está à frente do nosso tempo (principalmente quando é sem querer). Espero agora o argumento, quem tá errado? Porque não adianta dizer que o mar nasce no Brasil e os franceses estão errados ou o contrário. Não adianta falar que o mar e “a mar” são diferentes, porque são um só, suas águas percorrem todo o nosso planeta, e, mesmo se fossem diferentes, garanto que o mar da Itália é o mesmo da França, e ele é chamado de il mare. Por que então questionam o gênero de alguém que se disse mulher, mas não condenam o mar, ou la mère por ser simplesmente seu próprio ser?
O escritor e dramaturgo Edward Bulwer-Lytton já dizia que a magia da linguagem é o mais perigoso dos encantos, deixemo-nos ser encantados e aceitemos sua verdade. Não cabe a mim nem a você definir o gênero das coisas, assim como não cabe a nós definir o gênero de um terceiro. Resta-nos apenas o respeito e a aceitação. Respeitamos a língua portuguesa sem pestanejar, o que custa respeitar uns aos outros?
Autoria: Elis Montenegro Suzuki
Revisão: Anna Cecília Serrano e Artur Santilli
Imagem de capa: Pinterest
Referências/Fontes
[1] LUCCA, Bruno. Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis pelo 14º ano seguido. Folha de São Paulo. São Paulo - SP. 26 jan. 2023. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/01/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-transexuais-e-travestis-pelo-14o-ano-seguido.shtml#:~:text=O%20levantamento%20aponta%20ser%20o,trans%20no%20Brasil%2C%2035%20anos>. Acesso em: 28 nov. 2023.
[2] Anônimo. Nikolas faz discurso transfóbico na Câmara no Dia da Mulher: 'Imposição'. UOL. São Paulo - SP. 08 mar. 2023. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/03/08/nikolas-faz-discurso-transfobico-na-camara-no-dia-da-mulher-imposicao.htm>. Acesso em: 28 nov. 2023.
[3] Anônimo. 'BBB 22': os marcos e recordes desta edição, em números. O Globo. São Paulo - SP. 26 abr. 2022. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2022/04/bbb-22-os-marcos-recordes-desta-edicao-em-numeros-1-25490539.ghtml>. Acesso em: 28 nov. 2023. [4] CHAGAS, Mariana. Linn da quebrada no BBB 22 e a transfobia para além das telas. Educando para a Diversidade. Disponível em: <https://educadiversidade.unesp.br/linn-da-quebrada-no-bbb-22-e-a-transfobia-para-alem-das-telas/>. Acesso em: 28 nov. 2023.
[4] CHAGAS, Mariana. Linn da quebrada no BBB 22 e a transfobia para além das telas. Educando para a Diversidade. Disponível em: <https://educadiversidade.unesp.br/linn-da-quebrada-no-bbb-22-e-a-transfobia-para-alem-das-telas/>. Acesso em: 28 nov. 2023.
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