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O MUNDO ENCOLHIDO DO COVID-19



Não é a primeira vez que escrevo sobre a quarentena, não há de ser a última. É que um dos efeitos colaterais do isolamento é o despertar da expressividade. Neste momento, todos experimentamos uma necessidade inescapável de exteriorizar o que sentimos, qualquer que seja a forma dessa expressão. É preciso significar a clausura para sonhar com a liberdade. Na pandemia do COVID-19, cada casa é um mundo próprio e isolado, forjado pelas circunstâncias. E, nessa galáxia de experiências, contarei a minha, sem pretensão de que seja mais relevante do que qualquer outra, contanto que seja minha.


De início, estávamos todos um pouco anestesiados diante da brusca mudança no estado das coisas. Como num filme distópico hollywoodiano, custava-nos a crer que essa era nova realidade. As notícias do COVID-19 pareciam tão distantes quanto os retratos da Peste nos livros didáticos do ensino médio. E, no decurso do tempo, fomos percebendo que o roteirista de 2020 tinha plots sinistros em mente.


No Rio de Janeiro, a experiência de estar quarentenado é quase surreal. A pandemia se mostrou um inimigo formidável por atacar a própria essência de ser carioca – a socialidade. A distinção público-privado é tênue – aliás fonte de diversos problemas de outras naturezas. As ruas são, por excelência, os espaços de encontro coletivo e de interação social. Os encontros com amigos de infância e de trinta minutos atrás são algo ritualístico para mim. Todavia, por ordem das autoridades sanitárias, para conter o vírus antissocial deveríamos evitar aglomerações. Que tarefa hercúlea o fazer na capital mundial das aglomerações! As praias, a Voluntários, o calçadão de Copacabana, os bares da Lapa, as ruelas do centro, as vielas de Santa Teresa, o samba da Pedra do Sal, as arquibancadas do Maracanã: todos pareciam fantasmas de uma outra era.


Uma semana após serem veiculadas as orientações para manter o distanciamento social, já fomos informados da primeira grande alteração de rotina acadêmica: o EAD. A FGV se adaptou rapidamente para prover o conteúdo das aulas à distância ou, como preferem, em aulas mediadas pela tecnologia. Não tardei a lamentar o encolhimento do meu mundo, agora restrito a uma tela de notebook e a uma janela curiosa entre o arvoredo da minha rua. Aluno online nunca teve tanto significado.


Agora, manter qualquer medida de rotina era a estratégia para manter alguma medida de saúde mental. Simulava todos os hábitos pré-COVID para me preparar para sair de casa, ainda que esta fosse o destino. O poder do hábito era o de manter-se alheio do caos externo. Sorria com a ideia estapafúrdia de passar perfume para ficar no meu quarto.


Alguns foram os sentimentos provocados diretamente pela quarentena. O sufocamento, mais simbólico do que literal, das máscaras para enfrentar o exterior, em regime excepcional. A ansiedade de desconhecer durações, impactos, riscos, futuros e, principalmente, saídas. A agonia de ver um ano da vida passar sem você vivê-lo. O desespero de pensar que está tudo contaminado e é um risco em potencial. Tentar exterminar a culpa com álcool em gel, na esperança de não ser você a sentença de morte de alguém estranho ou muito querido. A tristeza de ver os números crescerem assustadoramente, sabendo que, para alguns, aqueles números são absolutamente tudo. Acho que ninguém dirá que desconhece estes sentimentos. A seu turno, cada um terá de enfrentá-los mais ou menos intensamente.


Outro dilema amplamente conhecido dos quarenteners é a produtividade. Aproveitar esse tempo para relaxar, pois não sabemos quando o teremos de volta. Ou aproveitar esse tempo para cumprir todas as pendências atrasadas, pois não sabemos quando o teremos de volta. Aprender violão ou uma linguagem de programação? Inglês fluente ou workshop de artesanato? Meditação ou tirar aquele projeto da gaveta? A minha quarentena foi produtiva o suficiente? Acho que a resposta do dilema está menos no que faz de você produtivo e mais no que essas atividades produzem em você.


Vale notar que no Rio temos a miscelânea de diversas realidades sociais, nem sempre harmônicas. Nesse período em que estamos trancados em casa, elas provavelmente se acentuaram. Como escrevi recentemente, enquanto uns lutam para não morrer de tédio, outros lutam para não morrer. Esse abismo não pode ser desprezado. Ainda que a experiência da quarentena afete cada particular particularmente, não se pode legar à indiferença as lutas mais dramáticas nessa pandemia. Trata-se, pois, de ter um senso de coletividade.


O avanço da quarentena também aumentou a distância das minhas amizades. Tento, a todo custo, manter, ainda que artificialmente, o contato. No zoom, cada um com uma cerveja em sua casa para emular o saudoso sextou. Aliás, muitos bares e restaurantes talvez não estejam mais lá no pós-pandemia. A vida social ficou travada em março de 2020, ao menos para os mais conscientes. É triste acompanhar o Baixo Botafogo perder tantos elementos que o caracterizam. E quantos outros pedaços da boemia carioca não abrirão mais as portas. Torcemos pela perseverança dos demais.


No entanto, algumas alegrias também se fazem presentes na quarentena. Poupar o tempo dos deslocamentos pela cidade, salva tempo para ser investido em usos mais nobres. Quando basta ligar o computador para estar em uma aula ou um evento, a agenda diária pode abraçar mais itens que a agenda presencial permitia. Na profusão de lives e webinars, alguns encontros só possíveis agora. E, por fim, a reaproximação com sua família e, ainda mais crucial, consigo mesmo. São oportunidades que a quarentena permite, que nós não nos permitimos no nosso velho normal.


Estou certo de que não serei capaz de contar todos os detalhes do cárcere que nos impôs o COVID-19. Estou certo de que, não sendo das melhores experiências, ainda assim é uma experiência e que a guardarei nos tempos a frente. Não alimento ambição de que grandes mudanças se operem naqueles que viveram a quarentena. O individualismo e a falta de coesão social ainda existirão na sociedade que vencer o coronavírus. Mas deixo o convite para refletir o que foi a quarentena para você e o que você descobriu sobre si mesmo nesse período.


E que quando sairmos complemente disso, possamos desejar mais o novo que o normal. E que a liberdade, a saúde e a comunidade tenham o seu valor superlativo e independente, sem precisar de uma pandemia para nos relembrar.


Cuidem-se!


Texto por: Pedro Thiengo

Foto da capa: Julian Ardila

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