Os Estados Unidos são uma democracia?
Essa dúvida surgiu recentemente durante uma aula de Política Comparada e, apesar do debate ter sido cortado por motivos de tempo, ele ficou na minha cabeça [1]. Acredito que, para começar a responder essa pergunta, nós precisamos nos perguntar outra questão, que é mais o foco desse texto:
O que é uma democracia?
A etimologia nos dá uma dica (sim, serei insuportável nesse texto): em grego, demos significa povo, e kratia é poder. Democracia, então, é o poder do povo, e ideais democráticos adaptados para o atual sistema internacional defendem Estados-nação governados através da participação universal e igualitária de todos os seus cidadãos. Essa definição é bela e muito inspiradora, mas essa definição normativa não nos diz muito sobre o que significa, de fato, ser uma democracia. País nenhum funciona somente à base de ideias bonitas, mas sim da aplicação delas na realidade material da sua população. Ou seja, ser uma democracia significa desenhar, constituir e implementar um regime político com estrutura social e econômica específicas, com responsabilidades, direitos, leis e instituições.
Então, qual a definição de democracia enquanto regime político? Como todos os conceitos, ela mudou muito no tempo. Algumas definições de democracia enquanto regime político focam na presença de eleições. Por exemplo, em 1975, o economista Joseph Schumpeter a definiu como um método baseado no arranjo institucional para decisões políticas que realizem o bem comum por meio de eleições de representantes para cumprir a vontade do povo [2]. Mas essas versões caíram um pouco em desuso depois que ficou claro que forjar uma eleição não é só bem possível como fácil quando se é o governante, então refinou-se o conceito. Um entendimento que acredito ser uma expressão digna de como é visto o regime democrático diz o seguinte:
“Democracia política moderna é um sistema de governança no qual governantes são responsabilizados por suas ações na esfera pública por cidadãos que agem indiretamente por meio da competição ou cooperação de seus representantes eleitos”
- Paul Schmitter e Terry Karl [3]
Essa concepção compreende não só eleições, mas também uma atuação grande dos cidadãos, que exercem sua voz através do voto. Escondido nessa definição também temos a necessária presença de elementos como liberdade de expressão, de organização, e de mídia. Esse foco em liberdades políticas demonstra, penso eu, como o escopo de democracia enquanto regime político hoje em dia recai sobre o espectro das democracias liberais.
Democracias liberais são regimes marcados pela escolha democrática de seus governantes por uma população munida de liberdades políticas e direitos humanos protegidos por um Estado Democrático de Direito, além de uma separação de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário, de modo que cada um freie excessos monocráticos dos outros dois [4]. Seguem um capitalismo de livre mercado (o que não existe de fato, mas relevemos) e perpetuam um individualismo tanto implícito como explícito em sua valorização de cada cidadão como unidade de poder político e econômico – através do voto e da participação como vendedor e comprador na economia de mercado, respectivamente. Nessa definição, os Estados Unidos são uma democracia liberal, já que checam todos os requisitos dessa listinha. Respondi à pergunta inicial, mas calma, o texto ainda não acabou, é hora de fazer uma outra pergunta muito crucial:
O poder do povo é exercido nos Estados Unidos?
A resposta é, claro, um tranquilo não.
Existem muitos fatores estruturais do sistema político americano que escancaram isso. A começar pelo colégio eleitoral para eleições presidenciais, uma herança de tempos (ainda mais) racistas criada para beneficiar fazendeiros brancos dos estados do sul que, por terem uma grande população negra escravizada, ganhavam mais peso político no cenário nacional, e que até hoje permitem distorções como a vitória de um candidato sem a maioria do voto popular [5]. Há também o gerrymandering, prática de redesenho arbitrário de distritos eleitorais para que legisladores garantam sua reeleição, eleição de aliados, e menos responsividade às demandas populares locais [6]. Não posso também deixar de citar o racismo firmemente arraigado nas instituições políticas dos Estados Unidos, cujo governo permitia leis de segregação racial até os anos 1960, quando já se chamava e era internacionalmente considerado verdadeiramente democrático. A cereja do bolo é o sistema bipartidário que oferece ao povo americano a escolha entre Democratas e Republicanos, dois tons de direita que falham em compreender uma amplitude ideológica real.
Mas como pode uma democracia liberal não representar a voz do povo?
É porque o conceito de democracia liberal não foi nenhum segundo presente de Prometeu à humanidade, para que nos desenvolvêssemos ideologicamente até o nosso máximo intelectual. Democracia liberal e o entendimento dela como sistema que representa a voz do povo são conceitos políticos, que foram instrumentalizados durante a Guerra Fria para atacar o bloco soviético que, por sua vez, afirmava estar professando a verdadeira democracia [8]. Enquanto os Estados Unidos defendiam a liberdade de expressão e consumo tanto como ferramenta quanto como execução do poder popular, a União Soviética questionava a suposta liberdade que grupos marginalizados e a população pobre teriam em um sistema focado no sucesso financeiro como demonstração de valor enquanto ser vivo. O domínio sobre o conceito do que categoriza o modelo socio-político-econômico mais legítimo é, sempre foi e continuará sendo, um campo de batalha extremamente disputado e importante para a civilização humana. No momento, o vencedor é a democracia liberal, que é vista como algo a ser preservado de modo incólume, a evolução final da experiência humana na terra – o “fim da história”.
Mas o regime democrático-liberal é aberto a muitas falhas e, mesmo podendo ser considerado uma aproximação da voz do povo, não o é por simples virtude de existir e ter um nome inspirador. Falhas como a indiferença com a pobreza caso essa não importe aos eleitores, exploração da desigualdade para ganhos eleitorais, capacidade de esse elegerem fascistas que destroem o regime por dentro, e até a chance de um candidato que propõe a deportação forçada e violenta de onze milhões de imigrantes na mais importante democracia liberal do mundo (Donald Trump nos Estados Unidos [9]).
É claro que esse sistema também apresenta vantagens. A extensa proteção de liberdades individuais definitivamente facilita o exercício da voz do povo, mas não tem um porquê de ficar fechado nesse paradigma de escolha entre democracia liberal ou tirania. Essa visão nos impede de imaginar qualquer regime político que escape fora da ideia de democracia liberal ocidentalizada, além de dificultar o estudo de outros regimes que fogem dessa norma. Isso é limitador em termos políticos, ideológicos, acadêmicos e profissionais.
Enfim, para voltar à pergunta inicial: Os Estados Unidos são uma democracia?
Bom, eu comecei o texto sendo insuportável, e terminarei da mesma maneira: depende. A resposta depende de se você considera ser ou se denominar uma democracia liberal um critério suficientemente satisfatório para se chamar de democracia, ou se são necessários mais elementos para atingir de fato o poder do povo. O importante é que o poder de classificar o que e quem é uma democracia, enlatar essa mensagem e transmiti-la pelo mundo como verdade objetiva é de um grupo minúsculo de países que têm interesses e objetivos próprios, e não é nenhuma coincidência que o que contemporaneamente entendemos como democracia seja bem parecido com o modelo de governo que praticam.
Autoria: Pedro Augusto Castellani Rolim
Revisão: Laura Freitas
Imagem de capa: Foto por Ruth Fremsom / Reprodução The New York Times.
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Referências:
[1]: Matéria de Política Comparada, ministrada pela Profa. Nathália Sandoval Rojas na FGV-RI.
[2]: Schumpeter, Karl. Capitalism, Socialism, & Democracy. Routledge: 2003. [1975].
[3]: KARL, Terry L., SCHMITTER, Philippe C. What Democracy is… and is Not. Journal of Democracy. Johns Hopkins University Press, vol. 2, no. 3, 1991, pp. 75-88. Disponível em: https://www.ned.org/docs/Philippe-C-Schmitter-and-Terry-Lynn-Karl-What-Democracy-is-and-Is-Not.pdf. Acesso em: 18 de Outubro de 2024.
[4]: LIBERAL Democracy. European Center for Populism Studies.
[5]: KARIMI, Faith. Why the Electoral College has long been controversial. CNN US. 10 de Outubro de 2024. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/10/10/us/electoral-college-slavery-links-trnd/index.html. Acesso em: 18 de Outubro de 2024.
[6]: KIRSCHENBAUM, Julia; LI, Michael. Gerrymandering Explained. Brennan Center for Justice. Publicado em 10 de Agosto de 2021, Atualizado pela última vez em 9 de Junho de 2023. Disponível em: https://www.brennancenter.org/our-work/research-reports/gerrymandering-explained. Acesso em: 18 de Outubro de 2024. ;
DESMITH, Christy. Biggest problem with gerrymandering. The Harvard Gazette. 5 de Julho de 2023. Disponível em: https://news.harvard.edu/gazette/story/2023/07/biggest-problem-with-gerrymandering/. Acesso em: 18 de Outubro de 2024.
[7]: TIMASHEFF, N. S. The Soviet Concept of Democracy. The Review of Politics. Cambridge University Press, vol. 12, no. 4, 1950, pp. 506-518. Disponível em:https://www.jstor.org/stable/1404887. Acesso em: 18 de Outubro de 2024.
[8]: INGRAM, Julia. Trump’s plans to deport millions of immigrants would cost hundreds of billions, CBS News analysis shows. CBS News. 17 de Outubro de 2024. Disponível em: https://www.cbsnews.com/news/trump-plan-deport-immigrants-cost/. Acesso em: 18 de Outubro.
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