Os espectros da Guerra Fria em“Ainda Estou Aqui” e “Trilha Sonora para um Golpe de Estado”
O que as pessoas de fora do Brasil precisam saber sobre o país para entender esse filme de forma mais profunda?
Que as ditaduras da América do Sul não eram uma questão de república das bananas. Elas faziam parte da macropolítica da época. É por isso que eu sempre repito que ela é uma vítima da Guerra Fria; ela não é uma vítima da ditadura de um país de república das bananas. As pessoas tratam as ditaduras na América do Sul como algo que aconteceu naquele continente distante. Mas é tudo parte da mesma história.
(Fernanda Torres em entrevista à Lisa Wong Macabasco, Vogue America, 11/02/2025)
“A Guerra do Golfo Nunca Ocorreu”, ensaio do filósofo francês Jean Baudrillard, questiona o desenrolar da Guerra do Golfo como um conflito armado no sentido mais clássico da palavra, argumentando que, na verdade, tratava-se de um teatro grotesco da hegemonia americana; uma batalha ganha já de início, mediada por imagens televisionadas, na qual as mortes de iraquianos não importavam, pois elas não aconteceram. Era um sofisticado e macabro jogo de disfarces, restando de resíduo imagético as propagandas gloriosas de soldados adentrando os desertos árabes, como modelos em uma passarela.
Bem, não se pode afirmar o mesmo da Guerra do Vietnã – ela definitivamente aconteceu. Como eu sei disso? Ora, eu já escutei Gimme Shelter, já vi Apocalypse Now, sei dos protestos de Lennon… todos conhecemos essa história. E sabemos porque, lá pelas tantas dos anos 70 e 80, os americanos não cantavam outra coisa a não ser isso, não filmavam outra coisa a não ser isso e não escreviam sobre outra coisa a não ser isso. Toda a psique de uma nação nos acordes de Dylan e nas lentes de Coppola. Todos os mortos, os doentes e incapacitados, todos eles. E é por isso que a Guerra do Vietnã aconteceu. Mas se os vultos do Vietnã são impossíveis de esquecer, o que dizer do Congo, do Brasil, da Indonésia? De Patrice Lumumba, de João Goulart, de Sukarno? Se uma árvore cai em uma floresta e ninguém está por perto para ouvi-la, ela faz algum som?
Logo, foi um tanto quanto grata a minha surpresa ao ver Ainda Estou Aqui e Trilha Sonora para um Golpe de Estado indicados ao Oscar, não apenas pela ocasião rara de ver filmes verdadeiramente bons sendo indicados ao Kikito de Ouro versão californiana, mas por serem ostensivamente filmes sobre a Guerra Fria, conceito que no léxico ocidental tornou-se sinônimo da grande peleja entre capitalismo e comunismo, todavia mascarando o rastro de sangue americano em todo o Sul Global como acidente de percurso, e não como razão de existência do projeto anti-comunista.
No livro O Método Jacarta, ao se debruçar nas entranhas historiográficas do império americano, o jornalista americano Vincent Bevins documenta aquilo que Ainda Estou Aqui e Trilha Sonora para um Golpe de Estado cristalizam em filme: de Brasília até Kinshasa, em um movimento coordenado e transnacional, os Estados Unidos subjugaram todo o Sul Global a uma história de massacres, desaparecimentos e tortura em prol do anti-comunismo. O trabalho de Bevins é especialmente pertinente ao expor como o tal "Método Jacarta” – o massacre na Indonésia de 1965–1966 cujo principal alvo eram militantes comunistas, mas que acabou por matar cerca de 1 milhão de indonésios – tornou-se o padrão-ouro da diplomacia americana perante supostas ameaças socialistas ao redor do globo.
É deliberadamente uma história mal contada, a fim que sejamos alienados do que ocorreu do outro lado do oceano, sendo que estamos falando dos mesmos métodos, das mesmas armas, das mesmas dores. O que ocorreu com Eunice Paiva pouco difere do que ocorreu com Andrée Blouin (militante pan-africanista durante o período da descolonização africana na Guiné e no Congo) ou com Francisca Pattipilohy (militante comunista e sobrevivente da ocupação japonesa e colonização holandesa na Indonésia)
É igualmente notável como os dois filmes, em tempos de platitudes anti-autoritárias tão caras a Hollywood, se recusam a suavizar as contradições não apenas das suas condições de produção, mas também das histórias a serem contadas. Walter Salles não é nenhum comunista, mas sim herdeiro de um dos principais bancos do país; e Johan Grimonprez não é um revolucionário congolês, mas sim um pacato belga. Ambos partem de um lugar de privilégio, imbuídos de contradições no mero ato de posicionar uma câmera – contradições essas devidamente reconhecidas no argumento fílmico –, mas não reduzem esse ponto de partida à condição primordial de seus filmes, traficando, em vez disso, para dentro de Hollywood, sob a fachada das políticas da respeitabilidade cinematográficas, poderosas narrativas sobre o gesto de tentar lembrar aquilo que a história oficial quer esquecer.
Ambos os filmes pautam-se a partir da incômoda convivência entre a efervescência musical e a violência política dos anos 1960. Ainda Estou Aqui inicia com gravações de Super-8 e canções tropicalistas, estabelecendo as texturas tropicais do Rio de Janeiro nos anos 70, apenas para depois puxar nosso tapete e nos jogar direto para o pesadelo familiar de Eunice Paiva. Em Trilha Sonora para um Golpe de Estado, o início do sonho da independência congolesa rapidamente torna-se em um novo pesadelo colonialista, ao passo que o jazz da trilha vai se tornando mais trágico, com destaque para a subtrama na qual a CIA tenta utilizar Louis Armstrong como o Cavalo de Tróia de seu projeto imperialista.
Enquanto Ainda Estou Aqui se vale de expedientes narrativos do cinema clássico, com atores e direção que prezam pela sobriedade, Trilha Sonora para um Golpe de Estado utiliza a montagem e a música como efeito desestabilizador, espelhando o agito e incerteza do período. São escolhas que, cada filme à sua maneira, exemplificam a contradição no cerne de ambos os filmes: como é possível que em um só mundo convivam tanta beleza e tanta violência?
Salles e Grimonprez entendem que tentar responder tal interrogação com um maniqueísmo barato é essencialmente uma armadilha lógica, contrapondo em seu lugar as imagens de tragédia e amor, e trazendo a memória como elemento de síntese. São os olhos de Fernanda Torres ou o lamento de Armstrong que explicitam a urgência do ato de lembrar, de não esquecer e de nunca perdoar.
“Muitas vezes assisto a filmes para ver pessoas mortas. Quero vê-las novamente, quero ouvi-las. Assim, o cinema é, de certa forma, uma espécie de máquina pós-morte encoberta. De certa forma, o cinema é um cemitério.”. A frase acima, de David Cronenberg, reflete as preocupações do cinema do diretor canadense, ocupando um lugar entre o mórbido e o tenro.
Como um cemitério, com suas alamedas repletas de jazigos e lápides celebrando a eternidade, o cinema esconde nas lembranças mais dolorosas pequenos lampejos de beleza, nos recordando o porquê de sempre lutarmos por um modo de viver mais decente, mais justo, mais humano, seja no Congo, no Brasil ou em qualquer lugar do mundo.
Texto: João Pedro Fernandes Revisão: André Rhinow, Isabelle Simões e Manuela Sanches Imagem de Capa: Robert Lebeck, 1960
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