Em 4 de março de 1789, um dos mais importantes documentos da contemporaneidade entrava em vigor. Desenvolvida pelos mais ardentes campeões do iluminismo no novo mundo, a constituição dos Estados Unidos foi uma afronta direta à ordem absolutista europeia que tentava suprimir a Revolução Americana. Dentre seus princípios, mais especificamente no terceiro artigo, um conciso conjunto de três seções define a organização e as atribuições do poder judiciário estadunidense. Sob a égide da repartição dos três poderes, nasceu então um juizado que inspiraria outras nações nas américas e além, servindo como o farol do primeiro estado democrático de direito no continente. Hoje, a Suprema Corte dos Estados Unidos é a mais poderosa instância jurídica doméstica do planeta, afinal, que outro órgão conhecido poderia legitimamente destituir o chefe de estado da maior potência geopolítica do mundo?
Desçamos alguns milhares de quilômetros ao sul, até o coração do cerrado brasileiro, na elegante cidade de Brasília, Distrito Federal, capital do Brasil. Na praça dos três poderes está sediado o Supremo Tribunal Federal, uma instituição cujo adjetivo “controverso” não faz total jus ao seu impacto meteórico na confusa vida política brasileira. Ora, contamos com uma variedade inusitada de figuras que, se não estão batendo cabeças entre si, estão com os demais órgãos da república. O ministro André Mendonça recentemente disse que teve conversas com o embaixador de Israel (o porquê de um juiz em exercício tratar com um embaixador está além de minha compreensão) sobre as recentes declarações do atual presidente Lula, comparando as operações israelenses na Faixa de Gaza ao Holocausto - o que logo resultou em uma embaraçosa resposta da SECOM. No plenário da Casa, mesmo que atualmente sob vistas do ministro Dias Toffoli, tem se discutido a descriminalização do porte de canabinóides, enquanto o Senado Federal, simultaneamente, aprova uma PEC para criminalizar o porte. Em uma ironia curiosa, o legislativo legisla sobre a constituição, enquanto a corte constitucional avança em mudanças sobre o código penal.
De um outro lado, setores do conservadorismo atacam Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e o mais novo ministro Flávio Dino, ex-Ministro da Justiça, acusando-os de serem comunistas, a serviço do desmonte das mais básicas instituições brasileiras e pisoteando qualquer oposição a essa “vanguarda progressista”. Apesar de muitas dessas acusações serem, francamente, delirantes, Barroso e Dino têm, tal como todos os outros ministros, suas óbvias inclinações ideológicas, o primeiro discursando em palanque da UNE sobre como eles “derrotaram o bolsonarismo” enquanto o último, ex membro do PCdoB, governador por dois mandatos e senador, dispensa explicações. Na contramão dessas críticas, acredite se quiser, o ex-advogado do presidente da república Cristiano Zanin se tornou bode expiatório para a militância esquerdista por ter votado contra a legalização do aborto e a liberação do porte de drogas (não me esqueci de Moraes, mas traterei dele posteriormente).
Há alguns anos pouco se ouvia falar em ministros das instâncias superiores. Primeiro, esses geralmente entravam e saíam de seus postos sem muito rebuliço, já que a última vez que algum indicado foi rejeitado para compor o STF foi durante o mandato de Floriano Peixoto, quando cinco escolhas do presidente foram barradas pelo recém-formado Senado republicano, que de longe não era particularmente simpático ao presidente e seus aliados políticos. Passado Floriano, vem a velha república, e que necessidade os oligarcas mineiros e paulistas teriam em bufar contra indicações praticamente inofensivas de suas contrapartidas? Depois disso, a última grande aparição de um ministro se deu na deposição de Vargas em 1945: sem vice-presidente e governando com o congresso fechado, restou apenas José Linhares, presidente da corte, para assumir a cadeira em resposta à convocação dos militares. Assim seguiu o STF, pacato e secundário, até a redemocratização, quando começa a desabrochar uma entidade poderosa, fortificada pela Constituição de 1988 com novas atribuições e capaz de confrontar os outros poderes para, como expresso ipsis litteris na carta magna, fazer a “guarda da constituição” de modo nunca antes visto na história do país e assumindo tarefas que deveriam normalmente recair para outros poderes além do judiciário.
Sérgio Buarque de Holanda já havia descrito o personalismo como característica inerente ao Brasil, e se o judiciário antes era uma instância qualquer, hoje ele é uma peça chave para a estratégia política de qualquer concorrente a um cargo no executivo ou legislativo federal que se preze, tudo, talvez, porque agora sabemos sem muito esforço do nome de certos ministros. Desde o mensalão, quando as bases do governo Lula tremeram diante das denúncias e dos atropelamentos políticos históricos que algumas de suas principais lideranças sofreram, o parlamento recebeu a mensagem de que o judiciário poderia, mesmo que temporariamente, interromper seus planos com vigor. Ano após ano, cada vez com mais cobertura da mídia, o tribunal tomava suas decisões, condenando ou absolvendo figurões da Capital Federal com pouca hesitação. Na Lava-Jato, Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia emergiram (talvez não tanto quanto a figura de Sérgio Moro) no ranking de combatentes da corrupção aos olhos da população, que agora buscava uma alternativa mais “limpa” para governar o país. No impeachment de Dilma Rousseff, novamente, a corte valida a derrubada da impopular presidente e de seu gabinete em ruínas, mas curiosamente mantém seus direitos políticos, e aí está o pulo do gato.
Como salvaguarda da constituição, a mais alta instância do judiciário federal também, pode-se dizer, que é uma guardiã do estamento, já que a carta magna pode ser adequadamente definida grosso modo como a consolidação dos acordos partidários e políticos firmados no pacto de 88, visando transacionar o Brasil de um estado governado por decreto à uma república democrática de fato e garantir a manutenção do poder de certas oligarquias políticas, o que pode ser visto na anistia de colaboradores da ditadura, por exemplo. Encontra-se no interesse da corte a manutenção da estabilidade jurídica, e em certa medida, política, já que faz-se preciso manter os parlamentares a curtas rédeas para que esses não cometam inconstitucionalidades. O Senado Federal pode, teoricamente, destituir um ministro da Suprema Corte, mas qual o senador que gostaria de mexer pauzinhos e colocar-se acidentalmente na mira de alguma investigação, expondo possíveis esquemas pessoais, muitos talvez ilícitos? Obviamente, quero evitar comentários levianos, mas as memórias das últimas décadas de compras de votos, desvios de verbas e fraudes mirabolantes seguem vivas em muitos brasileiros. A desconfiança é inevitável e até justificada às vezes, e logicamente ninguém quer carregar o rótulo de “bandido” para as próximas eleições. Não bastassem os incentivos negativos, a corte também pode, se achar conveniente, “recompensar” bons comportamentos políticos, o que é exemplificado pelo fracasso homérico da CPI da Lava-toga, que uniu esquerda e direita em uma retirada de assinaturas que efetivamente enterrou a comissão no Senado. Nem Flávio Bolsonaro foi condenado nos desdobramentos da lava-jato que o alcançaram, nem outros senadores investigados no período (exceto Collor) e, após desavenças com o executivo, algumas mudanças de entendimento e reviravoltas judiciais, 1 em 3 sentenças da Operação Lava Jato foram anuladas.
Para concluir, volto a Alexandre de Moraes. Sua notoriedade se deu mais recentemente, especialmente por conta do ex-presidente Jair Bolsonaro, que carregava aquela vocal fração da população que havia abraçado um discurso anti-sistema radical e os frutos do olavismo preponderante nos círculos nacionalistas e conservadores a favor do ex-deputado. 4 anos de uma postura às vezes combativa, às vezes de reaproximações e abraços (literalmente) chegaram a seu melancólico fim no final de seu mandato, quando o bolsonarismo deixava de vez as esperanças de pacificar seu relacionamento com os outros poderes e partia para o discurso de ruptura. Alguns meses depois, com quartéis ocupados por civis, e temos o fatídico 8 de janeiro. A mais recente tentativa de golpe na história do país.
Certa vez, ouvi uma comparação entre essa situação e Roma: Nos períodos de grandes crises, o senado romano apontava um dictator para restaurar a ordem entre os cidadãos da república e pacificar qualquer confronto. Ao contrário do que entendemos como um ditador hoje, esse magistrado se assemelhava à figura de um “interventor”, que deveria prestar contas ao senado e devolver seu poder quando a normalidade fosse restaurada. Aos que respeitam a regra, o acordo é cumprido, à exemplo de Cincinato. Para dissidentes, como César, os Idos de Março. Moraes assumiu, com o aval silencioso da complacência dos outros poderes, o papel de Cincinato, com uma opinião pública dividida, um legislativo polarizado e um executivo que conspirava por uma possível derrubada do governo. Se isso há de durar por muito mais tempo, não sabemos. Sua condução do inquérito das Fake News, uma obra jurídica assombrosa criada por Toffoli que violou o sistema acusatório da constituição ao atribuir ao acusador também o poder de julgar e extrapolou as prerrogativas legais da corte, junto ao o tratamento incoerente dado a alguns dos presos do 8 de janeiro, alguns deles senis e confusos e usados como bucha de canhão pelos arquitetos da fracassada tentativa, podem sinalizar um apego exagerado do ministro ao “Estado de Exceção” que lhe foi concedido para gerenciar.
Em um país de “Marechais de Ferro”, “Pais dos Pobres”, “Castellos Brancos”, “Caçadores de Marajás” e “Mitos”, o que é um “Xandão” e o Supremo senão mais uma manifestação desse cíclico vício brasileiro de atribuir a pessoas instituições, e as essas instituições grandes poderes? Goste ou não, essa fase de potencialização do STF é mais uma como as outras que esse país tropical já vivenciou ou vai vivenciar.
Autoria: Guilherme Neto
Revisão: Laura Freitas
Imagem de capa: Nelson Jr./SCO/STF
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