Na penúltima segunda-feira, dia 7 de fevereiro, foi transmitida ao vivo a 545ª edição do famoso programa Flow Podcast, em que um dos apresentadores, conhecido como Monark, afirmou que deveria existir no Brasil um partido nazista legalizado. Esse episódio abismal reflete a questionável perspectiva da liberdade de expressão como um direito irrestrito que, além de separar de modo artificial e danoso o pensamento e a ideia da realidade e ação, propõe a extensão dessa liberdade a ideologias criminosas.
Criado em 2018 por Igor Coelho e Bruno Aiub (Monark), o podcast sempre foi descrito por seus apresentadores como uma conversa “de bar” descontraída, aberta a todas as ideias e pessoas. Afinal, como Aiub já destacou em um tweet, “Como eu já havia dito antes, eu conversaria até com o Hitler em pessoa no Flow Podcast. Não existe assunto tabu, não existe pessoa proibida”. Desse modo, a filosofia do programa afirma um direito supremo de pensar e, ainda mais importante para a presente discussão, de falar o que quiser, uma visão cuja integralidade deve ser preservada mesmo diante dos mais monstruosos conjuntos de ideais. Como expresso por Monark na fatídica edição 545, que rendeu seu desligamento do podcast, “questionar é sempre válido”, mesmo que o fato questionado seja o direito de existência de um grupo de pessoas. Mesmo que a fala do apresentador não se traduza em um apoio ao nazismo, esse tipo de discurso se centra em uma premissa falha de como funciona a opinião pública.
Combatendo o posicionamento daqueles que subjugam a liberdade de expressão ao respeito aos direitos humanos, essa linha de raciocínio argumenta que todos os indivíduos de uma sociedade seriam atores perfeitamente racionais que chegam a uma mesma conclusão óbvia diante de certos fatos. Assim, a proibição de certos discursos seria um ato autoritário desnecessário, já que a população claramente entenderia ideias intolerantes como erradas e as repudiaria, impedindo-as de ganhar qualquer tração na opinião pública. No entanto, como o crescimento vertiginoso de grupos neonazistas no Brasil e no mundo e a própria fala de Monark demonstram, uma ideologia assassina e ultrapassada ainda pode continuar a ter relevância décadas após sua suposta derrocada. Isso se dá pelo fato de que pessoas não são entes de mente igual e racional, e são afetadas por sentimentos e experiências únicas, de modo que conclusões supostamente óbvias não são tão óbvias assim. Não basta superar crenças intolerantes e criminosas na base do debate, é necessário impedir sua proliferação no meio social.
Além disso, ideologias perigosas como o nazismo não devem ter seu controle e erradicação totalmente deixado ao encargo do diálogo, já que elas não dependem da vitória no debate para ganharem força e sua própria existência legal na sociedade ameaça a existência de indivíduos. Isto é, ideais discriminatórios quando estabelecidos não procuram fazer mais sentido face aos outros, mas polarizar o meio social de forma agressiva contra um grupo de pessoas, de forma a cativar sentimentos de “nós contra eles”. Nessa linha, a ação violenta vem embutida da ideologia, sendo uma indissociável da outra; não dá para separar ser “anti-judeu” do ato de praticar o antissemitismo, assim como uma fala racista é umbilical à agressão racista. Permitir a livre existência desses ideais e proteger o direito de reproduzi-los não é defender a liberdade de expressão, mas a violência e o preconceito no campo do pensamento e da realidade concreta. Até porque eles podem chegar pacificamente, aproveitando-se da tolerância, mas têm como fim a barbárie e a intolerância.
O Paradoxo da Tolerância de Karl Popper descreve o processo de como ideologias e projetos intolerantes se aproveitam de sistemas transigentes com essas ideias para consolidarem e fortalecerem seus preconceitos. De acordo com Popper, a ausência de meios para suprimir filosofias intolerantes e seus ataques leva à destruição da tolerância e dos tolerantes que relevaram a ascensão dessa intolerância. Mesmo sendo possível e fácil refutá-las, uma vez disseminadas, essas filosofias não se importam em levar a pior em um debate, pois mesmo assim conseguem dominar o palanque, censurando e silenciando ideias dissidentes. Logo, permitir que um discurso abertamente discriminatório e violento exista e se prolifere, em nome de uma sagrada e irrestrita liberdade de expressão, causa um eventual ricochete contra a sociedade que foi complacente com ele. Não é preciso procurar longe para se achar um exemplo; desde 2019, o Brasil vive um aumento estarrecedor de 270% de grupos neonazistas em seu território, além de casos como o do ex-secretário especial de cultura do governo Roberto Alvim que, em 2020, copiou em vídeo o discurso e estilo de Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha nazista. Em parte, essa situação pode ser creditada à eleição do presidente Jair Bolsonaro, que normaliza o preconceito e o ódio através de, por exemplo, uso de lemas fascistas como “Deus, Pátria e Família”.
Assim, é frequente que defensores dessa filosofia da liberdade de expressão suprema e inconsequente apontem a regulação de qualquer tipo de discurso como uma censura autoritária por parte de burocratas do Estado, e que isso abriria um precedente perigoso que permitirá o cerceamento de quaisquer outros ideais. No entanto, colocar o Nazismo, ideologia genocida cujos crimes foram documentados e provados, como um degrau rumo a um objetivo totalitário do Estado é no mínimo desonesto. Afinal, a experiência histórica da humanidade prova que o propósito final do nazismo, assim como do racismo e da homofobia, é a barbárie e a agressão. Assim, a proibição desses crimes não é nada mais que natural em uma sociedade que se almeja funcional e pacífica.
É ingênua a ideia de que a liberdade de expressão é um direito irrestrito de falar literalmente tudo que vier a mente, como o apresentador Monark achou que fosse quando afirmou que deveria haver um partido nazista legalizado no Brasil. A verdade é que a liberdade de expressão exige, para a garantia de sua manutenção como direito, a proibição de discursos preconceituosos e violentos, o que revela sua outra face. O que deveria ser óbvio, não é: a liberdade de expressão não é só um direito, como também uma responsabilidade.
Autoria: Pedro Augusto Rolim
Revisão: Bruna Ballestero
Imagem de capa: Reprodução Istoé
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Referências
BITTENCOURT, Julinho. Monark defende existência de um partido nazista reconhecido pela lei; veja vídeo. Revista Fórum, 8 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://revistaforum.com.br/midia/monark-defende-existencia-de-um-partido-nazista-reconhecido-pela-lei-veja-video/. Acesso em: 10 de fevereiro de 2022.
RÓNAI, Cora. Monark e o Paradoxo da tolerância. O Globo, 9 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/monark-o-paradoxo-da-tolerancia-25386808. Acesso em: 10 de fevereiro de 2022.
CORREIA, Pedro. O Paradoxo da Tolerância. Observador, 14 de junho de 2020. Disponível em: https://observador.pt/opiniao/o-paradoxo-da-tolerancia/. Acesso em: 10 de fevereiro de 2022.
CARVALHO, Igor. Cinco vezes que Bolsonaro, ou pessoas ligadas a ele, recorreram a símbolos nazistas. Brasil de Fato, 25 de março de 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/03/25/cinco-vezes-que-bolsonaro-ou-pessoas-ligadas-a-ele-recorreram-a-simbolos-nazistas. Acesso em: 10 de fevereiro de 2022.
CARVALHO, Igor; MOTORYN, Paulo. Deus, Pátria, Família”: Bolsonaro usa lema da Ação Integralista Brasileira em carta à nação. Brasil de Fato, 9 de setembro de 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/09/09/deus-patria-familia-bolsonaro-usa-lema-da-acao-integralista-brasileira-em-carta-a-nacao. Acesso em: 10 de fevereiro de 2022.
FANTÁSTICO. Grupos neonazistas crescem 270% no Brasil em 3 anos; estudiosos temem que presença online transborde para ataques violentos. G1, 16 de janeiro de 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/01/16/grupos-neonazistas-crescem-270percent-no-brasil-em-3-anos-estudiosos-temem-que-presenca-online-transborde-para-ataques-violentos.ghtml. Acesso em: 10 de fevereiro de 2022.
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AIUB, Bruno. Como eu ja havia dito antes, eu conversaria ate com o Hitler em pessoa no Flow Podcast. Não existe assunto taboo, não existe pessoa proibida. Eu conversaria com um serial killer, sem problemas, dado as devidas precauções kkkkk. 15 de junho de 2020. Twitter: @monark. Disponível em: https://twitter.com/monark/status/1272684177012535296. Acesso em: 10 de fevereiro de 2022.
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