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OS CANAVIAIS






when i was younger i was a cobra

in every case i wanted to be cool

now that i'm older and sub-space is colder

just want to say something true

(the frontier index, silver jews)



Você já pensou sobre a morte? Eu não penso, tento evitar me absorver em coisas negativas. Ando em círculos na sala de estar, procurando alguma coisa que não está ali. Estou escapando dos pensamentos negativos, pois "o cinismo é contraprodutivo"; um dia li isso e me fez sentido. Ando escapando dos pensamentos negativos.


Me ocupo com imagens de um mundo melhor. O discurso é político e as imagens idílicas: são as árvores, o vento, o mar, um sorriso, por que não?. Todo texto é uma fuga, sempre as mesmas táticas: quanto mais abstrato, melhor; quanto menos único, melhor.


Admiro quem escreve sobre si próprio, pois é necessário coragem para assumir ao mundo que talvez você seja um pouco estúpido, mas, acima de tudo, que você tem a coragem de ter perdão de si mesmo. A pessoalidade é radical: é assumir que existimos e somos reais. Eu não tenho a coragem de assumir que sou estúpido, nem o brio para me perdoar; um complexo conjunto intricado perfeito singelo rígido de regras.


Mas falo de outro tipo de estupidez. O problema, hoje, com a estupidez é que as pessoas perderam o medo de serem constantemente estúpidas; é a convicção no próprio atraso, na ignorância. A estupidez da qual digo é inegavelmente humana e existe certa humildade em aceitá-la, ao contrário daqueles que se escondem nas grandes palavras que significam alguma coisa, floreando o discurso em busca da inatingível impessoalidade.


Das entranhas do Eu, se detém o relato pessoal, uma rota suja e hipócrita. Não existe saída pela tangente: você é imprestável e incrível, tudo ao mesmo tempo. É bem mais honesto do que tentar falar de todas as coisas que supostamente importam — o Sol e as outras estrelas —, como um subterfúgio para a autopreservação. Afinal, por que falar de si mesmo?


Em algum momento da minha vida, decidi que não queria ser o assunto. Não queria que as pessoas soubessem de mim, se por acaso isso fosse uma possibilidade no momento. Minha vida não devia ser tópico de discussão; era pessoal demais para ser observada, comentada, compartilhada. No momento em que algo deixa de ser posicionado no plano da discussão, aquilo deixa de virar tópico, mas continua existindo. Uma existência escondida desbotada covarde calculada segura distante. Desejava apagar o Eu sensível, temendo me banhar no rio que nos torna imortais. Anônimo, vagando na cidade que eu conheço, me escondo do mundo.


Pergunta da audiência: por que você finge que você não é real? Boa questão. Os sentimentos estão todos aqui: paixão, medo, desejo, ódio, amor. O corpo também está aqui, profundamente verdadeiro em suas medidas e ritmos disformes. Tudo está aqui, mas eu disfarço. Finjo que sou uma ideia, uma abstração.


Uma ideia de alguém interessante, mas distante. Bonito, mas sem ser narcisista, e inteligente, mas sem ser presunçoso. O truque é: talvez eu não seja todos esses adjetivos, mas talvez eu seja. E talvez eu seja apenas 67% deles, mas isso não é importante. Os adjetivos que eu adereço a mim mesmo e às outras pessoas, no fundo, não importam. Essa é a covardia da ficção: para falar de mim mesmo, faço de tudo para parecer que não estou. Criamos mundos imaginados, pessoas quase-perfeitas, cenários meticulosos.


Em uma estrada de canaviais, trilho um caminho sentimental, mas calculado. De uma maneira ou de outra, sei o que eu quero mostrar e o que eu quero esconder. Uma imagem hiper-real: majoro minha persona aos gestos que eu desejo que as pessoas conheçam em mim, uma exposição afetiva calculada tímida cínica. Qual a franqueza nisso? O quão verdadeiro sou comigo e com as pessoas se me reprimo pela dor de me lançar?


Nego minha própria humanidade: meu corpo exilado, meus caminhos tortos e o mundo dentro de mim são embalados em papel de presente, um presente nunca aberto. As interações familiares, sociais e românticas são reduzidas aos simulacros, sempre o mesmo embate entre o que eu acho que eu sou, o que eu gostaria de ser e o que está no meio de tudo isso. Como se fosse uma réplica minha, me sinto incompleto, um coadjuvante na minha própria vida. O medo de me lançar para o mundo supera a êxtase das emoções humanas.


A ficção é como nós nos tornamos eternos. Em um lago imaginário, pintamos as imagens das vidas que não vivemos ainda, mas que iremos viver. Mas, me lembro sempre de uma noite em Tiradentes, Minas Gerais. As luzes da cidade histórica apontavam para o chão e o dia se fechava nas montanhas no céu, o rosa e o azul recebendo a lua. Um vislumbre de um outro mundo que captei e nunca mais larguei, eternizado. A paranoia, o temor, o controle, todos estavam rendidos. Em Tiradentes, eu não me escondi.


Retomamos sempre à natureza, pois ela é verdadeira. Sem ordem, os temas universais estão todos ali: amor, medo, desejo, eternidade, morte. Pelas copas das árvores, eu me guio, percorrendo a trilha sem pressa, inventando e reinventando o espaço à minha volta. Aquelas plantas, aqueles galhos, todos eles recebem novas camadas de significados, puros e inocentes, fora do cinismo urbano.


Sob o sol que invade as folhas, sou honesto comigo mesmo. Sei minhas dores, não as escondo do mundo, assim como conservo minhas virtudes. A natureza é generosa: ela me acalma e me faz vislumbrar uma outra vida, um mundo melhor. Acordando com o sol se pondo e o barulho de água ao fundo, não tenho o que temer: sei que sou e serei amado, assim como amo e amarei. O amanhã não me assusta, pois o futuro é uma abstração que aguardo curioso: um horizonte real e muito, muito bonito.



Autoria: João Pedro Fernandes

Revisão: Gustavo Vandresen e Beatriz Nassar

Imagem de capa: Memoria (2021), dir. Apichatpong Weerasethakul / Reprodução: [FILMGRAB]


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