Há não muito tempo, passei por uma situação. Estava no mercado, fazendo compras básicas, com uma certa pressa. Notando minha pressa, um senhor questionou-me a razão. “Vai começar a minha aula”, respondi desconfortável. “E estuda onde?”, perguntou o curioso senhor, que arregalou os olhos ao me ouvir falar “FGV”. Muito elogiou a fundação, porém o que mais chamou minha atenção foi seu último comentário antes de pegar suas compras e partir: “quanto está a mensalidade agora? Já passou dos sete mil?”. “Eu sou bolsista”, respondi desconfortável. “Bolsista?”, disse, com certo deboche, “não sabia que a fgv era dessas... e lhe respeitam lá?”. Afirmei que sim, ao passo que o senhor exibiu uma feição sarcástica, mostrando sua descrença em mim. E então, sem dizer mais nenhuma palavra, foi embora. A pressa não me permitiu pensar muito naquele momento, mas, posteriormente, percebi o quanto aquela pergunta havia me incomodado. “E lhe respeitam lá?”. O deboche tornava-a ainda mais incômoda. Mas havia vindo de apenas um senhor aleatório que, por acaso, esteve na fila de um mercado na mesma hora que eu. Não era importante; então, por que me aborreceu tanto?
Tirando o elefante da sala, sim, eu me sinto respeitado na fundação. A questão, porém, não é se existe ou não respeito, mas o quão grande ele é. O deboche nas palavras daquele senhor foi o estopim para que eu encarasse uma realidade que buscava evitar: não é o mesmo nível de respeito de um aluno não-bolsista. E a maior prova disto são os olhares que recebo de parte notável do alunato ao fazer quaisquer queixas – não são os mesmos olhares compreensivos feitos à maioria, mas sim olhares reprovativos, que julgam minhas palavras diferentemente dos demais. Claro, pois não são palavras de um gvniano “comum”; são palavras de um gvniano bolsista. Lembro do que disse um aluno uma vez: “os bolsistas na gv são privilegiados; as festas pra eles são de graça”. Ao escutar isto, devo admitir, senti um grande desgosto (para não dizer desprezo) dentro de mim. Olhei para as pessoas que estavam em volta, que riam da “piada” que tinha sido contada, algumas delas dando risos que mais pareciam uma concordância. Ninguém exibiu o mesmo olhar reprovativo ao aluno que contou a “piada”, nem aos alunos que riram e tampouco para quem parecia concordar com ela (“ah, foi só uma piada”, tem quem possa defender). Porém, quando reclamei que o lanche da cantina não estava tão bom quanto no semestre passado, recebi tais olhares recriminantes – afinal, eu não sou um gvniano “comum”, e sim um gvniano bolsista (“já não paga a faculdade, por que está reclamando?”, pensam).
É verdade. Como bolsista, não preciso pagar para entrar nas festas. Assim como também é verdade que não posso ir a um lugar chique todo final de semana para me integrar com a turma. Assim como também é verdade que já deixei de ir em diversos eventos que me chamavam por precisar economizar dinheiro para comer na semana. E assim como também é verdade que já peguei chuva na cara e metrô sozinho tarde da noite por não poder pedir sempre um Uber. Coisas tão normais para o gvniano “comum”. Mas, no fim do dia, serei eu, o bolsista que não precisa pagar para ir às festas, o privilegiado.
Quando digo que possuo uma pressão diferenciada na fundação por ser bolsista, muitos retribuem a fala com um “todos temos, não só vocês”, como se em algum momento eu negasse isso. Óbvio, todos os alunos possuem pressão sobre suas costas; porém, o gvniano ”comum” possui o toque diferencial de saber que ganhar uma bolsa de estudos em uma faculdade de renome como a nossa é uma das maiores oportunidades de sua vida e que apenas pensar em perdê-la causa uma ansiedade enorme que faz parecer que tudo irá ladeira abaixo? Há aqueles que lerão essa afirmação e dirão “que exagero”, todavia, nenhum deles será um gvniano bolsista. Serão todos gvnianos “comuns”. Contudo, por mais que eu diga que exista essa pressão diferenciada, não digo isso com um objetivo de distinguir, vitimizar ou protagonizar os bolsistas em relação aos não-bolsistas; não pagar a faculdade e ter nossas próprias dificuldades, sejam quais forem, não nos torna alvos de piedade ou divergentes dos outros. No fim, todos nós tivemos de fazer uma prova para sermos aprovados e, daí, fazer as mesmas avaliações, viver no mesmo espaço e chegar cansados em casa no fim do dia. Enquanto dentro da faculdade, seremos todos alunos da Fundação Getúlio Vargas, independente de nome, dinheiro, família ou até mesmo posição no vestibular. Esse tipo de pensamento – a distinção do gvniano bolsista do “comum” - que muitos aparentam guardar dentro de si afasta ainda mais a representatividade na fundação que, convenhamos, já não está em alta. E não só a representatividade é ferida como também a imagem da faculdade e até mesmo os alunos que não pensam dessa forma, estes que sou honesto em dizer que, apesar de tudo, estão em maior número, mas são taxados negativamente por conta de uma menor quantidade.
Em aula, todos levantam uma bandeira social. Pregam igualdade e que o “pobre e o rico devem ter as mesmas oportunidades”. Fazem grandes discursos e criticam deputado, ministro, presidente e, se calhar, o papa. A diferença é que uma grande parcela destes, ainda que em menor número, apenas soltam as palavras como se fossem meros sons e, em seus cotidianos, pensam “olha o privilegiado que vai de graça em festa”. Inevitavelmente, ao fim de cada dia, fico a me perguntar: se essas pessoas separam até mesmo um aluno do outro só pelo motivo de um ser pagante e o outro não, o que dirá da vida rotineira? Da sociedade como um todo? E sou obrigado a dizer, me irritam as falsas palavras que soltam em aula como se fosse um cachorro latindo ou gato miando - pessoalmente, nem mesmo consigo chamá-los de hipócritas, pois sequer tentam fingir que fazem jus às palavras que dizem em aula. No fim, o gvniano bolsista tem que separar os alunos que se enxergam como “comuns” somente pelo fato de pagarem a faculdade daqueles que o vêem como realmente deve ser visto: um gvniano, que deve ser respeitado como qualquer outro.
E assim finalizo meu grande desabafo em forma de texto. Um desabafo, de certa forma, agridoce. É doloroso que eu tenha que desabafar por essas questões, mas, por outro lado, é reconfortante saber que existe um espaço para o desabafo, o que prova que nem tudo ou todos na fundação estão presos pelo contexto elitista em que vivem e que há aqueles, inclusive sendo eles a maioria, que procuram por um ambiente realmente confortável e representativo a todos. São as palavras desses, aliados às palavras dos bolsistas, e principalmente, os ouvidos de todos, que farão a diferença na FGV.
E essas foram as palavras de um gvniano bolsista, mas, acima disso, as palavras de um gvniano.
Autoria: Rauhã Capitão
Revisão: Enrico Romariz Recco, Luiza Sacco Parisi
Imagem de base: Vox
Arte: Xin Yan Zhou
Parabéns por ser bolsista, se é fez jus por ser, vai se formar como todos .
Em qualquer lugar sempre tem aqueles que se acham melhores , dignos de pena.