“Parem tudo! Fechem os bares, pausem as programações da TV, da rádio, dos jornais!” Grito, esperneio, choro, suplico, desespero. “Parem tudo! Eu tenho algo a dizer!”
E aí não tenho nada a dizer.
Querido diário,
Hoje o meu dia no estágio foi bem gostosinho. Eu tinha coisas a fazer, então não foi aquele tédio completo igual quarta da semana passada, mas também não foram coisas demais ao ponto de me causar uma síncope igual segunda. Minhas tarefas também eram desafiadoras o suficiente para não se tornarem maçantes, porém intuitivas o suficiente para não se tornarem desesperadoras, então eu diria que, de modo geral, o dia de trabalho foi um sucesso.
Minha chefe me convidou para tomar um café com ela e eu não fui. Ela gosta do café do outro lado da rua e eu gosto do café que fica do ladinho do escritório, porque eu conheço todos os funcionários por nome e eles sabem qual o meu tipo de lanche natural favorito. Tudo bem que a comida do outro lado da rua é mais gostosa, mas eu sou uma mulher de hábitos e conheci o café do ladinho do escritório primeiro, no dia da minha entrevista.
“Sou uma mulher”. Que coisa estranha de dizer. Tenho pensado muito na menina que eu era com doze anos, sempre a última a ser escolhida nos times de educação física. Isso que eu já era alta. Essa brincadeira de ser meio descoordenada perdeu a graça rápido.
Eu sei, eu sei. Escrevo demais sobre o passado. Você cansou, eu cansei, os revisores cansaram, todo mundo cansou. Não sei o que me acontece.
Direto me vejo como a menina de doze anos sendo escolhida por último nas aulas de educação física, aquela que voltava para casa chorando no carro do pai. Ele me dizia, ele me falava assim: “Calma, filha. Acontece. Na nossa família, a gente é meio ruim de esporte mesmo. Eu nunca saí do banco de reserva do time de futebol do bairro quando era criança, então a gente montou o time dos reservas, dos ruins. Vocês deviam fazer um time dos ruins também.”
E, ai, pai, talvez a gente devesse mesmo, viu? Vai que daí eu dou certo em alguma coisa. Aí, sim, ia ser legal.
Querido diário,
Escuta, ESCUTA, escuta — será que a árvore reconhece o som da serra? Será que a areia sente o vai e vem do mar? Com que frequência eu me permito ver-me? Será que me conheço, me ouço? Será que o fogo receia a chuva, o sol teme a noite, o pássaro apavora o tiro, será que me vejo?
Será que sou alguém? Será que existo? Parem tudo! Será que alguém lerá minhas poesias, minhas súplicas, minhas lágrimas? Meus sorrisos?
Será que oferecerei algo a ser lido? Será que eu, menina de vinte anos, última a ser escolhida na hora de montar os times da educação física, serei capaz de oferecer algo a ser lido? Será que já o ofereço? Quem me lê?
Acho que agora já estamos ficando meio pretensiosos. Tudo bem se ninguém ler. Os revisores leem, fiquei sabendo. Que saudade da minha melhor amiga. Ela me leria, tenho certeza.
Querido diário,
Me devaneio em fluxo de pensamento, o encadeamento não é muito regular e muitas vezes me foge o significado. No começo da frase se usa ênclise, mas às vezes parece que não soa muito bem. Além disso, quem aqui é especialista em gramática? Não tem curso de Letras na FGV.
Não sei onde a graça disso tudo foi parar. Ando meio cansada, mas não o suficiente para ser importante. “Preciso de férias!” Grito, esperneio, choro, suplico, desespero. Aqui, uso desespero como verbo, não substantivo comum. Lá em cima também. Desespéro, não desespêro. Metalinguagem e tudo o mais. Já disse que estamos ficando pretensiosos.
Escrevo sempre as mesmas coisas — sou uma mulher-menina de hábitos. Me disseram que tudo bem e que nem todo texto precisa ser brilhante. Infelizmente, nunca me contento com qualquer coisa menos que brilhante, o que é definitivamente pouco ideal para alguém que pertence ao time dos ruins.
Que droga, pausem a programação da TV! A autora está sendo pessimista de novo!
Logo eu, autora, que conheço todos os funcionários do café do ladinho do escritório por nome e pego a cachorrinha da síndica do meu prédio no colo. Esses dias, um dos meus vizinhos, aquele senhor que responde meus “bom dia”s com grunhidos, grunhiu um “boa aula” ao me ver saindo de manhã. Que gentileza, “boa aula”. Não me vejo, mas há quem veja. Há quem ouça. Há quem lê?
Querido diário,
Fiz um segundo furo nas orelhas. Coisa de menina, estou alguns anos atrasada. Fechem os bares, a menina-mulher ainda não sabe muito bem estacionar. Dirigir, tudo bem, agora estacionar… De que adianta saber fazer qualquer coisa quando não se sabe a hora de parar? Fechem os bares, não a deixem ir! Ela fica bem em casa.
Ou não. Ouvi dizer que ela gosta de sol, de clima tranquilo e de céu azul. Mas estacionar é muito difícil. Talvez fique melhor em casa. Ninguém vai ler, mesmo.
Querido diário,
Outro dia, peguei um Uber com o mesmo motorista que já tinha pego em outra ocasião.
Qual a chance, em uma cidade de quase doze milhões (quatorze Sorocabas, setenta e uma Itus, mil Joaquim Távoras) de pessoas, de se pegar o mesmo Uber duas vezes? Qual a chance, meu Deus, de que ainda nos reconheceríamos? Porque nos reconhecemos. Ele disse assim: “Acho que já te busquei aqui antes”. Eu disse assim: “Acho que já, mesmo.”
Parem tudo, parem a programação da rádio, quem me lê? Alguém deve me ler, de vez em quando, quando sobra tempo. Talvez eu mesma. Será? A árvore reconhece o som da serra. Como o céu anda bonito. Como o clima anda ameno. Como as pessoas andam gentis. Como? Talvez não. Romantizo. Mandei pausar a programação dos jornais, tenho algo a dizer!
Escuta, ESCUTA, escuta — tenho algo a dizer! Tenho algo a dizer! Tenho algo a dizer! Parem tudo, tenho algo a dizer! Tenho algo a dizer! Tenho algo a dizer!
Querido diário,
Autoria: Anna Cecília Serrano
Revisão: André Rhinow e Enrico Recco
Imagem de capa: Pinterest
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