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PRECISAMOS FALAR SOBRE SEXO




Na última semana saí da minha casa para ir ao cinema, uma atividade que não aprecio tanto (prefiro ver filmes do conforto do meu lar), para assistir o tão bem falado filme Poor Things (ou Pobres Criaturas, caso você seja decolonial). Foi uma experiência que, acima de tudo, me deixou chocado. 


O choque ao qual me refiro aqui não veio pelo filme, que aliás é ótimo.[2] Aproveito para recomendar que você vá ver o mais rápido possível. O choque em questão veio de algo que reparei (e vivenciei) ao longo das quase duas horas e meia do longa: a geração z não sabe lidar com o sexo e com a sexualidade em geral. 


O que me deixou abismado e virou objeto de reflexão, me fazendo chegar à constatação anterior, foi o comportamento de quatro meninas que sentaram atrás de mim. Não eram muito mais novas do que eu, deviam ter entre dezessete e dezoito anos. Eram, entretanto, muito mal-educadas. Falaram durante todo o filme, atrapalhando a experiência das demais pessoas que lotaram a sala para apreciar a obra de Yorgos Lanthimos. 


Inicialmente fiquei bravo e pedi por silêncio. Não fui atendido. Com o passar das cenas, com diversos momentos explícitos, pude reparar nos comentários de choque, repreensão e quase asco que as quatro soltavam. Isso me fez lembrar de um debate que vem crescendo nas redes sociais, justamente a respeito do trato que a nova geração (na qual me incluo) tem com o sexo ou com tudo que seja explícito. 


Sim, parece não fazer sentido. Como os mais jovens, em pleno 2024, em tempos nos quais a liberdade de expressão poderia ser maior e mais disseminada, passaram a aderir ao movimento de retrocesso e conservadorismo? 


Por mais peculiar que seja essa afirmação, ela não passa da mais pura verdade. Se duvidar, uma busca rápida pela internet e pelas redes sociais revela que muitos grupos que atacam, criticam ou se privam do consumo de obras que não se alinhem com suas expectativas morais são compostos por pessoas bem jovens. Para eles, a máxima de que “a arte incomoda” não passa de balela. 


Entretanto, se hoje assistimos a um fenômeno de quase retrocesso, devemos lembrar que não foi assim que a cultura do Brasil e, me atrevo a dizer, de boa parte do mundo, foi construída nas últimas décadas. 


O Brasil pós era Vargas assistiu a uma enorme efervescência cultural na música, na literatura e no cinema. O país cristão dos colonos portugueses passou a dividir a cena com obras que exaltavam o erotismo e a sensualidade, no caso das grandes pornochanchadas da Boca do Lixo[3], ou a desigualdade e a violência, como nas obras aclamadas do Cinema Novo[4]. Nada disso, entretanto, era validado como polido, agradável e esteticamente aceitável. Se hoje o cinema brasileiro das décadas de 60, 70 e 80 é cult, legal como assunto em uma roda de amigos intelectuais, lá atrás era até mal visto pela censura ditatorial. Mesmo assim, prevaleceu e foi um sucesso. Devemos lembrar, por exemplo, que em 1978 o povo lotou salas para assistir A Dama da Lotação, filme erótico estrelado pela grande Sonia Braga, sexta maior bilheteria do país.[5]


A polidez deu lugar para uma revolução de corpos, de expressões e de pensamentos. Não só nas telas e não só no sexo a cultura do país se viu enriquecida. Clarice Lispector fez suas personagens feias, fracassadas, ingênuas. De donas de casa frustradas a devoradoras de baratas [6], os pensamentos da ficção refletiam os reais, de uma sociedade em transformação, cansada da mesmice da moral e dos bons costumes. 


É claro que a efervescência cultural que cultuou o que era mais condenado pelas cúpulas conservadoras não foi exclusiva do nosso país, mas se perpetuou pelo mundo todo. Assim, seguiram décadas de produções culturais que se rebelaram contra um sistema careta, chato e moralista em várias nações. 


Meu foco, entretanto, se dá no Brasil justamente por ser um país que, fundado na moralidade cristã, precisou se libertar desta para encontrar triunfo sociocultural. Infelizmente, porém, hoje o que ocorre é uma onda cada vez maior de jovens com seus 17, 18 ou mesmo 20 e tantos anos assumindo posturas de carolas e caxias e recriminando tudo o que não seja agradável ao olhar ingênuo de uma geração pouco versada sobre a revolucionária arte da sexualidade, do cruel ou da dubiedade. 


Se nos anos 70 a pornochanchada dominou as salas de cinema, hoje seriam criticadas por imensas threads no Twitter, que apontariam o “desnecessário” teor sexual das histórias. O escrachado seria alvo de análises das menos profundas e das mais toscas para revelar a doença de uma sociedade sexualmente compulsiva. Algo assim, acredito eu, e como já pude ver enquanto rolava a timeline, é mais do que possível de acontecer a qualquer obra, moderna ou antiga, que não agrade às lentes frágeis do público contemporâneo. Por mais chocante que seja, essa é a nova realidade.


Se antes famílias se reuniam em volta da televisão para assistir ao Sexo dos Anjos [7], à Tiazinha com seu corsellet de couro [8] ou o pastelão da Banheira do Gugu [9], tudo isso muito antes dos modernetes e das redes sociais, hoje a geração jovem (a mesma que deveria carregar o fardo da modernidade e do desprendimento) vai na direção oposta. Assusta ver como o conservadorismo tomou conta. 


Rita Lee, um ótimo exemplo de desprendimento que devia ser seguido nos dias de hoje, ousou cantar, lá atrás, coisas que aqui na frente chocariam a sensível parcela da juventude. Os seios, tão banais no horário nobre de várias obras da Rede Globo, seriam um escândalo assim como foram os seios de Emma Stone para aquelas quatro meninas atrás de mim no cinema. Mesmo entre saias justas e rodas vivas[10], a população foi se esquecendo de se atrever, de se colocar no lugar do gráfico ou mesmo do ridículo para poder enxergar um pouco mais da vida do que os dogmas sociais antiquados esperavam. 


Nestes exemplos infinitos tento ilustrar meu ponto: o mundo de hoje corre o risco de se tornar igualmente, senão mais, careta do que era há meio século. A luta e a revolução cultural não avançaram. Pelo contrário, encontraram inimigos devotos a enterrar tudo que seja “pesado demais”. Pior ainda, o imediatismo das redes sociais esvaziou tanto as coisas que a arte encontra resistência para ser consumida livremente por um público que não consegue compreender subjetividades ou mesmo as nuances da humanidade. Esses jovens vão hoje para as redes exigindo consumir obras utópicas, ideais ao seu mundo quase cor de rosa. Cobram dicotomias fantasiosas, nas quais herois e vilões são claramente definidos, diálogos são claros e sempre coesos e ninguém nunca fere ou é ferido. Mas claro, pois assim é a vida real, não é?


Veja bem, o que trago aqui não é uma problematização do quanto a geração x, y ou z se apoiou no sexo, no grotesco ou no escrachado para criar cultura ou se libertar. Também não condeno a preferência de certas pessoas pelo romântico, o ideal ou o esteticamente agradável. O problema real é a crescente onda de aversão completa, de perseguição ou mesmo de julgamento ao que foge do padrão moral criado pela imaginação rasa de cidadãos de 18 ou 19 anos. Não há uma cultura mais ou menos certa de ser consumida. Gostar de Heartstopper não torna ninguém melhor do que os que cresceram com Glee. Ser conservador não coloca pessoa alguma em um pedestal ético e rejeitar obras polêmicas ou gráficas não faz de ninguém um ser humano mais puro. 


Mas o que pode ter causado tudo isso? Em qual ponto a juventude cansou de inovar e resolveu se agarrar a essa repulsa ao não-ortodoxo? O que levou uma massa de pessoas, por exemplo, a atacarem o longa de Lanthimos por “cenas de sexo demais” ou, como falaram, “desnecessárias”[11]. A resposta é muito complexa e envolve aspectos sociais e culturais que permeiam a peculiar formação da nova geração. Certamente estudiosos e psicólogos podem falar sobre isso muito melhor do que eu, mas uma coisa é fato: estamos em um momento de tamanho conforto para a expressão do que é dissidente ao status quo que se tornou muito mais fácil rejeitá-la do que continuar inovando. Adicione nessa operação uma pandemia, que colocou milhões de jovens no isolamento forçado e atrapalhou seu desenvolvimento e relações interpessoais, e temos como resultado uma massa de pessoas pouco versadas sobre tudo que difere do mundo pintado por si próprias. 

 

Mais do que o questionamento de onde veio, me preocupo para onde iremos. Sim, esse conservadorismo pode começar nas artes e na literatura, mas pode se estender a outros campos da sociedade. Não à toa, assistimos também a uma onda de jovens conservadores se alinhando a movimentos da extrema direita, encontrando na internet ambientes confortáveis para expressar preconceitos e perseguir minorias. A geração “lacradora”[12] está envelhecendo, se tornando cômica. Todas as críticas, claro, são válidas, pois esse grupo pouco avançou nas suas pautas e não conseguiu trazer profundidade para debates. Mesmo assim, foi importante que, lá atrás, adolescentes entrassem em contato com esse mundo para que hoje, enquanto adultos, não se alinhassem a pensamentos retrógrados e, muitas vezes, moralistas e preconceituosos. O caminho oposto, infelizmente, vem sendo trilhado. 


O referencial tosco da “lacração online” fez com que cada vez mais jovens se afastassem das discussões e da movimentação que permitiam libertar o pensamento e aceitar diferenças, fossem elas sociais, raciais ou culturais. Nessa onda, o corpo, a sexualidade e tudo que seja dissidente se tornou passível de crítica, de chacota e de aversão. O país do samba, do futebol e, ofensivamente, do sexo, está perdendo espaço para o país da castidade, da critica e da caretice. 


Ainda há esperança, claro. Não são todos os jovens que pensam e agem seguindo dogmas ultrapassados. Mas preocupa pensar que aquelas quatro adolescentes no cinema são a ponta do iceberg para algo muito maior e perigoso, que pode, futuramente, representar muito mais do que uma thread no Twitter ou uma aversão aos seios de uma atriz em uma tela de cinema. 


Em meio a essa guerra de Transas e Caretas[13], fico com os ensinamentos que tive em casa: nunca se fechar para uma experiência, por mais divergente que ela seja de seus gostos pessoais. Afinal, tudo é experiência. O sexo, o amargo, o doloroso e o escrachado… tudo faz parte da realidade bonita que é vida. Trazer isso à tona não revela muito mais do que as muitas dores e as várias delícias de sermos quem somos. 


Texto: Arthur Quinello

Revisão: André Rhinow, Artur Santilli e Laura Freitas.

Imagem de capa: Sonia Braga em A Dama da Lotação- MUBI. 


 

Referências


Ao longo do texto, foram feitas referências a várias obras do cinema, da televisão ou da literatura. Acompanhe abaixo:


[1] Música Amor e Sexo, da cantora Rita Lee


[2] Pobres Criaturas é uma bela sátira sobre a tirania da propriedade privada. Maxine Peake e Chandler Dandridge. Disponível em: <https://jacobin.com.br/2024/02/pobres-criaturas-e-uma-satira-agucada-sobre-a-tirania-da-propriedade-privada/>. 


[3] Pornochanchada: o lado erótico do cinema brasileiro nos anos 70. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/almanaque/historia-pornochanchada-cinema-brasileiro.phtml>. Acesso em: 7 mar. 2024.


[4] Cinema Novo | Academia Internacional de Cinema (AIC). Disponível em: <https://www.aicinema.com.br/cinema-novo/>.


[5] A Dama da Lotação. ADOROCINEMA. A Dama do Lotação. Disponível em: <https://www.adorocinema.com/filmes/filme-143418/>. Acesso em: 7 mar. 2024.


[6] Referência às obras Laços de Família e A Paixão Segundo G.H, respectivamente, da autora Clarice Lispector. 


[7] Novela brasileira exibida originalmente em 1990.


[8] Tiazinha, personagem de Suzana Alves. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Suzana_Alves>. Acesso em: 7 mar. 2024.


[9] Ícone dos anos 90, banheira do Gugu teve Alexandre Frota, Nana Gouvêa e Solange Gomes. Disponível em: <https://extra.globo.com/tv-e-lazer/icone-dos-anos-90-banheira-do-gugu-teve-alexandre-frota-nana-gouvea-solange-gomes-24093108.html>. Acesso em: 7 mar. 2024.


[10] Programas brasileiros exibidos desde 2002, pelo GNT, e desde 1986, pela TV Cultura, respectivamente. 


[11] Opinião - X de Sexo Por Bruna Maia: Cenas de sexo de “Pobres Criaturas” provam que as pessoas se chocam com pouca coisa. Disponível em: <https://f5.folha.uol.com.br/colunistas/x-de-sexo/2024/02/cenas-de-sexo-de-pobres-criaturas-provam-que-as-pessoas-se-chocam-com-pouca-coisa.shtml>. Acesso em: 7 mar. 2024.


[12]O bolsomito e a geração lacradora. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/bolsomito-e-a-geracao-lacradora/>. Acesso em: 7 mar. 2024.


[13] Novela brasileira exibida originalmente em 1984.


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