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Nas últimas semanas, os meios de informação e as redes sociais foram tomados por notícias sobre o Afeganistão. Com a retirada das tropas estadunidenses do país, encerrando um período de 20 anos de ocupação, o Talibã, grupo fundamentalista islâmico, avançou sobre as principais cidades afegãs e tomou a capital Cabul em 15 de agosto. A ocupação estadunidense teve como objetivo inicial acabar com o governo Talibã no Afeganistão que, de acordo com Washington, dava apoio à Al-Qaeda, organização responsável pelos ataques de 11 de setembro de 2001. Assim, a volta do Talibã levantou preocupações ao redor do mundo devido ao histórico de violações aos direitos humanos pelo grupo fundamentalista.
Visando compreender um conflito permeado por questões históricas e disputas geopolíticas, a Gazeta Vargas entrevistou André Guzzi, um dos coordenadores do curso de Administração Pública da FGV e professor de Relações Internacionais no mesmo curso. Guzzi é doutor em Ciência Política pela Graduate Center, City University of New York, com concentração nas áreas de Relações Internacionais e Política Comparada. Suas áreas de pesquisa focam em statebuilding e desenvolvimento de países pós-conflito.
Na entrevista, o professor comentou questões como o papel da comunidade internacional e dos Estados Unidos nessa crise, as potenciais violações de direitos humanos sob o controle Talibã e como um mundo tomado pelas redes sociais pode causar impactos no conflito.
Confira a entrevista completa:
Nos últimos dias, muito se comparou o fracasso militar dos Estados Unidos no Afeganistão às outras campanhas militares americanas malsucedidas, como no Vietnã, ou com resultados negativos, como no Iraque. Quais semelhanças e diferenças você enxerga entre o papel dos Estados Unidos no Afeganistão nos últimos 20 anos e essas outras intervenções?
Podemos enxergar semelhanças e diferenças em termos contextuais. A Guerra do Vietnã acontece no momento da Guerra Fria, em que as guerras aconteciam por proxy, onde não existia um embate direto entre as grandes potências, mas sim situações em que dois lados, sejam dois países diferentes, sejam grupos diferentes de um mesmo país, estavam lutando, um lado com suporte dos Estados Unidos e o outro lado com suporte da União Soviética. A Guerra do Vietnã foi lutada de fato por forças dos Estados Unidos e do Vietnã, com financiamento e apoio norte-americanos.
Isso já nos remete a uma primeira similaridade com o caso do Afeganistão, em que a força militar do país recebeu suporte dos Estados Unidos, tanto em termos de treinamento quanto de financiamento. Além disso, em ambos os casos, os Estados Unidos se retiraram frente a uma derrota militar, pois as forças contra as quais eles lutavam não foram combatidas nem desmobilizadas.
A comparação entre o Afeganistão e o Iraque é interessante porque os dois aconteceram ao mesmo tempo. Inclusive, a invasão no Iraque em 2003 aconteceu enquanto as tropas dos Estados Unidos estavam no Afeganistão, afetando a intervenção militar neste país. Primeiro porque o Iraque passa a ser uma prioridade para os Estados Unidos e a missão no Afeganistão passa a ter um propósito e objetivo menos claros. Além disso, vale ressaltar que outra diferença entre os dois casos é a legitimidade e legalidade que ambas as intervenções tiveram no cenário internacional. Enquanto a intervenção do Afeganistão recebeu suporte do Conselho de Segurança da ONU, o que fez com que os Estados Unidos pudessem contar com um maior apoio internacional, a do Iraque não teve a aprovação do Conselho de Segurança e a intervenção ocorreu de maneira unilateral dos Estados Unidos, contando com alguns poucos aliados na investida, como por exemplo do Reino Unido.
No que tange a similaridades entre o Afeganistão e Iraque, pode-se pontuar que além da invasão militar, ambos passaram por um processo fracassado de construção internacional do Estado, chamado de statebuilding. O processo de statebuilding consiste no envolvimento de atores internacionais para a construção das mais diversas instituições do país, sejam elas políticas, econômica, militar e de infraestrutura. Nos dois casos, esse processo foi mal sucedido pois os atores internacionais envolvidos não conseguiram desenvolver instituições fortes o bastante para garantir que elas fossem consolidadas e enraizadas nas sociedades desses países. Apesar de inúmeros os problemas desse processo, desde suas premissas até aspectos operacionais, pode-se dizer que o principal deles é que foram feitos de cima para baixo, deixando de lado os interesses e vozes locais para essa construção.
Portanto, os três casos representam o fracasso dos Estados Unidos e seus aliados em intervir em conflitos internacionais, tanto para realizar intervenções militares, quanto nas suas tentativas de construção do Estado.
Qual é o papel dos Estados Unidos no que tange à conjuntura atual do Afeganistão e quais movimentos futuros poderiam ser esperados com base nos acontecimentos atuais?
Os Estados Unidos são em grande medida responsáveis pela retomada do grupo fundamentalista e extremista, Talibã, ao poder no Afeganistão. Os EUA intervieram no Afeganistão há aproximadamente 20 anos como uma resposta aos atentados de 11 de setembro de 2001. A intervenção se justificou pelo fato do Talibã, naquele período no governo do país, estar dando apoio e proteção ao grupo da Al-Qaeda, que se responsabilizou pelo atentado. Durante esses 20 anos no Afeganistão, os Estados Unidos, junto com a OTAN e a ONU, com sua missão de assistência, UNAMA, foram responsáveis tanto pela construção do Estado quanto pelas operações militares de combate aos grupos reconhecidos pelos EUA como terroristas, incluindo, sobretudo, o Talibã e a Al-Qaeda.
Vale destacar que o presidente atual dos Estados Unidos, Joe Biden, vem buscando alegar menos responsabilidade da atuação do país no processo de statebuilding no Afeganistão alegando que sua atuação no país foi promover operações de estabilização, ou seja, com o objetivo de interromper a guerra - e não de construir o Estado. No entanto, uma das missões dos EUA foi organizar, treinar e financiar as forças nacionais do Afeganistão. Dois questionamentos surgem a partir disso. Primeiro, a construção das forças armadas de um país faz parte de um projeto de statebuilding e, em se tratando de contextos de pós-conflito, é um dos elementos centrais do projeto. Segundo, mesmo que os Estados Unidos não tenham se envolvido diretamente nos diversos aspectos do statebuilding, por exemplo, o de construção de instituições políticas e econômica, quem se encarregou disso foram outros países e organizações internacionais, como vários órgãos e agências da ONU, sobre os quais os Estados Unidos exercem grande influência. Portanto, apesar de tentar alegar não envolvimento, os Estados Unidos têm responsabilidade no processo fracassado de statebuilding no Afeganistão. Além disso, mesmo que tivessem responsabilidade apenas nas operações de estabilização, os EUA não conseguiram evitar que, assim que suas tropas se retiraram do país, o Talibã conseguisse avançar de forma muito rápida sem grande esforço, chegar na capital, Cabul, e assumir o governo.
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Membros do Talibã nas ruas de Cabul - Foto: Rahmat Gul/AP
Pensando num cenário macro da geopolítica, quem, além do Talibã, poderia se beneficiar com a atual conjuntura afegã?
A região continua sendo palco de interesses políticos de grandes potências. Em termos geopolíticos, o Afeganistão é localizado em uma região relevante pois está entre o Irã, Sul da Ásia, China e Ásia Central. Logo, estando em um centro que é importante para diversos países, o envolvimento com o Afeganistão acaba por entrar em uma equação de interesses internacionais de várias potências, que podem se beneficiar de uma relação com o Talibã. Por exemplo, a China já vem construindo uma relação com o grupo, e isso vai em direção às suas estratégias de busca por recursos naturais, sobretudo por meio da sua iniciativa One Belt One Road. Outro país que tem grande interesse na região é a Rússia. No entanto, este país se beneficia mais pelo não envolvimento dos Estados Unidos no Afeganistão do que pelo fato do Talibã estar no controle do país. Sua preocupação é com a estabilidade regional e, portanto, com a relação do Talibã com os países vizinhos. Nesse sentido, vale mencionar que a Rússia, tanto por interesses de manutenção dessa estabilidade, quanto para garantir um preenchimento do vácuo de poder na região em razão da retirada das tropas dos EUA, já vem realocando tropas na região, sobretudo em Tadjiquistão, país vizinho do Afeganistão.
Considerando tanto o histórico de violações aos direitos humanos pelo Talibã quanto as violentas e pouco eficientes interferências militares externas, como a comunidade internacional deve se posicionar a partir de agora?
Existem várias questões nessa pergunta que precisam ser tratadas. O próprio termo "comunidade internacional" é problemático porque a comunidade internacional é composta por diversos atores, com interesses e escopos de atuação distintos. Em relação aos países, como mencionado anteriormente, a atuação vai ocorrer dependendo de um cálculo de seus interesses na região e na forma como (e se) querem se envolver na situação atual do país. Isso irá definir, por exemplo, o nível de diálogo que irão estabelecer com o Talibã e se reconhecerão ou não o governo. Será nas organizações internacionais que os países tentarão decidir em conjunto os rumos que poderão ser dados ao país. Exemplos de ações conjuntas seriam monitoramento sobre a situação de direitos humanos no Afeganistão, assistência humanitária e tratamento aos refugiados. Por fim, temos também as agências de assistência humanitária, algumas das quais permanecem no país após a saída das tropas dos EUA e que precisarão negociar com o Talibã para garantir que os serviços prestados continuem chegando à população.
Parece uma resposta óbvia que pautas identitárias e a liberdade das mulheres serão atacadas e reprimidas no regime do Talibã. A organização é a mesma, mas algum aspecto cultural pode ser mudado nesses 20 anos de modo que as mulheres e as outras minorias não sofram violações semelhantes às de duas décadas atrás?
Ainda não está claro. O discurso do Talibã é que houve uma mudança do grupo nesse sentido, mas ao mesmo tempo, desde quando chegaram ao poder, já foram presenciadas situações de extrema violência contra os protestos que estavam havendo na medida em que avançavam em direção à capital.
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Afegãos celebram o Dia da Independência Afegã - Foto: Wakil Kohsar/AFP
É evidente que a crise no Afeganistão terá como consequência uma nova onda de refugiados afegãos tentando sair do país, seja para países vizinhos, seja para a Europa, onde a imigração é um tópico sensível e com fortes contornos políticos. No contexto global atual, como você visualiza a questão da imigração, considerando as tendências políticas atuais?
Estamos assistindo à situação no aeroporto de Cabul, em que as pessoas estão tentando fugir do país e isso é um indício de que haverá uma grande busca por refúgio por parte dos afegãos. Alguns pontos valem ser considerados sobre esse tema. Primeiro, seguindo uma característica comum das crises de refugiados, grande quantidade da população afegã buscará asilo em países vizinhos. Isso poderá causar uma grande onda de refugiados na região e, por isso, um esforço deve ser feito para mitigar uma decorrente crise humanitária. Segundo, países como os da União Europeia precisam reconsiderar suas políticas de entrada de refugiados com urgência, para que não se repita o mesmo que ocorreu com os sírios. Por fim, países como Estados Unidos e Reino Unido já estabeleceram números específicos de autorização para entradas de afegãos no país, mas, para que essa medida seja eficiente, tais números precisam ser revistos durante todo o processo de chegada de novos solicitantes de refúgio.
Apesar de todas essas prescrições, vale ressaltar que o cenário não é o mais otimista. Diversos países, sobretudo da União Europeia, têm assumido uma postura nacionalista, contrária a movimentos migratórios e, somado a isso, o contexto da pandemia tem tornado as fronteiras dos países ainda mais rígidas.
Por último, tendo em mente a conjuntura de um mundo regulado pelas redes, no qual a velocidade cada vez maior do fluxo de informações se choca à desinformação também crescente, por exemplo, quais são os impactos, sejam eles positivos ou negativos, que as redes sociais podem ter no conflito?
Em primeiro lugar, o que está acontecendo no Afeganistão é uma situação muito específica, dentro de um contexto em que a intervenção falida dos EUA não conseguiu evitar que um grupo fundamentalista voltasse ao poder. Esse contexto precisa ser bem entendido, pois muitas vezes as redes sociais podem enquadrar a situação como uma questão de Ocidente vs. Oriente, reforçando estigmas que não contribuem em nada para o debate sobre a situação que o Afeganistão enfrenta.
Outra questão sobre as redes sociais que tem sido bastante discutida é que, diferente do que aconteceu no primeiro governo do Talibã, entre 1996 e 2001, que antecedeu a intervenção dos Estados Unidos, a situação do país e as ações do Talibã contra a população poderá ser acompanhada em tempo real. Por um lado, isso poderá garantir maior conhecimento e atenção dos atores internacionais sobre o que está ocorrendo no país. Por outro, isso também pode pressionar tais atores para tomar ações que, se não forem feitas de maneira cautelosa, podem agravar ainda mais o problema.
Autores: João Pedro Fernandes e Tiz Almeida
Revisão: Bruna Ballestero, Cedric Antunes e Glendha Visani
Imagens: CHRIS HERBERT / US AIRFORCE / AFP, Wakil Kohsar/AFP e Rahmat Gul/AP
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