O texto de hoje é do nosso redator Bruno Daré! A vida é repleta de recomeços, capazes de abrir as portas para novas experiências, novas ideias. Como vocês interpretam a ideia de "Recomeçar"? O que ela diz (ou não diz) a respeito da nossa existência como seres humanos?
Quando penso numa ideia para um texto, encontro obstáculos logo no início de sua criação: não sei bem como começar. Insisto por saber que há entusiasmo em construir algo novo. Não estou sozinho: superado o bloqueio criativo, imagino que todos encontramos prazer em assistir à nossa própria criatividade desabrochar num projeto inédito, do zero. Desculpe a dose de metalinguagem, mas esse texto é sobre isso, sobre recomeçar. É também sobre “Recomeçar”, com r maiúsculo, mas falarei disso depois.
A vida talvez seja feita de recomeços, e acusar a frase de clichê não a torna menos verdadeira. Recomeçar é sobre terminar um relacionamento, sobre trancar o curso, sobre mudar de opinião, sobre semana de provas. Todo fim, no fundo, é sobre um novo começo, e particularmente a nossa espécie, desacompanhada no reino animal, precisa lidar com a finitude da vida. Assim, é natural pensar que recomeços são mecanismo de sobrevivência.
O mito de Sísifo ilustra o que pretendo dizer – a aventura grega conta que Sísifo foi condenado a rolar eternamente uma grande pedra de mármore até o cume de uma montanha, mesmo sabendo que ela inevitavelmente cairá de volta até o ponto de partida, e que ele então rolará a pedra novamente. A concepção filosófica do recomeço estava presente já na reflexão grega, a metáfora retrata a dinâmica cotidiana de uma pessoa comum: rolar a pedra até o topo, assistir a pedra rolar até o início, reinventar motivos para recomeçar.
Albert Camus, filósofo francês, dedicou um ensaio a este mito grego, no qual explicou aquilo que chama de absurdo. O “absurdo” reside na impossibilidade de entender o mundo e na vontade insaciável do ser humano de entendê-lo, ou seja, o absurdismo é encontrado na insensatez da realidade por mentes que buscam sensatez. Camus dirá que as pessoas lidam de maneira diferente com o absurdo. Algumas, descritas como covardes pelo filósofo, escolhem fingir que não há absurdo, inventam sentidos falsos para a vida e para a existência, enganam-se para encontrar conforto. Sísifo, por outro lado, abraça esse mesmo absurdo de maneira admirável – encontra razões próprias para rolar a esfera de mármore mais e mais vezes, embora reconheça essas razões como arbitrárias e não universais.
Conheci o “mito de Sísifo” de Albert Camus, há pouco mais de um ano, num momento de hiato que vivi - não sabia exatamente como ou quando dar um recomeço na minha vida. Encontrei alguns porquês nessa obra, e encontrei muito alívio e conforto em “Recomeçar”, álbum do Tim Bernardes, na mesma época. Talvez seja mais correto dizer que o algoritmo do Spotify me encontrou. De qualquer forma, suas composições se comunicam com términos, começos, e meios, e de certo modo com os parágrafos anteriores.
O álbum é introduzido pela faixa de abertura, que te insere na atmosfera da obra, tocando a melodia tema com arranjos orquestrais, que se inicia com um piano cru, e logo vai se sofisticando com voz, harpa e violino. As faixas que seguem são costuradas por letras que falam sobre a vida amorosa e pessoal, sob um olhar introspectivo – acompanhadas por melodias igualmente tímidas e introvertidas, que misturam aconchego e melancolia, mas que acalmam os ouvidos.
“Quis Mudar”, “Pouco a Pouco” e “Calma” são algumas das músicas que se destacam no decorrer do disco, deixando saltar as características centrais da obra toda, com líricas que tratam da ideia de recomeçar: “Eu quis mudar/ E isso implicava em deixar para trás/ Meu chão, meu conforto, o certo, a paz/ Eu fui a procura de mais”. A autointitulada faixa, que conclui o disco retoma aquela melodia da abertura, dessa vez acompanhada de uma letra – “A dor do fim vem pra purificar, Recomeçar” – e então te abandona num silêncio desconfortável, quase que para te ajeitar para um novo recomeço. É como se fosse de fato a dor do fim concretizada com o fim do disco.
O tímido silêncio que resta se torna o incômodo que habita nosso pensamento, é o desconforto que motiva mais um recomeço. É o desconforto que faz um entusiasta do absurdismo redescobrir novos motivos para reciclar atividades cotidianas, é a desagradável gravidade que derruba a pedra de Sísifo. O recomeço é uma oportunidade de fugir da rotina, ou de abraçar a rotina por um motivo inédito, ou até de descobrir uma outra rotina.
Esse texto é sobre recomeçar porque há tempos que não escrevo, e este é um recomeço meu, pessoalmente. Queria falar do álbum do Tim (que ouvi em looping enquanto escrevia) e falar sobre como talvez essa seja a minha maneira de encarar o absurdo: ouvindo música, lendo filosofia. Assim me distraio da incoerência da realidade. É minha desculpa pra recomeçar, e minha desculpa pra concluir o texto – porque também não sou muito bom nisso.
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